segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Concessões De Serviço Público/Acórdão Coname do TJUE





No âmbito da aplicação das Directivas Comunitárias surge uma questão fundamental, que é a de saber se os contratos de concessão de serviço público estão sujeitos ao regime jurídico comunitário. Na minha opinião esta é uma questão com bastante importância e, por isso, irei abordá-la, ainda que de forma breve, nesta exposição.
Nas últimas décadas tem-se assistido a uma redescoberta de concessões, que pouco têm a ver com as tradicionais concessões do século XIX. Cada vez mais pertence ao passado o conceito clássico de serviço público relatado no nosso país, por Marques Guedes, ou Marcello Caetano, surgindo, então novos tipos de concessões: as redes transeuropeias de transportes; as SCUT; sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos, entre muitos outros.
Estes novos rostos das concessões de serviço público necessitam de uma correcta e indispensável compreensão, uma vez que assumem especial relevância no actual contexto comunitário e nacional; contexto esse que é cada vez mais marcado pelas privatizações, liberalizações, abertura à concorrência e internacionalização dos contratos públicos, e por um Estado e uma Europa reguladores.
Neste novo contexto, o Estado deixa um pouco de lado a sua tradicional função de execução, para passar a assumir uma tarefa de controlo e garantia, ou seja, tem uma responsabilidade de controlo e fiscalização.
O conceito de concessão de serviço público está também em causa, pois os critérios tradicionais como a natureza do serviço, a natureza jurídica das partes, o modo de remuneração do concessionário, etc, foram também postos em causa.
Assim cumpre analisar um pouco mais a evolução que foi acontecendo no direito comunitário nesta matéria e também as posições que foram adoptadas pelo próprio Tribunal de Justiça (TJ) ao longo dos tempos.

Ora, alguns autores têm-se referido a este tema, afirmando que tem existido uma indiferença comunitária em relação às concessões de serviço público. Esta indiferença é baseada em algumas razões, sendo o carácter intuitu personae deste tipo de contratos, uma delas.
No entanto, esta indiferença pode ser explicada através de outros aspectos, como por exemplo, as divergências existentes entre os vários modelos nacionais tradicionais. Ou seja, este é um aspecto importante, pois existe, como seria de esperar, uma oposição entres os países nos quais a investidura de parceiros privados encarregados de explorar um serviço público se faz por via unilateral, como é o caso da Alemanha, e os países em que tal se concretiza pela via contratual, entre eles a França. Daí advém o risco de fazer depender o regime jurídico através do qual uma entidade pública confia a uma entidade privada a exploração de um serviço público, apenas pelo modo de investidura.
Esta indiferença também está presente nas várias directivas que foram surgindo, como a Directiva 92/50/CEE, e 93/38/CEE. Elas não acolheram as propostas da Comissão, no sentido da sua aplicação aos contratos de concessão de serviços públicos, não contendo as mesmas directivas, qualquer tipo de regras sobre a concessão de serviços e sobre a própria relação concedente-concessionário.
Não obstante isto, as concessões de serviço público vão estar sujeitas ao direito comunitário e ao respeito pelos seus princípios fundamentais, como é o caso do princípio da publicidade, transparência e não discriminação.
Mas antes de partir para a análise dessa viragem que ocorreu no seio deste regime, penso ser importante atentar em alguns aspectos, que podem ajudar a explicar o motivo pelo qual este foi um processo demorado.
Uma questão desde logo difícil de gerir foi a conciliação entre o conceito de serviço público e as regras relativas à concorrência. Os contratos de gestão de serviços públicos ao implicarem que a actividade administrativa vá ser desempenhada por um particular, supõem desde logo a publicatio da actividade. Isto fazia com que fosse necessário definir o regime jurídico fundamental de um serviço público, antes de proceder à contratação da sua gestão.

Por outro lado, temos que devido ao processo de liberalização que tem acontecido, sectores como o das telecomunicações, gás, electricidade, entre outros, exigem previamente uma despublicatio, através da qual devolvem ao mercado esses serviços.
Outro ponto que convém analisar prende-se com a própria definição comunitária de serviço público.
Este sector sofreu profundas mudanças, na Europa, nas últimas décadas. Eram sectores em que muitas das actividades eram exercidas em regime de monopólio e que depois foram liberalizadas. Ou seja, estávamos perante sectores que devido à necessidade de avultados investimentos estavam praticamente fechados à iniciativa privada, tratando-se sobretudo de actividades que os Estados desenvolviam.
No entanto, o progresso tecnológico que naturalmente aconteceu permitiu que em alguns sectores como por exemplo, a concorrência na rede, se desse a separação entre a rede e os serviços, deixando o Estado de ter o dever de assegurar directamente a prestação de serviços.
Assim sendo, temos que para o TJ o serviço público terá que ter como características principais a universalidade, a continuidade, a satisfação de exigências de interesse público, a regulamentação e a vigilância pela autoridade pública.
A grande mudança que ocorre no regime comunitário das concessões dá-se em 2000, com a “Comunicação interpretativa sobre as concessões em Direito Comunitário”, levada a cabo pela Comissão. A Comissão vem esclarecer os operadores económicos acerca das muitas dúvidas que existiam, e pondo em causa a tradicional tese da livre escolha do concessionário.
De acordo com esta Comunicação, a noção comunitária de concessão tem de ser independente da qualificação jurídica dada por cada Estado-membro. Ou seja, a Comissão pretende formular uma definição comunitária de concessão e, portanto, independente das qualificações jurídicas nacionais.

Seguindo a linha de orientação da comunicação, as concessões são actos que devem ser imputáveis ao Estado, pelos quais uma autoridade pública confia a um terceiro, a gestão total ou parcial de serviços que sejam geralmente da sua responsabilidade e pelos quais o terceiro assume os riscos da exploração, através quer de um acto contratual, quer de um acto unilateral, com consentimento do terceiro.
Temos então, que a concepção comunitária sobre a concessão de serviço público parece ser mais restritiva do que a concepção nacional. Esta afirma que os elementos fundamentais da concessão se esgotam no facto de uma pessoa, titular de um serviço público atribuir a outra “direito de, em seu próprio nome, organizar, explorar e gerir esse serviço.” Por seu turno, a Comunicação da Comissão estabelece a existência de um risco de exploração do serviço público a cargo do concessionário, como condição sine qua non de qualquer concessão.
Além disto, a Comunicação refere que as concessões devem respeitar os princípios e as regras relativas à livre circulação de mercadorias, ao direito de estabelecimento e à livre prestação de serviços.
Através disto, conclui-se que o regime jurídico aplicável às concessões de serviço público deve seguir e sujeitar-se a estes princípios e também ao princípio da igualdade de tratamento, da transparência, da proporcionalidade, do reconhecimento mútuo e da não discriminação.
Não obstante isto, a Comunicação lembra que há excepções a estes princípios, como são exemplo os artigos 30º, 45º, 46º e 55º da mesma.
Além destas excepções, temos as que resultam da jurisprudência do TJ. Ele entende que por causa de razões imperiosas de interesse geral, se podem justificar medidas nacionais restritivas. Estas medidas não podem, contudo ser discriminatórias, em razão da nacionalidade. Devem, sim, prosseguir um fim de interesse geral; e têm de ser necessárias e proporcionais.
Importa também lembrar que a Comissão afirma que “quando uma concessão chega ao seu termo, a sua renovação equivale a uma nova concessão e, portanto, estará coberta pela presente comunicação”.

O objectivo da Comissão parece claro, pois bastava que existisse nos contratos a hipótese de renovações sucessivas, para que se defraudasse por completo a legislação que se aplica aos procedimentos adjudicatórios.
Posto isto, e para melhor se compreender esta temática, penso ser interessante proceder a análise de um acórdão do TJ.
Esta área tem sido fértil em jurisprudência marcante por parte do TJ, podendo-se encontrar vários acórdãos importantes e que deram grande contributo para a integração europeia.
Na área das concessões, o acórdão de referência como não podia deixar de ser, é o Acórdão Telaustria. Podemos afirmar que este acórdão funciona como alavanca para todos os que surgirão depois dele. Ora a minha análise incidirá precisamente sobre um deles, neste caso o processo C-231/03, acórdão Coname.
Neste caso em concreto estamos perante o seguinte litígio: “o Coname celebrou com o município de Cingia de’ Botti um contrato para a adjudicação do serviço relativo à manutenção, gestão e vigilância da rede de gás metano para o período de 1 de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2000.   Por carta de 30 de Dezembro de 1999, o referido município informou o Coname que, por deliberação de 21 de Dezembro de 1999, o conselho municipal atribuiu à Padania o serviço relativo à gestão, distribuição e manutenção de instalações de distribuição de gás metano para o período de 1 de Janeiro de 2000 a 31 de Dezembro de 2005. Esta última sociedade é constituída maioritariamente por capitais públicos, detidos pela província de Cremona e pela quase totalidade dos municípios dessa província. O município di Cingia de’ Botti detém uma participação no capital desta sociedade de 0,97%. O serviço em causa no processo principal foi atribuído à Padania por adjudicação directa, nos termos do artigo 22.°, terceiro parágrafo, alínea e), da Lei n.° 142/1990.”
O Coname vem então contestar, pedindo ao órgão jurisdicional de reenvio, designadamente, a anulação da deliberação de 21 de Dezembro de 1999, alegando  que a adjudicação do referido serviço devia ser efectuada por concurso público.

O que está aqui em causa é saber se este caso tem que estar subordinado aos princípios comunitários como a não discriminação em razão da nacionalidade que depois implica uma obrigação de transparência.
Visto estarmos perante uma concessão de serviços importa saber e analisar se esta está em conformidade com o direito comunitário, ou seja, se poderá ser realizada sem abertura de concurso público.
Penso que esta é a questão mais interessante levantada neste caso e, por isso mesmo, julgo ser necessária uma análise um pouco mais profunda sobre a mesma.
A contratação pública obedece a um conjunto de princípios comunitários resultantes da jurisprudência comunitária, que são a base a partir da qual se retira um complexo normativo que regula toda esta matéria.
No caso, o Coname alega que estes princípios não foram verificados, pois a adjudicação não respondeu às exigências de transparência, ou seja, não foi realizado o concurso público.
Ora, como sabemos o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade é um princípio estruturante de todo o direito comunitário juntamente com o princípio da igualdade.
O TJ afirma que além das instituições comunitárias, este princípio vincula também os Estados-Membros, que não podem introduzir nas suas legislações novos tipos de discriminações e devem eliminar qualquer tipo de prática discriminatória.
Ao longo dos anos, a jurisprudência do TJ tem sido clara sobre esta matéria e tem afirmado em vários acórdãos que as entidades adjudicantes são obrigadas a respeitar as regras fundamentais do Tratado e em especial este princípio.
Outro princípio fundamental é o princípio da igualdade, pois é muito importante para as administrações públicas nacionais, uma vez que vincula os entes públicos em sede da liberdade que têm na prossecução das suas funções.
A igualdade é, então, uma das pedras basilares da construção europeia e como tal, no âmbito da contratação pública encontra-se também consagrada como um dos princípios estruturantes.

Na contratação pública pretende-se concretizar efectivamente este princípio através da harmonização dos regimes jurídicos, da igualdade de oportunidades, da igualdade de tratamento entre todos os operadores económicos que possam estar interessados na celebração de um contrato público, enfim, de um conjunto de regras e procedimentos que consigam eliminar todos os factores que possam obstar à efectiva realização deste princípio.
Deste modo, se uma das pretensões é a igualdade de tratamento e a igualdade de oportunidades, parece-me desde já, que este caso poderá ser contrário aos princípios comunitários pois não há abertura de concurso.
Neste caso, além disto, temos também que analisar a transparência e a publicidade. No seguimento do Acórdão Telaustria, o TJ tem defendido que a transparência se consegue assegurar através da publicidade. Ambas devem ser observadas pelas entidades concedentes ao longo de um procedimento pré-contratual que é obrigatório e que vincula todos os Estados-Membros, devendo ser respeitado por todas as entidades e tendo os tribunais nacionais a tarefa de sancionar a sua não aplicação.
Parece, então, no seguimento de toda esta explicitação que no caso em análise o Coname deve ver a sua pretensão atendida, visto que a não abertura de concurso público, ou seja, a existência de uma adjudicação directa, contraria todos os princípios e toda a jurisprudência comunitária.
Não obstante isto, este acórdão levanta uma situação interessante. Como refere a Advogada-Geral, nas suas conclusões, podem existir situações em que “seja possível efectuar o ajuste directo, isto é, um processo de adjudicação sem publicação prévia de anúncio de concurso.”
Poderão, segundo ela, existir situações em que devido ao valor e ao objecto da adjudicação tal possa ser realizado por adjudicação directa, respeitando da mesma forma as liberdades fundamentais.
O TJ segue um pouco esta linha de orientação no caso Coname, afirmando que quando haja situações em que estejam em causa interesses económicos muito reduzidos, poderá haver a dispensa da realização de uma adjudicação aberta a todos, o que não é o caso.

Neste processo, o TJ afirma que “não resulta dos autos que, devido a circunstâncias especiais, tais como um interesse económico muito reduzido, se possa razoavelmente defender que uma empresa situada num Estado‑Membro diferente do do comune di Cingia de’ Botti não estaria interessada na concessão em causa e que os efeitos nas liberdades fundamentais em causa seriam, portanto, considerados demasiado aleatórios e demasiado indirectos para se poder concluir que os mesmos foram eventualmente violados”, mas abre desde logo este precedente.
Na minha opinião e de acordo com vários autores, como Cláudia Viana, esta é uma decisão muito vaga, pois não esclarece quanto ao valor do contrato que deve ser considerado para os efeitos de realização do procedimento de adjudicação, criando também um novo factor de distinção relativos aos contratos públicos e ao regime jurídico que lhe vai ser aplicado.
Assim sendo, e não obstante esta questão levantada por este caso, a conclusão a tirar do mesmo é a seguinte: como sabemos os artigos 43º e 49º do CE opõem-se à adjudicação directa e como tal deve-se respeitar o Tratado e os seus princípios, que determinam a existência de concurso público. Ou seja, no caso, não pode haver adjudicação directa por um município de uma concessão relativa à gestão do serviço público de distribuição de gás a uma sociedade de capitais maioritariamente públicos da qual esse município detenha uma participação de 0,97% do capital.
Tal sucede porque esta concessão pode interessar a uma outra empresa situada noutro Estado-Membro, e como tal a não existência de transparência no processo de adjudicação constitui uma violação aos princípios constantes no Tratado, levando a uma diferença de tratamento, pois uma empresa que esteja sedeada noutro Estado-Membro não tem hipótese de manifestar o seu interesse na obtenção da concessão referida neste processo.
Desta forma, a inexistência de publicidade e de abertura à concorrência da atribuição de uma concessão de serviços públicos, é já uma discriminação, ainda que potencial, a empresas de outros Estados-Membros, pois estas não podem exercer correctamente, a sua liberdade de estabelecimento e de fornecimento de serviços.




Por Pedro Cruz


Junho de 2011



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