segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Do Tratado De Roma À Reforma De 2004: Directivas 2004/17/Ce E 2004/18/Ce - Contratos Públicos Europeus: Processo C-458/03





INTRODUÇÃO
Neste trabalho irei abordar a matéria dos contratos públicos europeus, mais concretamente a evolução que ocorreu ao nível das directivas comunitárias, desde o Tratado de Roma até à Reforma de 2004, analisando os efeitos que esta teve no espaço comunitário e, posteriormente, analisarei um acórdão do TJ onde tentarei traçar as linhas gerais sobre a temática dos contratos públicos europeus.

Os contratos públicos europeus obedecem a uma série de princípios fundamentais que foram consagrados pela primeira vez no Tratado de Roma.

A transposição de directivas comunitárias nesta matéria fez com que se mexesse com os modelos tradicionais de contratação administrativa dos vários Estados-Membros, levando a uma progressiva uniformização do regime jurídico aplicável aos contratos públicos no espaço europeu.

Penso, então, ser de bastante interesse fazer uma análise mais profunda a toda esta evolução que ocorreu na União Europeia ao longo do caminho que esta tem vindo a percorrer.


DO TRATADO DE ROMA À REFORMA DE 2004: DIRECTIVAS 2004/17/CE E 2004/18/CE
A noção de contrato público foi, nos primeiros tempos, do ponto de vista do regime jurídico substantivo uma noção neutra, ou seja, deu-se uma prevalência a nível comunitário às preocupações de ordem procedimental. Nessa altura, a uniformização das regras jurídicas dos diversos Estados-Membros era uma utopia.

No entanto, o Tratado de Roma adquiriu logo especial relevância, ao ver consagrado vários princípios fundamentais para a contratação pública, que contribuíram para a lógica de concorrência, e que proibiam as práticas discriminatórias: a livre circulação de mercadorias (artº 23º), a livre circulação de trabalhadores (artº 39º), a livre circulação de capitais (artº 56º), a não discriminação em razão da nacionalidade (artº 12º), a livre prestação de serviços (artº 49º), entre outros.

Foi em todos estes princípios que a contratação pública se baseou, e não apenas nas normas sobre a concorrência. Pretendia-se uma liberalização ao nível da contratação pública que conseguisse tornar efectivas as liberdades de circulação quer de trabalhadores, quer de estabelecimento e também uma livre prestação de serviços.

Este processo teve o seu passo inicial a partir de 1961 com a elaboração de várias directivas que originaram o alargamento do universo dos contratos abrangidos: inicialmente fornecimentos e obras, contratos dos sectores clássicos e entidades públicas adjudicantes e mais tarde prestação de serviços, contratos dos sectores excluídos e entidades privadas. São introduzidas várias reformas nos sistemas nacionais da contratação pública, reformas essas que não pretendiam, inicialmente, substituir a regulamentação própria de cada Estado, antes introduzir regras que garantissem as liberdades e princípios constantes do Tratado, nomeadamente, a protecção das liberdades comunitárias, fim último das directivas.

As directivas mais relevantes nesta época foram a Directiva 71/305/CEE, de 26 de Julho de 1971, sobre a coordenação dos procedimentos de adjudicação dos contratos públicos de obras, e a Directiva 77/62/CEE, de 21 de Dezembro de 1976, que versava sobre a coordenação dos procedimentos de adjudicação de contratos públicos de fornecimento.

Estas directivas inovaram do ponto de vista que consagraram já medidas que visavam a igualdade na participação das empresas em procedimentos contratuais públicos, entre elas, a imposição de métodos de selecção concorrenciais, proibição da imposição de especificações técnicas discriminatórias, etc.

Apesar de tudo isto, estas directivas não tiveram o sucesso desejado, quer pelo facto do seu âmbito de aplicação ser limitado, quer pela deficiente transposição para os Estados-Membros.

A fase seguinte é marcada por um conjunto de directivas que entre 1985 e 1986 aprofundaram o regime anterior, e que entre 1987 e 1992 além de o aperfeiçoarem também o diversificaram.

O impulso dado para esta evolução foi dado quer pelo Livro Branco, que tinha como objectivos garantir uma maior transparência ao nível dos procedimentos de adjudicação, garantir direitos de recurso, e estender o regime comunitário a outros sectores, como por exemplo, o da prestação de serviços, quer pela modificação do Acordo GATT, e também por vários estudos, entre eles o Relatório Cecchini.

Nesta fase temos que ter em conta as Directivas 88/295/CEE, de 22 de Março de 1988, e a Directiva 89/440/CEE, de 18 de Julho de 1989, que contribuíram para esta evolução, pois motivaram o alargamento do âmbito subjectivo de aplicação, uma vez que além de abrangerem entidades públicas, passaram a abranger também os organismos públicos sobre os quais aquelas entidades exercem influência dominante; e passaram a exigir muito mais em termos de prazos e de transparência, entre muitos outros factores.

Noutro plano, a Directiva 89/665/CEE, do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, uma Directiva recurso, é muito importante para toda esta evolução, porque com ela dá-se um passo fulcral que visa assegurar as garantias dos cidadãos ao nível dos contratos públicos de fornecimento de obras.

Com o Livro Verde sobre os mercados públicos, em 1996, a Comissão lança um grande debate sobre a aplicação do direito da união europeia dos contratos públicos nos Estados-Membros.

Este foi um momento relevante para a evolução que tem vindo a acontecer nesta matéria, pois a Comissão abriu de facto um intenso debate, troca de ideias e mesmo críticas no que toca a toda a área da contratação pública.

A Comissão começa por criticar os Estados-Membros devido à deficiente transposição das directivas e também quanto aos procedimentos adoptados. Posteriormente, debruça-se sobre uma série de aspectos que considera importantes: os Estados têm o dever de realizar uma correcta transposição das directivas; os princípios constantes do Tratado sobre a matéria da liberalização dos contratos públicos são aplicáveis a todos os contratos celebrados pelas entidades adjudicantes, mesmo os que se encontrem abaixo dos limiares dos quais depende a aplicação das directivas, entre outros vários aspectos.

E foi no seguimento deste debate que surgiu o reconhecimento da necessidade de uma nova legislação, que tinha em vista a simplificação e a melhoria do anterior regime, o que resultou na aprovação de duas novas directivas em 2000: uma geral que incidia sobre a coordenação dos processos de adjudicação de fornecimentos públicos, de prestação de serviços públicos e de empreitada de obras públicas, e outra sectorial, relativa à coordenação dos processos de adjudicação nos sectores da água, da energia e dos transportes.

Em 2001 surgem duas comunicações interpretativas elaboradas pela Comissão, que são muito importantes sobre este assunto.

Na primeira, “O direito Comunitário aplicável aos contratos públicos e as possibilidades de integrar considerações ambientais nos contratos públicos”, a Comissão considera que além de preocupações económicas deve ter-se em conta preocupações ambientais, quer na fase da definição do objecto do contrato, quer na fase de selecção ou da avaliação da proposta economicamente mais favorável.

Na segunda, “O Direito Comunitário aplicável aos contratos públicos e as possibilidades de integrar aspectos sociais nesses contratos”, a política social europeia volta a ser considerada fundamental pela Comissão como um pilar fulcral no desenvolvimento sustentável e na construção da própria economia europeia.

A Comissão sugere também aos Estados-Membros que procedam à criação de uma autoridade nacional que seja independente e que faça uma avaliação do cumprimento das disposições comunitárias sobre a contratação pública e que ao mesmo tempo verifique se existe sancionamento para os casos de incumprimento.

E é no decorrer de tudo isto que surge então duas novas directivas comunitárias em matéria de contratação pública: a Directiva 2004/18/CEE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, sobre a coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços, e a Directiva 2004/17/CEE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação de contratos nos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais.

Quanto à primeira importa referir que ela vem modernizar o antigo regime, visto que tenta compatibilizar o regime da contratação pública com as preocupações comunitárias, assumindo que ela é uma ferramenta fundamental para a execução das políticas sociais e ambientais da União Europeia.

Já a segunda, a Directiva Sectores Especiais, traz novidades quanto ao âmbito de aplicação. Ou seja, a área das telecomunicações é excluída, passando a ser abrangida a área dos serviços postais. Esta directiva vem também simplificar os limiares e ao mesmo tempo considera que eles são aplicáveis a todos os operadores, independentemente do sector em causa.

Estas directivas debruçam-se também sobre outro aspecto muito importante: os critérios de adjudicação.

Sobre isto relembra-se que os Estados-Membros quando esteja em causa a adjudicação de contratos públicos devem respeitar os princípios constantes do Tratado, isto é, os princípios da livre circulação de mercadorias, a liberdade de estabelecimento, a livre prestação de serviços e também a igualdade de tratamento, a não-discriminação, o reconhecimento mútuo, a proporcionalidade e a transparência.

Todas as disposições devem ser interpretadas de acordo com estas regras e princípios, uma vez que a adjudicação deve basear-se em critérios objectivos como o preço mais baixo e a proposta economicamente mais vantajosa, que respeitem precisamente todos estes princípios.

 Outra das preocupações destas directivas, tem a ver com a preocupação que delas emana sobre questões de natureza ambiental ou social.

Assim, as entidades adjudicantes podem, por exemplo, estabelecer requisitos ambientais como especificações técnicas de determinado contrato ou então relativamente às preocupações sociais, que as condições de execução dos contratos tenham por objectivo fomentar a formação profissional, a luta contra o desemprego ou a própria protecção do ambiente.

Importa também realçar que elas têm vindo a encontrar progressos e recuos nos objectivos que se propõem a alcançar, nomeadamente a flexibilização e a simplificação.

Quanto ao primeiro objectivo, os progressos têm vindo a ser significativos especialmente no que toca às medidas de limitação do âmbito de aplicação da Directiva Sectores Especiais e também em algumas novidades introduzidas no que respeita à contratação electrónica.

Já quanto ao segundo objectivo, os avanços dados na simplificação são bem menos animadores, pois pese algumas medidas adoptadas, as regras continuam a ser muito complexas, sendo que mesmo em determinados casos estas directivas vieram mesmo piorar a situação.

CONTRATOS PÚBLICOS EUROPEUS: PROCESSO C-458/03
No que diz respeito a estes contratos, temos que ter em linha de conta o regime jurídico substantivo que é aplicável aos mesmos. Assim, convém referir em primeiro lugar que as chamadas Directivas clássicas embora aplicando-se apenas a determinados contratos, continham especialmente regras procedimentais. Apesar disso, têm implicações conceptuais que vão abalar a tradicional figura de contrato administrativo, de inspiração francesa, isto é, o contrato administrativo começa a deixar de ser entendido como contrato sujeito a regime jurídico diferente relativamente aos contratos celebrados entre particulares e aos contratos de direito privado da Administração Pública e tende-se para uma cada vez maior uniformização dos vários tipos de contratos públicos.

Em segundo lugar, tem que se ter em conta a importância da jurisprudência comunitária e neste caso em concreto, do acórdão “Telaustria”, acórdão importantíssimo em toda esta matéria e que traduz a ideia de que os princípios incluídos no Tratado são aplicados mesmo àqueles contratos que não estão abrangidos pelas Directivas comunitárias, ou seja, esses mesmos contratos estão sujeitos: “à observância dos princípios e regras fundamentais do direito da União Europeia, o que implica um grau de publicidade adequado a garantir a concorrência, a um procedimento transparente, entendido como garantia do cumprimento daqueles, e cuja observância deve ser mantida ao longo de todo o procedimento, de forma a serem controladas a imparcialidade e a objectividade da adjudicação”.

O Tribunal de Justiça considerou que não é pelo facto de um contrato não estar abrangido pelas directivas que deve deixar de obedecer aos princípios contidos no Tratado, entre eles o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade, devendo as entidades adjudicadoras observar os mesmos, pois estão vinculadas à obrigação de transparência.

Este é um passo muito importante e com grande reflexo nas decisões futuras e no próprio caminho da contratação pública e que analisarei aprofundadamente mais à frente, pois dá-se um alargamento do universo dos contratos públicos.

Outro aspecto a ter em conta, é o relacionado com os aspectos garantísticos das normas que regulam os referidos procedimentos pré-contratuais. Estes aspectos estão presentes em algumas directivas, entre elas, a Directiva 89/665/CEE e a Directiva 92/13/CEE, onde existe já ao nível processual, uma tendência para a uniformização do regime aplicável aos contratos celebrados por entidades públicas e aos contratos celebrados por entidades privadas e também a contratos que eram tradicionalmente denominados de contratos administrativos e aos contratos de direito privado da Administração Pública.

Neste sentido, as próprias Directivas comunitárias de 2004 reforçam essa ideia de que há uma noção comunitária de contrato público que é autónoma da noção tradicional dos vários ordenamentos jurídicos nacionais.

Importa agora salientar que a noção de contrato público é independente da natureza jurídica das partes, o que leva a que possam existir contratos públicos celebrados quer por entidades públicas quer por entidades privadas.

Por outro lado, tem especial relevância clarificar que contrato público não significa contrato celebrado por uma entidade pública pois tem existido uma evolução no sentido de dar um sentido mais abrangente aos poderes adjudicadores.

Entende-se por poderes adjudicadores o Estado e os entes públicos territoriais, mas também os organismos de direito público e as associações que são compostas por um ou mais dos referidos entes ou organismos de direito público. Organismo de direito público é, segundo as directivas 92/50/CEE, 93/36/CEE, 93/37/CEE e 93/38/CEE, “qualquer organismo criado para satisfazer de um modo específico necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial dotado de personalidade jurídica e cuja actividade seja financiada maioritariamente pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público, ou cuja gestão esteja sujeita a um controlo por parte destes últimos, ou, ainda, cujos órgãos de administração, de direcção ou de fiscalização sejam compostos, em mais de metade, por membros designados pelo Estado, pelas autarquias locais ou por outros organismos de direito público.”

Nesta definição encontramos diversos requisitos que constituem o conceito de organismo de direito público, sobre os quais o TJ tem-se pronunciado em diversos acórdãos. Como exemplo, podemos referir a propósito do critério da satisfação de necessidades de interesse geral que não tenham carácter industrial ou comercial, o Acórdão Mannesmann, onde o TJ afirma que a directiva delimita o seu âmbito de aplicação não só às entidades tradicionalmente qualificadas como de direito público, mas também a entidades privadas que prosseguem objectivos de interesse geral que não seja comercial ou industrial, sendo assim qualificados como organismos de direito público.

Quanto a este aspecto, as Directivas de 2004, mais especificamente a Directiva relativa aos sectores clássicos, mantiveram inalterada a definição de organismo de direito público, continuando a ser a noção de poder adjudicador o elemento principal da delimitação do âmbito de aplicação das directivas.

Uma novidade que surge com a Directiva sobre os sectores especiais é a definição de direitos especiais ou exclusivos, que segundo o artº 2º 3. “são direitos atribuídos por uma autoridade competente de um Estado-Membro, através de medida legislativa, regulamentar ou administrativa tendo por efeito reservar a uma ou várias entidades o exercício de uma das actividades definidas nos artigos 2º a 7º, e afectar substancialmente a capacidade de outras entidades de exercer tal actividade”.

Por fim, é necessário saber quais os contratos que se encontram abrangidos por estas directivas.

Aqui tem que se ter em conta dois factores: a natureza dos contratos e as quantias que eles envolvem.

Relativamente à Directiva 2004/17/CEE, relativa aos sectores clássicos, temos que o seu objecto incide sobre os contratos de execução de obras, o fornecimento de bens ou a prestação de serviços. Estão excluídos os contratos secretos e alguns contratos no domínio das telecomunicações.

Quanto aos limiares a partir dos quais esta directiva se aplica, os artigos 7º a 9º referem-se a vários aspectos entre os quais, os montantes dos limiares ou os métodos de cálculo do valor estimado dos contratos públicos.
Por seu turno, a directiva sectores especiais, Directiva 2004/18/CEE, traz como grande novidade a exclusão dos contratos que dizem respeito às telecomunicações e a inclusão dos contratos sobre os serviços postais, aplicando-se então a este sector e também à área da água, energia, e transportes.

Esta directiva, quanto aos limiares, tem dois patamares, um quanto aos contratos de fornecimento e de serviços, e outro sobre contratos de obras, e a sua forma de cálculo realiza-se em consonância com a Directiva 2004/18/CEE.

Após esta explicitação, cumpre agora analisar o Acórdão “Parking Brixen”, de 13 de Outubro de 2005.

Neste caso em concreto, estamos perante o seguinte litígio: a Gemeinde Brixen recorreu à Stadtwerke Brixen, uma empresa especial que era propriedade desse município, para a gestão de determinados serviços públicos locais da sua competência, que mais tarde foi transformada numa sociedade anónima. Em 19 de Dezembro de 2002, a Gemeinde Brixen, celebrou um acordo com a Stadtwerke Brixen AG, atribuindo a esta a gestão do parque de estacionamento por um período de nove anos.

Outra empresa, a Parking Brixen  vem contestar no Verwaltungsgericht, Autonome Sektion für die Provinz Bozen, a atribuição à Stadtwerke Brixen AG da gestão dos parques de estacionamento construídos nas parcelas 491/6 e 491/11. Em seu entender, a Gemeinde Brixen deveria ter aplicado as disposições em matéria de adjudicação pública.

Ora, o que importa analisar neste caso específico é qual o entendimento que o TJ teve no que diz respeito ao tipo de contrato que foi no fundo celebrado entre a Gemeinde Brixen e a  Stadtwerke Brixen AG, se um contrato público de serviços ou se uma concessão de serviços públicos e, se for esse o caso, se pode ser celebrada sem abertura de um concurso público, isto é, se a operação realizada entre a Gemeinde Brixen e a Stadtwerke Brixen AG é conforme o direito comunitário.

Temos então que a gestão do parque de estacionamento é atribuída por um período de 9 anos à Stadtwerke Brixen AG, sendo que anteriormente era gerido pela Gemeinde Brixen, sendo que a primeira paga em contrapartida uma retribuição anual à última. Analisando a Directiva 92/50, temos que verificar se esse contrato se enquadra no contrato público de serviços na acepção desta directiva, ou se, por seu turno, a mesma não se aplica por estar em causa apenas uma concessão de serviços.

Segundo a Directiva 92/50, estamos perante um contrato público de serviços se a contrapartida é directamente paga pela entidade adjudicante ao prestador de serviços. Esta situação não sucede neste caso, visto que a quantia que é paga pela entidade adjudicante ao prestador de serviços não provém dela, mas sim de terceiros que utilizam o parque de estacionamento.

Estamos perante uma concessão de serviços pois, segundo a Advogada-geral Juliane Kokott, a concessão de serviços caracteriza‑se pelo facto de o prestador do serviço em causa receber da entidade adjudicante, como contrapartida desse serviço, o direito de explorar a sua própria prestação, que é o que sucede no caso em análise. Enquanto que nesta situação existe uma relação jurídica triangular, no contrato público de serviços apenas existe uma relação jurídica bilateral, onde como já referi a remuneração do serviço prestado é paga pela entidade adjudicante.

Assim estamos perante uma concessão de serviços pois a Stadtwerke Brixen AG assume o risco económico da gestão do parque de estacionamento, na medida em que deve financiar com as taxas de utilização que recebe não apenas os custos correntes mas, igualmente a manutenção da área de estacionamento e a compensação anual a pagar ao município.

Visto estarmos, então, perante uma concessão de serviços importa saber e analisar se esta está em conformidade com o direito comunitário, ou seja, se poderá ser realizada sem abertura de concurso público.

Penso que esta é a questão mais interessante levantada neste caso e, por isso mesmo, julgo ser necessária uma análise um pouco mais profunda sobre a mesma.

A contratação pública obedece a um conjunto de princípios comunitários resultantes da jurisprudência comunitária, que são a base a partir da qual se retira um complexo normativo que regula toda esta matéria.

As directivas comunitárias são apenas meros instrumentos para o cumprimento da igualdade, da não discriminação em razão da nacionalidade, da liberdade de prestação de serviços, de circulação de pessoas, de mercadorias, enfim da realização no fundo, do próprio mercado único.

Ou seja, podemos encontrar aqui dois vectores estruturantes e fundamentais, a igualdade e a liberdade, aos quais os Estados-Membros se encontram directamente vinculados.

Posto isto, e debruçando-me mais especificamente sobre o caso em análise, estamos então perante o respeito pelo princípio da igualdade e, mais concretamente a abertura de concurso público que é o expoente máximo do princípio atrás referido.

O princípio da igualdade como sabemos é um princípio basilar no ordenamento jurídico comunitário. É muito importante para as administrações públicas nacionais, uma vez que vincula os entes públicos em sede da liberdade que têm na prossecução das suas funções.

A igualdade é, então, uma das pedras basilares da construção europeia e como tal, no âmbito da contratação pública encontra-se também consagrada como um dos princípios estruturantes.

Isto sucede de tal forma que existe um objectivo de harmonizar as legislações nacionais que, devido à sua disparidade, possam comprometer a realização efectiva deste princípio. Na contratação pública, o facto de existirem diferentes legislações nacionais constitui um obstáculo, pois torna-se um factor quer de discriminação, quer de afrouxamento às liberdades de circulação no espaço europeu.

Assim, na contratação pública pretende-se concretizar efectivamente este princípio através da harmonização dos regimes jurídicos, da igualdade de oportunidades, da igualdade de tratamento entre todos os operadores económicos que possam estar interessados na celebração de um contrato público, enfim, de um conjunto de regras e procedimentos que consigam eliminar todos os factores que possam obstar à efectiva realização deste princípio.

Então, torna-se pertinente saber se o facto de não ter aberto concurso público para a realização da concessão de serviços presente no caso em apreço, poderá ser contrário àquilo que o Tratado e a própria jurisprudência do TJ têm vindo a defender.

 Ora, se uma das pretensões é a igualdade de tratamento e a igualdade de oportunidades, parece-me desde já, que este caso poderá, mesmo não se encontrando abrangido pela directiva, ser contrário aos princípios comunitários pois não há abertura de concurso.

Como já referi, a concessão de serviços não se encontra no âmbito de aplicação da directiva 92/50, no entanto, as entidades adjudicantes que celebram este tipo de contratos devem respeitar os princípios e regras do Tratado.

O concurso, ou abertura de concurso, constitui exactamente o procedimento onde se verifica o expoente máximo da concretização do princípio da igualdade enquanto igualdade de oportunidades para os operadores económicos que estejam interessados em contratar.

 Assim, e como refere o TJ no acórdão “Teleaustria”, existe a obrigação da realização de procedimentos abertos para que todos os potenciais concorrentes e interessados na realização de determinado contrato possam exercer o seu direito. Além disso, é expressão da própria igualdade de tratamento o artº 12º CE, onde está proibida qualquer discriminação em razão da nacionalidade.

Salienta-se aqui o facto de que para o TJ o “princípio da igualdade de tratamento dos concorrentes visa que todos os concorrentes disponham das mesmas possibilidades na formulação dos termos das suas propostas, e isto independentemente da sua nacionalidade” (Acórdão de 25 de Abril de 1996, Comissão/Bélgica, C‑87/94).

Mas para que isto seja possível, é necessário, no meu ponto de vista, a existência de concurso público, pois só assim é que todos os possíveis concorrentes poderão estar em pé de igualdade.

Neste caso em concreto e mesmo tratando-se de um contrato de concessão de serviços, este encontra-se abrangido por este princípio, ou seja, esta igualdade de tratamento que é defendida pelo TJ deve regular também este tipo de contratos.

O TJ entende neste acórdão e também noutros casos como o “Coname”, ou “ANAV” que a igualdade só é alcançada na sua plenitude quando existe “um grau de publicidade adequado para garantir a abertura à concorrência de contratos”, independentemente dos contratos estarem ou não abrangidos pelas regras especificas da contratação pública, como é o caso.

Deve existir aqui uma obrigação de transparência por parte da entidade adjudicante que sirva para garantir esse grau de publicidade, mas também a existência de imparcialidade em todo este processo.

A contratação pública tem em vista como sabemos a concretização do mercado único e, portanto, deve ser um garante da própria concorrência. Assim sendo, a ausência total de concorrência mesmo tratando-se de um caso de atribuição de uma concessão de serviços públicos como a que está aqui em causa, não é conforme com as exigências dos artigos 43.º CE e 49.º CE, bem como com os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação e da transparência já referidos.

Neste caso concreto, uma das partes no litígio refere que “os artigos 43.º CE a 55.º CE não são aplicáveis a uma situação como a do processo principal, porque se trata de uma situação puramente interna de um único Estado‑Membro, uma vez que a Parking Brixen, a Stadtwerke Brixen AG e a Gemeinde Brixen têm todas a sua sede em Itália.”

No entanto, e segundo o TJ, isto não releva para o caso em si, visto que a inexistência de publicidade e de abertura à concorrência da atribuição de uma concessão de serviços públicos, é já uma discriminação, ainda que potencial, a empresas de outros Estados-Membros, pois estas não podem exercer correctamente, a sua liberdade de estabelecimento e de fornecimento de serviços.

Depois de tudo isto, conclui-se então, que nenhum Estado-Membro deve ter na sua legislação nacional qualquer tipo de regra ou norma que permita a atribuição de concessões de serviços públicos sem abertura de concurso, uma vez que tal atribuição viola os artigos 43.º CE ou 49.º CE ou os princípios da igualdade de tratamento, da não discriminação e da transparência.

CONCLUSÃO
Penso que depois desta exposição se conseguiu perceber um pouco melhor quais os passos que a U.E. tem vindo a dar ao nível da contratação pública.

A evolução tem vindo a ser considerável e a Reforma de 2004, mesmo que se vá deparando com obstáculos tem vindo a desempenhar um papel importantíssimo ao nível da prossecução daquilo que são hoje os objectivos comunitários da Administração europeia.

Além disso, o Tribunal de Justiça tem também desempenhado uma função de especial relevo, como vimos através deste acórdão. Nele, foi possível descortinar um alargamento da aplicação das directivas comunitárias e uma defesa dos próprios princípios comunitários, visto que estes se impõem e opõem-se ao facto de uma entidade pública atribuir, sem abertura de concurso, uma concessão de serviços públicos a uma sociedade anónima que resultou de uma transformação de uma empresa especial dessa mesma autoridade pública, indo ao encontro da linha de orientação que tem vindo a ser seguida e que contribui para uma afirmação cada vez maior da jurisprudência “principialista”.




Por Pedro Cruz


Junho de 2011



Sem comentários:

Enviar um comentário