A entrada em vigor em 1 de Dezembro de 2009 do Tratado de Lisboa constitui
a prova de que estamos a construir uma União de Estados mais sólida e mais
unida, onde os Estados-Membros estão a abdicar progressivamente da sua
soberania em prole de um bem maior: uma União Europeia tal como Jean Monnet nas
suas memórias a tinha imaginada. Mas a construção do projeto que Jean Monnet
tinha idealizado não é uma tarefa fácil, bem pelo contrário foi um processo que
ainda está em construção.
Podemos comparar o processo de construção de uma União de direito com a
construção da grande pirâmide de Guizé do Cairo, começou na cabeça de uns
arquitetos (Robert Schuman, Jean Monnet,..) com um projeto arquitetónico
ambicioso que uns diziam que até era absurdo pelos esforços e exigências
incomensuráveis que iam ser necessárias. Depois de motivar e de apelar ao bom
senso dos lideres para caminhar e colaborar para ver este belo projeto
realizado que iria perdurar no tempo para que as gerações futuras as possam
aproveitar em memória de um passado ( com a Declaração de Schumann que apelou a
paz e união dos Estados do continente Europeu para curar um passado de guerras
e de sofrimento do continente ou com os faraós do antigo Egipto que queriam que
a sua grandeza e património fosse recordado para sempre com a grandiosidade de
um monumento). Assim começou a construção da nossa “ pirâmide europeia”. Essa
edificação do projeto tinha que começar pela construção de uma base sólida e
segura capaz de suportar o resto da estrutura arquitetónica ,( que na União Europeia
são os quatro pilares da construção/integração europeia) constituídas por várias
pedras de suporte e de “ soutien” ( que são os nossos Tratados constitutivos
que construíram o projeto europeu desde de Maastricht a Lisboa) onde cada pedra
teve que ser ajustada, e medida consoante a necessidade para se encaixar
perfeitamente na geometria da construção da pirâmide (europeia).
As pedras angulares da nossa construção europeia são a paz, segurança,
liberdade e justiça, é precisamente sobre esta última pedra angular que este
trabalho versa: a justiça na (pirâmide) da União Europeia. Nomeadamente sobre
um campo de aplicação da justiça no espaço europeu que é o da cooperação
judiciária em matéria civil e comercial.
Quando pensamos bem sobre o assunto é lógica que para permitir a existência
e consagração de um espaço de paz , liberdade, segurança e justiça que deve
existir alguma cooperação entre os ordenamentos jurídicos e tribunais dos
vários Estados- Membros. Isso deve-se também ao facto que dentro da nossa
pirâmide europeia temos como base quatro liberdades económicas consagradas : a
liberdade de circulação de bens, capitais, serviços e pessoas. Devido a essa
mobilidade de pessoas e bens os conflitos jurídicos aumentaram, assim surge a
necessidade da cooperação judiciária em matéria civil e comercial.
A cooperação judiciária em matéria civil e comercial assenta em princípios como
o princípio da confiança recíproca e do reconhecimento mútuo entre os tribunais
dos diferentes Estados-Membros. Para garantir a resolução de um conflito que
origina numa ação entre um particular com outro particular ou com uma empresa
de um outro Estado-Membro é necessário que uma sentença proferida vai ser
executada em reconhecida tanto em Portugal, como na Grã-Bretanha ou Alemanha.
Foram, por isso, necessários vários instrumentos jurídicos europeus e nacionais
para conseguir este objetivo. Para o trabalho que apresentamos aqui hoje é
relevante o artigo 81º do TFUE que consagra a cooperação judiciária em matéria
civil com uma incidência transfronteiriça e prevê a adoção de medidas para
garantir tanto o reconhecimento mútuo, a citação e notificação, os meios de
prova, o acesso efetivo a justiça. Temos que sublinhar a importância dos
artigos 47º e 48º da CDFUE que consagram o direito a ação e a um tribunal
imparcial assim como a presunção de inocência e direitos de defesa. O conjunto
que formam estes artigos e instrumentos jurídicos de direito material e imaterial
(não podemos esquecer a jurisprudência do tribunal de justiça da União Europeia
que tem carácter de precedente vinculativo) estão a formar um futuro Processo
Civil Europeu ou como o Juíz Desembargador Carlos Marinho o designa “ um Direito
Europeu dos processos temáticos homogeneizados para efeitos de cooperação judiciária
que se nutre da cristalização de bases técnicas de processados convergentes de incidência
meramente horizontal e de conexões extramuros”[1].
O caso que vamos estudar hoje prende-se com os problemas que surgem no mundo
da globalização e dos avanços científicos nos meios de comunicação, nomeadamente
com o desenvolvimento da era da internet. Com a utilização da internet como um
grande e intenso meio de comunicação surgem violações de direitos de personalidade
cometidas através , por exemplo, de publicações de fotografias na internet. A
luz do regulamento 44/2001 que determina os foros competentes: como podemos
determinar o lugar do facto danoso quando uma publicação na internet pode ser
visualizada em cada canto do mundo onde há um servidor acessível? Outro problema
que se apresenta no caso que vamos estudar é o da citação e dos direitos de defesa
quando não temos conhecimento ou há inexistência do domicilio do demandado no
território dos Estados-Membros. Uma sentença de revelia pode ser considerada um
título executivo europeu quando não se conhecesse o domicilio do demandado?
Estas problemáticas são abordadas no caso do Acórdão Cornelius de Visser[2]
de 15 de Março de 2012, processo C-292/10 do Tribunal de Justiça que vamos
analisar neste trabalho.
Acórdão Visser : litígio no caso principal e quadros jurídicos
Neste acórdão do tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 15 de Março de
2012, o litígio principal envolve o Sr. Cornelius de Visser que era titular e
responsável de domínio de um sitio Internet contra a Senhora G. Quando
entrava-se no sitio Internet do Senhor Visser, no link fotos e vídeos podíamos
ver uma fotografia da Senhora G e em outros links várias outras fotografias
onde a Senhora G aparecia quase nua. Podemos nos perguntar como as fotografias
da Senhora G vieram parar ao sitio do Senhor Visser, bem no acórdão está
explicado que em 2003 a Senhora G , que tinha interesse no sitio internet e
pelas prestações de serviços do Senhor Visser , após entrar em contacto com este
último, através da contratação de um fotógrafo , foram tiradas fotografias da G
na Alemanha ( para serem utilizadas para uma festa). Ora, a Senhora G. nunca
tinha prestado o seu consentimento para que as fotos fossem publicadas assim
como o assunto nunca tinha sido abordado pelo Sr. Visser.
O Acórdão também fornece-nos o seguinte dado importante: não conhecemos o local
onde se encontra o servidor que alberga o sítio internet em causa, mas sabemos que
o sitio internet do C. Visser está inscrito como titular do domínio com
endereço em Ternauzem (Países Baixos) e com endereço postal também nos Países
Baixos (em Venlo). Porém, não foi possível citar o Sr. Visser nestes endereços
postais porque ambos os envios vinham devolvidos com a menção “destinatário
desconhecido”[3].
Por isso, o consulado do Reino dos Países Baixos em Munique (Alemanha) declarou
que o Sr. Visser não estava inscrito em nenhum registo da população dos Países
Baixos. No âmbito do processo de concessão de apoio judiciário ainda se tentou
fazer chegar ao Sr. Visser o projeto do ato que determinava o início da
instância por correio normal para diversos endereços (sem obter sucesso).
Foi concedido um apoio judiciário a G. e o órgão jurisdicional de reenvio
ordenou em 8 de Fevereiro de 2010 a citação edital do ato que determina o
inicio da instância assim como uma fase escrita preparatória. A citação edital
que determinou o início da instância, em conformidade com o Código de Processo
Civil Alemão “na hipótese de a citação edital do ato que determinou o início da instância
nos termos do direito nacional ser considerada inadmissível por força das
regras do direito da União, resta apenas G a possibilidade de indicar outros
endereços de C. de Visser nos quais esta citação possa ser feita, o que
provavelmente lhe será impossível por não os conhecer nem lhe ser possível
apurá-los. Ora, isso pode ser incompatível com o artigo 47.º, primeiro parágrafo,
da Carta, porque G seria, na prática, privada da tutela jurisdicional efetiva que
lhe é garantida.”[4].
Por outro lado tendo dúvidas quanto a aplicabilidade e determinação do direito
material aplicável a ação no processo principal, o landgericht regensburg
decidiu suspender a instância e submeter várias questões prejudiciais ao Tribunal
de Justiça que veremos mais a frente.
Para analisar as questões prejudiciais que foram submetidas ao Tribunal de Justiça
temos que entender o quadro jurídico aplicável ao caso. Começando pela diretiva
2000/31/CE do Parlamento e do Conselho Europeu de 8 de Junho 2000, relativa a
certos aspetos legais da sociedade de informação em especial do comércio eletrónico
no mercado interno nos considerandos e no art.1nº4, o artº3 nº1 e o art. 3º nº2.
A seguir temos o Regulamento 44/2002 que é um dos principais instrumentos jurídicos
citados neste acórdão de 22 de Dezembro de 2000 relativo a competência judiciária,
ao reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial” no considerando
2 e o artº2, 3ºnº1, 4º,5º,26º,34ºnº2, e 59º.
O acórdão cita, no quadro jurídico da União, o Regulamento nº805/2004 do Parlamento
Europeu e do Conselho de 21 de Abril de 2004, que cria o título executivo europeu
para créditos não contestados, nos artigos 1º,5º,12º,14º. Por último, quanto ao
quadro jurídico da União, o Regulamento 1393/2007/CE de 13 de Novembro de 2007 relativo
à citação e à notificação dos atos judiciais e extrajudiciais em matéria civil
e comercial nos Estados-Membros nos artigos 19º e 23º. No acórdão temos
referência ainda ao direito nacional do código de processo civil Alemão.
As questões prejudiciais no Acórdão Visser e à análise do TJUE:
Perante as dúvidas quanto à aplicabilidade e à interpretação do RG 44/2001 assim
como quanto à determinação do direito material aplicável à ação no processo principal,
o landgerich regensburg decidiu suspender a instância e submeter ao TJ onze questões
prejudiciais, que depois com a ajuda da secretária do Tribunal, algumas destas questões
foram retiradas e outras foram reformuladas. Podemos ler as questões prejudiciais
inicias no considerando nº 33 do Acórdão[5],
mas para esta análise só nos interessam mesmo aquelas que foram respondidas e
aceites pelo TJ, desta forma após o envio e leitura da jurisprudência eDate
Advertising ao órgão de reenvio, foram colocadas ao tribunal as seguintes
questões prejudiciais ( as 4 questões inicialmente apresentadas assim como a
questão 11º reformulada ) :
1)O disposto no artigo 6.o, n.o 1, primeiro [parágrafo, primeiro membro de
frase, TUE, por um lado,] e [no] artigo 47.o, segundo parágrafo, primeiro
período, da Carta[, por outro], ou outras disposições de direito [da União],
opõe[m]-se à [, citação] edital’, prevista no direito nacional (nos termos dos §§ 185 a 188 do
[…] Código de Processo Civil alemão através de afixação, durante 1 mês, do
[aviso de citação] no quadro de avisos do órgão jurisdicional que ordena a
[citação]), quando a parte contrária num processo civil (na fase inicial deste)
indica no seu sítio Internet um endereço no território da União Europeia, mas é
impossível [a citação] por o demandado não residir aí e também não ser possível
determinar o seu paradeiro?
2) Em caso de resposta afirmativa à [primeira] questão:
O órgão jurisdicional nacional, atendendo à jurisprudência atual do
Tribunal de Justiça (mais recentemente, acórdão [de 12 de janeiro de 2010,
Petersen, C-341/08, Colet., p. I-47]), deve recusar-se a aplicar as disposições
nacionais que permitem uma [citação] edital, embora nos termos do direito
nacional só o [Bundesverfassungsgericht] tenha competência para recusar essa
aplicação?
E: Deveria a demandante, para poder fazer valer os seus direitos, comunicar
ao [tribunal da instância] um novo endereço […] do demandado, para nova
[citação do ato que deu início à instância], dado que, nos termos do direito
nacional, sem [citação] edital e não sendo conhecido o paradeiro do demandado
não é possível prosseguir o processo?
3) Em caso de resposta negativa à [primeira] questão: na presente situação,
o artigo 26.o, n.o 2, do Regulamento […] n.o 44/2001 […] opõe-se a [uma
sentença] proferida à revelia, nos termos do § 331 [do Código de Processo Civil
alemão], ou seja, a um título executivo para créditos não contestados na aceção
do Regulamento […] n.o 805/2004 […], na medida em que seja pedida a condenação
no pagamento de uma indemnização por danos morais no montante de, pelo menos,
[20000] euros [acrescido] de juros, e de despesas com advogados no montante de
[…] 1419,19 euros, [acrescido] de juros?
4) Atendendo ao disposto nos seus artigos 4.°, n.o 1, e 5.°, n.o 3, o
Regulamento n.o 44/2001 é aplicável igualmente nos casos em que, devido à exploração
de um sítio Internet, é intentada uma ação cível de inibição, de prestação de
informações e de indemnização por danos morais, quando o demandado é
(presumivelmente) cidadão da União, na aceção do artigo 9.o, segundo período,
TUE, mas não é conhecido o seu paradeiro, e, deste modo, é também concebível,
mas de maneira alguma certo, que se encontre fora do território da União e
também fora do resto do [âmbito] de aplicação da Convenção relativa à
competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial,
assinada em Lugano, em 16 de setembro de 1988, sendo também desconhecido o
exato local onde está instalado o servidor que armazena o sítio Internet,
embora seja provável que se encontre no território da União?[6]
11) Tendo em conta o acórdão […] eDate Advertising [e o., já referido,] deve o
artigo 3.o, n.os 1 e 2, da Diretiva 2000/31[…] ser interpretado no sentido de
que, no caso de o lugar de estabelecimento do prestador não ser conhecido, e de
ser possível que este se encontre fora do território da União […], o direito
aplicável no domínio coordenado decorre unicamente do direito do Estado-Membro
no qual a pessoa lesada tem o seu domicílio ou a sua residência permanente ou
no domínio coordenado pela Diretiva 2000/31[…], é necessário assegurar que o
prestador de um serviço de comércio eletrónico não seja sujeito a exigências
mais estritas do que as previstas pelo direito material aplicável no
Estado-Membro de que o prestador é provavelmente nacional ou, nesse caso, no
domínio coordenado pela Diretiva 2000/31[…], é necessário assegurar que o
prestador de um serviço de comércio eletrónico não seja sujeito a exigências
mais estritas do que as previstas pelo direito material aplicável no conjunto
dos Estados-Membros ?[7]
Para entender melhor a análise das respostas do TJ às questões prejudiciais
vamos seguir a mesma lógica e ordem de resposta apresentadas dentro do Acórdão.
Começando então pela quarta questão prejudicial o TJ começa por
explicar que o que o órgão de reenvio pretende é saber se em circunstâncias
como as do processo principal o artigo 4º nº1 do RG 44/2001 deve ser
interpretado no sentido de que se opões à aplicação do artigo 5ºnº3 que
consiste numa ação de indemnização devido a exploração de um sítio internet
proposta contra um demandado que provavelmente é um cidadão da União mas cujo
paradeiro não é conhecido. O problema da questão estava na interpretação do
critério do “ não ter domicílio no território do Estado-Membro”[8]
que pelo art. 4º nº1 do RG 44 /2001 exige que sejam aplicadas as regras de
competências nacionais em vez das regras do Regulamento. Como o órgão
jurisdicional de reenvio, mesmo se existem indícios de que o demandado se
encontra em território da UE, tal não era totalmente seguro. Por isso o
tribunal concluiu em resposta à quarta questão que nas circunstâncias como as
do processo principal, o art.4º nº1 do RG44/2001 deve ser interpretado no
sentido de que não se opõe a aplicação do art.5ºnº3 do RG a uma ação de
indemnização devido a exploração de um sitio internet proposta contra um demandante
cujo paradeiro não é conhecido, se o órgão jurisdicional ao qual o processo foi
submetido dispuser de indícios de prova que lhe permitam concluir que o
referido demandando está efetivamente domiciliado fora do território da União.
Num segundo momento o TJ analisou a primeira questão prejudicial e a
primeira parte da terceira questão que devem ser analisadas em conjunto, no
fundo o órgão jurisdicional de reenvio queria saber se o direito da União se
opões que seja proferida uma decisão a revelia contra um demandado, que sendo
impossível localiza-lo, foi citado para o ato que determinou o inicio da
instância por via edital nos termos do direito nacional. O RG 44/2001 assim
como a Convenção de Lugano procura repartir as competências jurisdicionais para
a solução de litígios em matéria civil e comercial nas relações entre Estados e
assim facilitar a execução de decisões jurisdicionais (mas não tem por objetivo
unificar todas as normas processuais dos Estados Membros, tal como foi
explicado no Ac Hypotecni banka no considerando nº37). Apesar dos Estados- Membros
terem competências para fixar as regras processuais aplicáveis às ações propostas
nos seus órgãos jurisdicionais, os Estados-Membros não devem violar o direito
da União e devem respeitar o RG 44/2001. Por isso o órgão jurisdicional nacional
só pode instaurar um processo contra uma pessoa cujo o domicilio não é conhecido
se as regras de competências do RG 44/2001 não se opuseram. O Regulamento
44/2001 assim como o direito da União Europeia tem por objetivo que os processos
se desenrolam no respeito pelos direitos de defesa das partes. No artigo 47º da
CDFUE são consagrados o respeito pelos direitos de defesa e devem ser aplicadas
no respeito do direito do demandante de recorrer a um órgão jurisdicional para
que este se pronuncia sobre a justeza das suas pretensões. O Tribunal de
Justiça recordou a propósito dos direitos de defesa o Acórdão Gambazzi no seu
considerando nº 29 “ que os direitos fundamentais, como o respeito dos direitos
de defesa não surgem como prerrogativas absolutas, podendo comportar
restrições. Estas restrições devem corresponder a objetivos de interesse geral
prosseguidos pela medida em causa e não constituir a luz do fim prosseguido uma
violação desmesurada dos ditos direitos”[9].
Recordou ainda o TJ o considerando 51º do Acórdão Hypotecni onde foi
declarado que evitar” situações de denegação da justiça”[10]
(com as quais o demandante podia ser confrontado), devido à impossibilidade de
localizar o demandado, constitui um objetivo de interesse geral. Pelo artigo
26º nº2 do RG 44/2001 o juiz está obrigado a suspender a instância enquanto não
se verificar que ao demandado foi dada oportunidade de receber o ato que
incidir a instância em tempo útil para apresentar a sua defesa ou que foram efetuadas
todas as diligências para tal. Por último, o TJ ainda recordou que por analisarmos
a regularidade da citação do ato que tanto o artigo 1nº2 nº 1393/2001 como o
artigo 1º da Convenção de Haia determinem que estes instrumentos não se aplicam
quando o destinatário for desconhecido. Por isso o tribunal concluiu que nas circunstâncias
do processo principal nem o artigo 19º do RG 1398/2007 nem o artigo 15º da
Convenção de Haia de 1965 são aplicáveis quando o endereço do demandado for desconhecido.
Quanto à interpretação do art.26ºnº2 do RG 44/2001 o TJ declarou que um órgão
jurisdicional competente nos termos do Regulamento só pode prosseguir validamente
o processo caso não esteja demonstrado que foi dada oportunidade ao demandado
de receber o ato que iniciou a instância , se tiverem sido tomadas todas as medidas
necessárias para permitir a este defender-se. Devem assegurar-se de que foram feitas
todas as averiguações úteis exigidas pelos princípios da diligência e da boa-fé
para encontrar o demandado. Mesmo se uma citação edital restringir os direitos
de defesa do demandado, esta restrição é justificada a luz do direito do
demandante a uma proteção efetiva porque se não existir este meio de citação “
este direito passaria de letra morta” e “Com efeito, contrariamente à situação
do demandado que, quando tenha sido privado da faculdade de se defender de
forma eficaz, terá a possibilidade de fazer respeitar os direitos de defesa
opondo-se, nos termos do artigo 34.o, n.o 2, do Regulamento n.o 44/2001, ao
reconhecimento da sentença contra si proferida, o demandante arrisca-se a ficar
privado de qualquer possibilidade de ação em juízo (v. acórdão Hypoteční banka,
já referido, n.o 54). “[11].O
TJ recorreu para justificar a sua resposta à questão a jurisprudência do
Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre o direito de acesso a um tribunal,
previsto no segundo parágrafo do artigo 47º da CDFUE que não se opões a uma
citação edital deste que os direitos dos interessados sejam devidamente
acautelados[12].
Por isso o Tribunal de Justiça respondeu a primeira questão e a primeira
parte da terceira questão de que “ o direito da UE deve ser interpretado no
sentido de que não se opõe a que seja proferida uma decisão à revelia contra um
demandado que, na impossibilidade de ser localizado, foi citado para o ato que
determinou o início da instância por via edital nos termos do direito nacional,
desde que o órgão jurisdicional ao qual foi submetido o processo se assegure
posteriormente de que foram efetuadas todas as averiguações exigidas pelos
princípios da diligência e da boa fé para encontrar esse demandado”[13].
Quanto à segunda questão, dada a resposta dada anteriormente o TJ
decidiu que não era necessário responder a esta questão.
Quanto à segunda parte da terceira questão, no entender do TJ esta
questão pretende saber se o Direito da União Europeia tem que ser interpretado
de modo a que tem que se opor a certificação enquanto título executivo europeu
(segundo o RG nº805/2004) de uma sentença proferida à revelia contra um
demandado cujo endereço é desconhecido. Sabemos que uma sentença proferida à
revelia está incluída entre os títulos executivos europeus, pelo artigo 3º do
Regulamento e são suscetíveis de certificação como título executivo europeu. O
6º considerando do Regulamento estipula que na falta de contestação da alínea
b) nº1 art.3º pelo devedor pode assumir forma de não comparência na audiência
ou de falta de resposta ao convite do tribunal para manifestar por escrito a
sua contestação. Mas o art.14ºnº2 prevê que a “citação ou notificação nos
termos do nº1 não é admissível se o endereço do devedor não for conhecido com
segurança”[14].
Por isso o TJ declarou que uma decisão proferida a revelia contra um demandado
cujo endereço não é conhecido não deve ser certificada como título executivo
europeu na aceção do RG 805/2004.
Quanto a décima primeira e última questão, o órgão de reenvio pretendia
saber se o art.3º nº1 e 2º da directiva 2000/31/CE sobre o comércio eletrónico
se aplica numa situação na qual não é conhecido o lugar do estabelecimento do
prestador de serviços da sociedade de informação. O TJ relembrou a
jurisprudência eDate Advertising e o. Onde o estabelecimento do prestador de
serviços da sociedade de informação em causa num Estado-Membro constitui tanto
a noção de ser como a condição do mecanismo estabelecido no art.3º da diretiva,
o referido mecanismo visa assegurar a livre circulação dos serviços da
sociedade de informação entre os Estados-Membros através da sujeição dos referidos
serviços ao regime jurídico do Estado-Membro onde estão estabelecidos os seus
prestadores. Ao estar sujeitado à possível aplicação do art.3º nº1 e 2º a identificação
do Estado Membro em cujo território o prestador de serviço da sociedade de
informação em causa está estabelecido, incumbe ao órgão jurídico de reenvio verificar
se o demandado no processo principal está efetivamente estabelecido no território
do Estado-Membro e na falta de estabelecimento, o mecanismo do art3ºnº2 da diretiva
não se aplica, Por isso o TJ respondeu à última questão que o art.3ºnº1 e nº2
da Diretiva 2000/31/CE não se aplica numa situação na qual o lugar de
estabelecimento do prestador de serviços da sociedade de informação não é
conhecido, dado que a aplicação desta disposição está dependente da
identificação do Estado-Membro em cujo território o prestador em causa está
efetivamente estabelecido.
A Jurisprudência Shevill e eDate Advertising do TJUE
Ao longo do nosso Acórdão que estamos a estudar hoje, podemos reparar que o
TJ recorre muitas vezes à jurisprudência eDate Advertising para justificar e a
basear as suas decisões. Por isso, temos então que fazer um estudo da
jurisprudência eDate Advertising Gmb e Oliver Martinez e Robert Martinez
,processos C-509/09 e C-161/10 de 29 de Março de 2011 e como já o vamos ver a
seguir teremos que passar por uma pequena análise da jurisprudência Shevill
cujas considerações ao nível da violação dos direitos de personalidade pelo
mundo da comunicação e sociedade de informação foi relevante. Começando pelos
processos de apensos de C-509/09 e C-161/10 que envolve a eDate Advertising
Gmbh contra x e o Senhor Oliver Martinez /Robert Martinez contra a MGN limited.
No processo eDate Advertising estava em causa o Sr X. de nacionalidade alemã
que em 1993 foi condenado por um tribunal alemão a uma pena de prisão perpétua
pelo homicídio de um conhecido ator alemão. A partir de Janeiro de 2000 o Sr.
encontrava-se em liberdade condicional. Em Agosto de 1999, uma sociedade austríaca
gestora de um portal de internet caracterizado como um meio liberal e politicamente
independente para grupos homossexuais e heterossexuais, divulgou aos seus
leitores informações sobre o Sr.X identificando-o pelo nome e apelido assim
como o seu irmão ( que havia sido condenado pelo mesmo crime) e divulgaram que
eles tinham interposto recurso da decisão de condenação para o Tribunal
constitucional Alemão. O Sr. X. requereu, por isso em 5 Junho 2007 que a
divulgação da informação fosse retirada da internet, e em 18 Junho a informação
foi retirada do site. Mesmo assim o Sr. X. recorreu aos tribunais alemães e
solicitou que fosse proferida uma decisão para condenar a eDate em abster-se de
publicar informações sobre a sua pessoa aplicável em todo o território da RFA,
os tribunais decidiram em favor do Sr. X. e ainda confirmaram essa decisão em
recurso. No processo a eDate contestava a competência judiciária internacional
da jurisprudência civil alemã (relembramos que a eDate era uma sociedade
austríaca) , por isso interpôs recurso de revista da decisão invocando a falta
de competência e dai resultaram três questões prejudicais apresentadas pelo
Bundesgerrichtshof ao tribunal de Justiça da União Europeia.
No processo Martinez e Martinez processo C-161/10 , o diário britânico
Sunday Mirror publicou em 3 Fevereiro 2003, na sua edição na internet,
fotografias acompanhadas de um texto intitulado “ Kylie Minogue novamente com
Oliver Martinez”[15]
, cujo artigo contava que a estadia do casal em Paris assim como declarações
atribuídas ao pai do Sr. Martinez. Por isso o filho e pai Martinez, com nacionalidade
francesa, instauraram uma ação contra a sociedade inglesa MGN Limites, proprietária
do diário Sunday Mirror, no tribunal de grande instance de Paris. Ambos consideravam
que a informação publicada pelo meio de comunicação social constituía uma
ofensa ao direito de reserva da intimidade privada e ao direito de Oliver
Martinez à sua própria imagem. A demandada contestou a competência judiciaria
internacional do órgão jurisdicional francês, por considerar que eram os
tribunais britânicos internacionalmente competentes, o tribunal de grande
instance de Paris suspendeu a instância para questionar o Tribunal de Justiça
acerca da interpretação do RG 44/ 2001.
O Presidente do Tribunal de justiça preconizou a apensação dos processos em
causa com justificação na sua conexão objetiva porque em ambos tem como cerne da
questão a possibilidade de aplicar o acórdão Shevill[16]
relativo ao artigo 5º nº3 RG 44/2001, a casos onde a informação através da
internet violava um direito de personalidade. Como a interpretação da
jurisprudência Shevill condicionava a competência judiciária internacional dos
tribunais alemães e franceses, o Tribunal de justiça articulou os processos de
forma comum. Devido à grande expansão e desenvolvimento científico dos meios de
acesso a internet ao longo do último século era necessária uma nova adaptação e
ajustamentos da jurisprudência Shevill para quando ocorre uma ofensa de
direitos de personalidade através da internet. Antes de recordar a jurisprudência
Shevill, vamos falar do acórdão Minas de Potássio da Alsácia[17]
onde foi estabelecido que o lugar onde corre o facto susceptivel de desencadear
responsabilidade extracontratual e o lugar onde o facto provocou o dano não
coincidem , pois o art.5nº3 do RG 44/2001 deve ser entendido no sentido que se
admite dois foros alternativos à escolha do demandante : um no lugar onde
decorreu o facto causal e outro no lugar onde o dano se verificou efetivamente.
No Acórdão Minas de potássio vimos a solução no caso de danos patrimoniais e no
acórdão Shevill vamos ver a solução para danos não patrimoniais em caso de
violação de direitos de personalidade. Neste último acórdão, o TJ afirmou que
no caso de uma “ difamação internacional” pela imprensa “ o atentado feito por
uma publicação difamatória à honra, à reputação e a consideração de uma pessoa
singular ou coletiva manifesta-se nos lugares onde a publicação é divulgada quando
a vítima é aí conhecida” aí a pessoa ofendida pode reclamar no foro os danos causados
nesse Estado. O critério feito pelo TJ na jurisprudência Shevill foi do lugar onde
a vítima é conhecida, e ainda acrescentou que podia ainda ser formulado um pedido
global ou no tribunal do domicilio do demandado ou no lugar do estabelecimento
do editor da publicação difamatória. No Ac Shevill eram então abrangidas as
violações de direitos de personalidade onde entravam em colisão com à liberdade
de informação e o direito à reserva da intimidade privada, nos meios de comunicação
da imprensa ( jornais, revistas..) e na informação televisiva e radiofónica.
Os dois processos de apensos eDate Advertising e Martinez tem por objeto violações
de direitos de personalidade através de meios de comunicação, só que a realidade
dos meios de comunicação evoluíram muito desde o Ac Shevill de 1995, a difusão
dos meios de comunicação do nosso século passa quase toda pelo uso da internet.
Como o refere o advogado geral Pedro Cruz Villalón nas conclusões do Acórdão “
a invenção e implantação da Internet assim como da World Wide Web acabou de vez
com esta tendência fragmentação territorial dos meios de informação”[18].
Qualquer publicação colocada “ online” na internet pode ser visualizada
praticamente em qualquer canto do mundo. Por isso mesmo a jurisprudência
Shevill era adequada e equilibrada mas não se adequa aos dias de hoje, vamos
dar um exemplo para ver a dificuldade de aplicação dos critérios desta
jurisprudência: uma forma prática de no tempo do acórdão shevill para
determinar o vinculo de conexão com o lugar onde o ofendido era conhecido e
onde o dano tinha ocorrido, era de ver o numero de exemplares ( do diário,
jornais em causa) distribuídos em cada Estado-Membro ( que era uma informação
facilmente verificável ). Tentando adaptar este exemplo as realidades mais
complexas da internet podíamos considerar o número e a origem territorial das “
vistas” à uma página Web como um indicativo de um impacto territorial? Na
verdade, a internet e estas fontes “ não oferecem garantias suficientes para
efeitos de uma determinação concludente e definitiva da produção de um dano antijurídico.”[19]
Por isso para além do critério do duplo foro que o Acórdão Shevill consagra, o
TJ entendeu que era necessário adicionar um novo critério de conexão que consiste
a que o “ lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso do artigo 5nº3 do
RG 44/2001 seja, identificado também com aquele onde se localiza o centro de gravidade
do conflito”[20]
entre os bens e os interesses em causa. O grande desafio nestes conflitos de
direitos de personalidade está no carácter transnacional e global, para encontrar
foros que sejam competentes para resolver estas questões. O Advogado Geral Pedro
Cruz Villalón, nas suas conclusões faz menção a possibilidade de usar como critério
de conexão a acessibilidade à informação que poderia justificar essa conexão automática
com todos os Estados Membros (porque a informação está acessível em todos ) mas
daria lugar à possibilidade de um “ fórum shopping insustentável para qualquer
meio de informação que opera na rede “[21]
(39).
Por isso a solução a mais adequada é aquela do critério do “ centro de
gravidade do conflito” que se subdivide em dois elementos: (1) diz respeito ao
titular do direito de personalidade violado e requer que o centro de gravidade
do conflito se situa no local onde aquele tenha o seu “ centro de interesses”
com base na jurisprudência Shevill; (1.1) na determinação do lugar onde se
encontra o centro de gravidade do conflito temos que ter em conta o lugar no
qual o particular afetado desenvolve essencialmente o seu projeto de vida,
sempre e quando exista. (2) O segundo elemento diz respeito à informação, ou
seja é importante que a informação objeto do litígio esteja expressa de tal
maneira que permita prever que a mesma é objetivamente relevante num determinado
espaço territorial, por outras palavras à informação que inicia o litígio deve,
tendo em consideração às circunstâncias da noticia, constituir uma informação que
suscite interesse num território e que incite ativamente os leitores desse
território em procurá-la, tem que haver um “ interesse noticioso” . (2.1) Este
” interesse noticioso”[22]
pode ser determinado recorrendo a algumas indícios como o lugar onde está estabelecido
o editor, a língua da página Web que pode estar mais vocacionada par um Estado-Membro,
ou o registo de acesso a uma página.
Por isso o TJ concluiu que o art.5ºnº3 do RG 44/2001 na expressão “ lugar
onde ocorreu o facto danoso “ tem que ser interpretado no sentido : “Em
conclusão, proponho ao Tribunal de Justiça que declare que a expressão «lugar
onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», no sentido do n.° 3 do artigo
5.° do Regulamento n.° 44/2001, no caso de violação de direitos da
personalidade mediante informação divulgada em vários Estados-Membros através
da Internet, deve ser interpretado no sentido de que o titular do direito da
personalidade pode intentar uma acção de indemnização: ou nos tribunais do
Estado-Membro do lugar de estabelecimento do editor da publicação ofensiva dos
direitos da personalidade, os quais são competentes para conhecer da totalidade
dos danos decorrentes da ofensa dos referidos direitos, ou nos tribunais de cada
Estado-Membro no qual a publicação tenha sido divulgada e no qual o titular do direito
da personalidade alegue ter sofrido um ataque contra a sua reputação, os quais são
competentes para conhecer apenas dos danos causados nesse mesmo Estado; ou nos tribunais
do Estado-Membro no qual se localize o «centro de gravidade do conflito» entre
os bens e interesses em jogo, os quais têm competência para reparar a totalidade
dos danos derivados da violação do direito de personalidade. Entende-se por Estado-Membro
onde se localiza o «centro de gravidade do conflito» aquele em cujo território
a informação controvertida seja objectiva e particularmente relevante e onde, ao
mesmo tempo, o titular do direito da personalidade tenha o seu «centro de interesses»”[23].
Quanto à terceira questão prejudicial do processo eDate Advertising , o
centro da questão residia sobre a interpretação do art.3ºnº2 da diretiva
2000/31 sobre o comércio eletrónico na internet na disposição que prevê que os
Estados Membros “ não podem , por razões que relevam do domínio coordenado,
restringir a livre circulação dos serviços da sociedade de informação
proveniente de outro Estado-Membro” reveste o carácter de uma norma de direito
aplicável ou consiste numa simples correção ao conteúdo do direito nacional
aplicável ao litígio ? A diretiva 2000/31 opera a uma harmonização do direito
internacional privado estabelecendo uma norma de conflito que determina a aplicação
pelo órgão jurisdicional competente do direito substantivo do Estado-Membro de
estabelecimento do editor? O TJ começou a resolver esta questão explicando
quais eram os objetivos e intenções da diretiva 2000/31 sobre o comércio eletrónico
que é um instrumento de direito derivado já previsto, na sua base, no artigo 56º
do TFUE e define as formas em que os Estados-Membros têm que regulamentar um
sector económico integrado no mercado interno, plasmando nas suas disposições o
conteúdo da livre prestação de serviços, que abrange uma exigência de
reconhecimento mútuo. Temos que ver que o próprio art.1º nº4 da diretiva
2000/21dispõe que “ a presente diretiva não estabelece normas adicionais de
direito internacional privado, nem abrange a jurisdição dos tribunais”[24].
O estado atual do direito relativo à cooperação judiciaria em matéria civil
relativo as obrigações extracontratuais (Roma II) exclui das obrigações
extracontratuais as matérias relativas à violação d vida privada nomeadamente
os direitos de personalidade. Por isso podemos concluir que o art.3º da Diretiva
não afigura uma harmonização que imponha aos Estados-Membros uma norma de
conflito.
Quanto á outra parte da questão, relativa ao art.º3 nº2 que pergunta se
esse artigo tem por trás uma norma de direito internacional privado, como já
explicamos essa parte só é uma harmonização da livre prestação de serviços no
comércio eletrónico, e um “ tribunal que aplica a técnica do reconhecimento
mútuo num conflito com um vínculo internacional não aplica a legislação do
Estado-Membro do estabelecimento do prestador de serviços apenas se limita a
considerar válido. Desde que não ocorram razoes que determinem medidas
derrogatórias, o cumprimento das normas reguladoras do serviço nesse Estado “[25].
Acabamos assim a análise da jurisprudência Shevill e eDate Advertising
cujas decisões deram origem ao caminho ou melhor linha de raciocínio para
resolver as questões do Acórdão Cornelius Visser. É claro que há um paralelismo
que pode ser desenhado tanto desde o Acórdão Shevill onde o “ boum” da Internet
ainda não se tinha concretizado, até a jurisprudência eDate Advertising em 2011
onde os problemas da divulgação da informação no “ www” já estavam amplamente
concretizados, até ao nosso caso Visser onde para além da questão da violação
de direitos de personalidade pela internet ainda temos as dificuldades da
citação e dos direitos de defesa.
O Artigo 47º da CDFUE no Acórdão Visser: breves notas
Desde a entrada em vigor do Tratado de Lisboa , a Carta dos Direitos Fundamentais
da União Europeia constitui um novo instrumento de proteção dos direitos
fundamentais dos particulares na União Europeia num padrão de interjusfundamentabilidade
na qual os cidadãos estão inseridos. Um dos direitos fundamentais consagrados
na Carta é o da tutela jurisdicional efetiva consagrado no artigo 47º da CDFUE.
Este artigo da Carta resume a crescente inquietação do legislador
comunitário em garantir tanto que o autor possa propor uma acção em tribunal (
assim como o Requerente) e que haja a possibilidade e garanti do exercício da
defesa e do contraditório em juízo ( tanto da parte do Réu como do Requerido).
O artigo 47º da CDFUE é uma concretização do principio do direito a uma tutela
jurisdicional efetiva que já estava consagrada em outros instrumentos de
direito internacional como na CEDH e na DUDH. O tribunal de Justiça até já
tinha afirmado na sua jurisprudência do acórdão Johnston de 15 de maio de 1986
o direito ao controlo jurisdicional “ é expressão de um principio geral de
direito que está na base das tradições constitucionais comuns aos Estados
Membros”[26]
assim como na jurisprudência Heylens e Borelli onde foi afirmado as vários
aspetos do direito à ação. Por outro lado o direito a um tribunal imparcial é
mais um reflexo da jurisprudência do Tribunal de Justiça segundo a qual o direito
a um processo equitativo enquanto principio fundamental do direito da União tem
que ser respeitado em todos os processos , tal como nos administrativos, este
direito a um tribunal imparcial também se concretiza no direito a um processo
num prazo razoável , assim como no respeito pelos direitos de defesa e de
contraditório na aplicação de sanções pecuniárias ou multas ( ou seja mesmo nos
procedimentos de carácter administrativo). Por último o direito à defesa e à
assistência judiciária previsto na parte final do artigo 47º CDFU consagra a
possibilidade de se fazer defender, aconselhar e representar em juízo , através
da concessão de assistência judiciária tanto nos tribunais nacionais assim como
no quadro da ordem jurídica da União e garante assim um “ acesso efetivo à
Justiça”.
Esta perspetiva do art.47º ( sobre os direitos de defesa por ambas as
partes) pode ser vista na jurisprudência do TJ no nosso Acórdão Visser onde o
TJ defendeu que o respeito pelos direitos de defesa como um direito fundamental
não poder ser encarado como uma prerrogativa absoluta , os direitos fundamentais
não podem gozar de um grau de absolutismo ilimitado. O TJUE ainda explicou que
a restrição de um direito fundamental como o direito de defesa só pode ser
restringindo quando “ corresponder efetivamente objetivos de interesse geral e
não constituir à luz do fim prosseguido, uma violação desmesurada daqueles
direitos”[27].
O Princípio do reconhecimento mútuo e o título executivo europeu
O nosso Acórdão Visser que estamos a estudar contêm uma parte importante
sobre o titulo executivo europeu e já chegamos à conclusão que uma decisão
proferida à revelia contra um demandado cujo endereço não é conhecido não pode
ser certificada como título executivo europeu (RG 805/2004/CE). Para entender
melhor como se aplica este instrumento da cooperação judiciária em matéria
civil e comercial vamos tecer algumas notas sobre o Regulamento que introduziu
o título executivo europeu.
O Título executivo Europeu para créditos não contestados entrou em vigor em
1 de Janeiro de 2005 através do Regulamento (CE) nº805/2004 do Parlamento e do
Conselho Europeu. O Regulamento é uma fonte de aplicação imediata nos Estados-
Membros e não depende de transposição e de nenhuma iniciativa por parte do
legislador nacional no ato de transposição ( tal como é o caso por exemplo nas
Diretivas). O objetivo do RG 805/2004 que cria o título executivo europeu tem
como “ projeto piloto”[28]
a supressão do exequátur que sempre foi um objetivo da União. Um segundo
objetivo que podemos observar foi o da criação de um espaço de liberdade ,
segurança e justiça que visa acelerar e simplificar a execução de títulos nos
Estados diversos dos Estados de origem em que o titulo executivo foi
constituído e registado. Como terceiro e último objetivo do Regulamento temos :
diminuir os custos dos procedimentos necessários à execução de um título
estrangeiro. O âmbito de aplicação material do Regulamento coincide quase
integralmente com o âmbito de aplicação do Regulamento (CE) nº44/2001 nas
matérias civis e comerciais ( salvo exceções de algumas matérias ).
A simplificação e aceleração da certificação de um título como título
executivo europeu determina logo nos art.1º que um título possa ser executado
em Estado-Membro diverso do Estado de origem sem necessidade de um procedimento
prévio de reconhecimento ou sem ter que passar pela concessão de exequátur. Por
isso desde que no Estado- Membro origem do Título seja respeitadas as normas
mínimas do capitulo III do Regulamento, o título será exequível em todos os
Estados Membros da UE (isso pressupõe que também possa ser exequível no
Estado-Membro de origem do título) e serão executados sem que seja preciso
nenhuma declaração de executoriedade nem que seja possível contestar a força
executiva. Convêm fazer referência antes de avançar para outros aspetos do
Regulamento que realidades poderão ser certificadas como títulos executivos
europeus, que são segundo o art.3ºnº1 : as decisões judiciais proferida por
órgãos jurisdicionais de estados-membros, as transações judiciais e os
instrumentos autênticos desde que a autenticidade se estenda ao conteúdo e à
assinatura do documento e o ato haja sido praticado no âmbito das competências
da autoridade competente). Temor que fazer uma nota relativamente a recusa de
execução do título que é possível pelo tribunal do Estado de Execução conforme
as situações previstas no Regulamento, e a decisão proferida e certificada pode
vir a ser alvo de revisão (nos tribunais do direito interno). Os requisitos de
certificação de decisões judiciais encontram-se previstas no artigo 6º do
Regulamento ( e os pressupostos são cumulativos). A execução de títulos
incorpore a obrigação exequenda que pelo Regulamento tem que ser aplicável ao
titulo que incorpore créditos, que são prestações pecuniárias, e que a
prestação seja líquida , exigível em face do título. Tem que ser relativa aos
créditos não contestados, e a obrigação pode vencer juros (conforme previsto
nos Anexos). Quanto as normas processuais mínimas aplicáveis, estas regras
mínimas encontrem-se previstas no Capitulo III do Regulamento, e dizem respeito
aos meios de citação e notificação com a prova de receção pelo devedor ( artigo
13º) ou sem prova mas aí há exigências acrescidas ( artigo14º). Devem ser
indicados os elementos essenciais relativas ao crédito no documento que vai
iniciar a instância (artigo 16º), tem que constar ainda a informação completa
do devedor sobre as diligências processuais necessárias para contestar o
crédito assim como as consequências da não comparência e da falta de
contestação ( artigo 17º).
O Regulamento que institui o título executivo europeu foi uma das maiores
concretizações do princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais entre
Estados Membros da União Europeia. Desde o conselho Europeu de Tampere onde
construi-se um “ Espaço Europeu de Justiça” o principio do reconhecimento mútuo
sempre se aferiu como um instrumento e “ pedra angular “[29]
da cooperação judiciária em matéria civil e comercial onde já se tinha pensado
num caminho para a criação da figura do título executivo europeu. Um destes
caminhos pensados foi o do reconhecimento mútuo de decisões, que passa pela
criação de regras uniformes de competência internacional dos tribunais e de
regras processuais assim como de um direito de conflitos uniformes, e da
instituição de procedimentos eficazes de cooperação entre autoridade.
O princípio do reconhecimento mútuo começou por ser criado no sistema da
Convenção de Bruxelas de 1968, relativo à competência judiciária e à execução
de decisões em mateira civil e comercial e depois com a revisão do Regulamento
(CE) nº44/2001 relativo à competência e ao reconhecimento de decisões em
matéria vil e comercial. A criação de regras uniformes de competência
internacional no Regulamento, exigiu colocar em prática o princípio que
institui um grau suficiente de confiança mútua nos sistemas jurisdicionais dos
diferentes Estados-Membros através do reconhecimento automático das decisões
estrangeiras ou seja uma supressão do exequátur. Depois um dos passos
importantes para o reconhecimento mútuo foi o da revisão da Convenção de
Bruxelas que institui um procedimento para tornar executória a decisão
estrangeira. Assim, a executoriedade da decisão estrangeira é declarada sem
verificação pelo tribunal das causas de não- reconhecimento e não apenas sem
audição da parte requerida.
Por fim um dos mais importantes passos para o reconhecimento mútuo foi o da
adoção do Regulamento (CE) 805/2004 que cria o título executivo para créditos
não contestados que se afigura como um dos maiores instrumentos que põe em
prática o reconhecimento mútuo e o grau de confiança entre os tribunais dos
diversos Estados-Membros.
Conclusão e Considerações Finais:
Encerrada esta nossa análise da jurisprudência Visser , assim como da
jurisprudência citada no acórdão, podemos entender que à realidade da
cooperação juridiciaria em matéria civil e comercial é mais complexa do que
podemos pensar à primeira vista. Por isso entendemos agora que não é tarefa
fácil a harmonização de normas de processo e procedimentos civis, e ainda mais
complicado vai ser o caminho até chegarmos a ter um verdadeiro Processo Civil
Europeu codificado. Mas mesmo se a tarefa e o caminho ainda vai ser espinhoso,
só pela harmonização que já foi conseguida pelo legislador comunitário através
dos Regulamentos, Diretivas e da ( sempre muito engenhosa ) jurisprudência do
Tribunal de Justiça podemos acreditar que estamos no caminho certo para atingir
uma muito melhor harmonização da cooperação judiciária em matéria civil e
comercial dentro do espaço da União Europeia. Já tivemos uma grande evolução
desde o I Conselho de Tampere onde tinha sido feito os primeiros desenhos de um
“ Espaço Europeu de Justiça” porque para além da colocação em prática do princípio
do reconhecimento mútuo através do reconhecimento automático de decisões
provenientes de outros Estados-Membros que é baseado numa confiança recíproca
na administração e justiça dentro da União Europeia. Com o Acórdão Visser que
estudamos aqui hoje percebemos que desde o Acórdão Minas de Potássio da Alsácia
onde tinham surgido as primeiras interpretações ao atual Regulamento sobre a
cooperação judiciaria em matéria civil, até à jurisprudência Shevill onde
surgiram os critérios de aplicação do artigo 5º nº3 do RG 44/2001, até à
jurisprudência Visser que exigiu repensar os antigos critérios para adaptá-los
as realidades da Internet nunca deixou de haver tentativas de proporcionar uma
harmonização dos direitos de defesa e de acesso à justiça aos cidadãos da
União. Aliás não podemos esquecer o papel que desempenha nessa harmonização os
Regulamentos Bruxelas até aos Regulamentos mais recentes que criaram o título
executivo Europeu , que é um dos maiores instrumentos que concretiza o
princípio do reconhecimento mútuo e que garante aos particulares formas de
poder reclamar os seus créditos em outros Estados-Membros. A Carta dos Direitos
Fundamentais da União sempre terá um papel determinante para fazer valer o
direito de acesso à justiça e à defesa como um direito fundamental dentro do
direito da União Europeia, das instituições da União Europeia e quem sabe um dia até
mesmo dentro do próprio Estado-Membro sem ser necessário um “ link” com a União.
Por Amélie Fernandes
Junho de 2014
[1] Cfr. MARINHO, Carlos M.G. de Melo, A cobrança de créditos na Europa.
Os processos europeus de injunção e pequenas causas, Quid Juris, 2012,p.21 .
[2] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser, de 15 de março de 2012, processo nº
C-292/10 disponível em
curia.europa.eu
[3] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser cit., Considerando 29.
[4] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser cit., Considerando 31 e 32.
[5] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser cit., Considerando 33.
[6] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser cit., Considerando 33.
[7] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser cit., Considerando 35.
[8] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser cit., Considerando 38.
[9] Cfr. Acórdão TJUE Gambazzi, de 2 de Abril de
2009, processo nº C-394/07, considerando 29.
[10] Cfr. Acórdão TJUE Hypoteční banka , de 17 Novembro de 2011, processo nº C-327/10 considerando
51.
[11] Cfr. Acórdão TJUE Hypoteční banka cit., considerando 54
[12] Cfr. TEDH, decisão Nuno Dias contra Portugal, 10 Abril
2003, Recueil et arrêt et decisions 2003- IV
[13] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser cit., Considerando 59.
[14] Cfr. Acórdão TJUE G vs. Visser cit., Considerando 68.
[15] Cfr. Conclusões do Advogado-Geral Pedro Cruz Villalón , caso eDate
Advertising e O. , de 29 de Março
de 2011, processo
nº C-509/09 e C-161/10, considerando 15.
[16] Cfr. Acórdão TJUE Shevill , de 7 de
Março de 1995 , Processo nºC-68/93.
[17] Cfr, Acórdão Minas de Potássio da Alsácia, de
30 de Novembro 1976, Processo nº 21/76.
[18] Cfr. Conclusões do Advogado-Geral Pedro Cruz Villalón , caso eDate
Advertising e O. , de 29 de Março
de 2011, processo
nº C-509/09 e C-161/10, considerando 43.
[19] Cfr. Conclusões do Advogado-Geral Pedro Cruz Villalón , caso eDate
Advertising e O. , de 29 de Março
de 2011, processo
nº C-509/09 e C-161/10, considerando 29.
[20] Cfr. Conclusões do Advogado-Geral Pedro Cruz Villalón , caso eDate
Advertising e O. , cit.
considerando 55.
[21] Cfr. Conclusões do Advogado-Geral Pedro Cruz Villalón , caso eDate
Advertising e O. , cit.
considerando 39.
[22] Cfr. Conclusões do Advogado-Geral Pedro Cruz Villalón , caso eDate
Advertising e O. , cit.
considerando 64.
[23] Cfr. Conclusões do Advogado-Geral Pedro Cruz Villalón , caso eDate
Advertising e O. , cit.
considerando 67.
[24] Cfr. Diretiva 2000/21/CE do Parlamento Europeu
e do Conselho artº.1 nº4.
[25] Cfr.. Conclusões do Advogado-Geral Pedro Cruz
Villalón , caso eDate Advertising e O. , cit. 57.
[26] Cfr. SILVEIRA ALESSANDRA , CANOTILHO MARIANA, Carta dos direitos fundamentais da União
Europeia
Anotada, Almedina, 2012,
p.537 a 544.
[27] Cfr. ABREU Joana, O procedimento Europeu de injunção
de pagamento : solução simplificada de
cobrança de
créditos transfronteiriços ?, p.12.
[28] Cfr.COSTA E SILVA Paula, O Título Executivo Europeu, Coimbra editora 2005, p.19.
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