No
âmbito da aplicação das Directivas Comunitárias surge uma questão fundamental,
que é a de saber se os contratos de concessão de serviço público estão sujeitos
ao regime jurídico comunitário. Na minha opinião esta é uma questão com bastante
importância e, por isso, irei abordá-la, ainda que de forma breve, nesta
exposição.
Nas
últimas décadas tem-se assistido a uma redescoberta de concessões, que pouco
têm a ver com as tradicionais concessões do século XIX. Cada vez mais pertence
ao passado o conceito clássico de serviço público relatado no nosso país, por
Marques Guedes, ou Marcello Caetano, surgindo, então novos tipos de concessões:
as redes transeuropeias de transportes; as SCUT; sistemas multimunicipais e
municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público,
de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de
resíduos sólidos, entre muitos outros.
Estes
novos rostos das concessões de serviço público necessitam de uma correcta e
indispensável compreensão, uma vez que assumem especial relevância no actual
contexto comunitário e nacional; contexto esse que é cada vez mais marcado
pelas privatizações, liberalizações, abertura à concorrência e internacionalização
dos contratos públicos, e por um Estado e uma Europa reguladores.
Neste
novo contexto, o Estado deixa um pouco de lado a sua tradicional função de
execução, para passar a assumir uma tarefa de controlo e garantia, ou seja, tem
uma responsabilidade de controlo e fiscalização.
O
conceito de concessão de serviço público está também em causa, pois os
critérios tradicionais como a natureza do serviço, a natureza jurídica das
partes, o modo de remuneração do concessionário, etc, foram também postos em
causa.
Assim
cumpre analisar um pouco mais a evolução que foi acontecendo no direito
comunitário nesta matéria e também as posições que foram adoptadas pelo próprio
Tribunal de Justiça (TJ) ao longo dos tempos.
Ora,
alguns autores têm-se referido a este tema, afirmando que tem existido uma
indiferença comunitária em relação às concessões de serviço público. Esta
indiferença é baseada em algumas razões, sendo o carácter intuitu personae deste tipo de contratos, uma delas.
No
entanto, esta indiferença pode ser explicada através de outros aspectos, como
por exemplo, as divergências existentes entre os vários modelos nacionais
tradicionais. Ou seja, este é um aspecto importante, pois existe, como seria de
esperar, uma oposição entres os países nos quais a investidura de parceiros
privados encarregados de explorar um serviço público se faz por via unilateral,
como é o caso da Alemanha, e os países em que tal se concretiza pela via contratual,
entre eles a França. Daí advém o risco de fazer depender o regime jurídico através
do qual uma entidade pública confia a uma entidade privada a exploração de um
serviço público, apenas pelo modo de investidura.
Esta
indiferença também está presente nas várias directivas que foram surgindo, como
a Directiva 92/50/CEE, e 93/38/CEE. Elas não acolheram as propostas da
Comissão, no sentido da sua aplicação aos contratos de concessão de serviços
públicos, não contendo as mesmas directivas, qualquer tipo de regras sobre a
concessão de serviços e sobre a própria relação concedente-concessionário.
Não
obstante isto, as concessões de serviço público vão estar sujeitas ao direito
comunitário e ao respeito pelos seus princípios fundamentais, como é o caso do
princípio da publicidade, transparência e não discriminação.
Mas
antes de partir para a análise dessa viragem que ocorreu no seio deste regime,
penso ser importante atentar em alguns aspectos, que podem ajudar a explicar o
motivo pelo qual este foi um processo demorado.
Uma
questão desde logo difícil de gerir foi a conciliação entre o conceito de
serviço público e as regras relativas à concorrência. Os contratos de gestão de
serviços públicos ao implicarem que a actividade administrativa vá ser
desempenhada por um particular, supõem desde logo a publicatio da actividade. Isto fazia com que fosse necessário
definir o regime jurídico fundamental de um serviço público, antes de proceder
à contratação da sua gestão.
Por
outro lado, temos que devido ao processo de liberalização que tem acontecido,
sectores como o das telecomunicações, gás, electricidade, entre outros, exigem
previamente uma despublicatio,
através da qual devolvem ao mercado esses serviços.
Outro
ponto que convém analisar prende-se com a própria definição comunitária de
serviço público.
Este
sector sofreu profundas mudanças, na Europa, nas últimas décadas. Eram sectores
em que muitas das actividades eram exercidas em regime de monopólio e que
depois foram liberalizadas. Ou seja, estávamos perante sectores que devido à
necessidade de avultados investimentos estavam praticamente fechados à
iniciativa privada, tratando-se sobretudo de actividades que os Estados
desenvolviam.
No
entanto, o progresso tecnológico que naturalmente aconteceu permitiu que em
alguns sectores como por exemplo, a concorrência na rede, se desse a separação
entre a rede e os serviços, deixando o Estado de ter o dever de assegurar
directamente a prestação de serviços.
Assim
sendo, temos que para o TJ o serviço público terá que ter como características
principais a universalidade, a continuidade, a satisfação de exigências de
interesse público, a regulamentação e a vigilância pela autoridade pública.
A grande
mudança que ocorre no regime comunitário das concessões dá-se em 2000, com a “Comunicação interpretativa sobre as
concessões em Direito Comunitário”, levada a cabo pela Comissão. A Comissão
vem esclarecer os operadores económicos acerca das muitas dúvidas que existiam,
e pondo em causa a tradicional tese da livre escolha do concessionário.
De
acordo com esta Comunicação, a noção comunitária de concessão tem de ser
independente da qualificação jurídica dada por cada Estado-membro. Ou seja, a
Comissão pretende formular uma definição comunitária de concessão e, portanto,
independente das qualificações jurídicas nacionais.
Seguindo
a linha de orientação da comunicação, as concessões são actos que devem ser
imputáveis ao Estado, pelos quais uma autoridade pública confia a um terceiro,
a gestão total ou parcial de serviços que sejam geralmente da sua
responsabilidade e pelos quais o terceiro assume os riscos da exploração,
através quer de um acto contratual, quer de um acto unilateral, com
consentimento do terceiro.
Temos
então, que a concepção comunitária sobre a concessão de serviço público parece
ser mais restritiva do que a concepção nacional. Esta afirma que os elementos
fundamentais da concessão se esgotam no facto de uma pessoa, titular de um
serviço público atribuir a outra “direito
de, em seu próprio nome, organizar, explorar e gerir esse serviço.” Por seu turno, a Comunicação da Comissão estabelece
a existência de um risco de exploração do serviço público a cargo do
concessionário, como condição sine qua
non de qualquer concessão.
Além
disto, a Comunicação refere que as concessões devem respeitar os princípios e
as regras relativas à livre circulação de mercadorias, ao direito de
estabelecimento e à livre prestação de serviços.
Através
disto, conclui-se que o regime jurídico aplicável às concessões de serviço
público deve seguir e sujeitar-se a estes princípios e também ao princípio da
igualdade de tratamento, da transparência, da proporcionalidade, do
reconhecimento mútuo e da não discriminação.
Não
obstante isto, a Comunicação lembra que há excepções a estes princípios, como
são exemplo os artigos 30º, 45º, 46º e 55º da mesma.
Além
destas excepções, temos as que resultam da jurisprudência do TJ. Ele entende
que por causa de razões imperiosas de interesse geral, se podem justificar
medidas nacionais restritivas. Estas medidas não podem, contudo ser
discriminatórias, em razão da nacionalidade. Devem, sim, prosseguir um fim de
interesse geral; e têm de ser necessárias e proporcionais.
Importa
também lembrar que a Comissão afirma que “quando
uma concessão chega ao seu termo, a sua renovação equivale a uma nova concessão
e, portanto, estará coberta pela presente comunicação”.
O
objectivo da Comissão parece claro, pois bastava que existisse nos contratos a
hipótese de renovações sucessivas, para que se defraudasse por completo a
legislação que se aplica aos procedimentos adjudicatórios.
Posto
isto, e para melhor se compreender esta temática, penso ser interessante
proceder a análise de um acórdão do TJ.
Esta
área tem sido fértil em jurisprudência marcante por parte do TJ, podendo-se
encontrar vários acórdãos importantes e que deram grande contributo para a
integração europeia.
Na área
das concessões, o acórdão de referência como não podia deixar de ser, é o
Acórdão Telaustria. Podemos afirmar
que este acórdão funciona como alavanca para todos os que surgirão depois dele.
Ora a minha análise incidirá precisamente sobre um deles, neste caso o processo
C-231/03, acórdão Coname.
Neste
caso em concreto estamos perante o seguinte litígio: “o Coname celebrou com o município de Cingia de’ Botti um contrato para
a adjudicação do serviço relativo à manutenção, gestão e vigilância da rede de
gás metano para o período de 1 de Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de
2000. Por carta de 30 de Dezembro de 1999, o referido
município informou o Coname que, por deliberação de 21 de Dezembro de 1999, o
conselho municipal atribuiu à Padania o serviço relativo à gestão, distribuição
e manutenção de instalações de distribuição de gás metano para o período de 1
de Janeiro de 2000 a 31 de Dezembro de 2005. Esta última sociedade é
constituída maioritariamente por capitais públicos, detidos pela província de
Cremona e pela quase totalidade dos municípios dessa província. O município di
Cingia de’ Botti detém uma participação no capital desta sociedade de 0,97%. O
serviço em causa no processo principal foi atribuído à Padania por adjudicação
directa, nos termos do artigo 22.°, terceiro parágrafo, alínea e), da Lei
n.° 142/1990.”
O Coname
vem então contestar, pedindo ao órgão jurisdicional de reenvio, designadamente,
a anulação da deliberação de 21 de Dezembro de 1999, alegando que a adjudicação do referido serviço devia
ser efectuada por concurso público.
O que
está aqui em causa é saber se este caso tem que estar subordinado aos
princípios comunitários como a não discriminação em razão da nacionalidade que
depois implica uma obrigação de transparência.
Visto
estarmos perante uma concessão de serviços importa saber e analisar se esta
está em conformidade com o direito comunitário, ou seja, se poderá ser
realizada sem abertura de concurso público.
Penso
que esta é a questão mais interessante levantada neste caso e, por isso mesmo,
julgo ser necessária uma análise um pouco mais profunda sobre a mesma.
A
contratação pública obedece a um conjunto de princípios comunitários
resultantes da jurisprudência comunitária, que são a base a partir da qual se
retira um complexo normativo que regula toda esta matéria.
No caso,
o Coname alega que estes princípios não foram verificados, pois a adjudicação
não respondeu às exigências de transparência, ou seja, não foi realizado o
concurso público.
Ora,
como sabemos o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade é um
princípio estruturante de todo o direito comunitário juntamente com o princípio
da igualdade.
O TJ
afirma que além das instituições comunitárias, este princípio vincula também os
Estados-Membros, que não podem introduzir nas suas legislações novos tipos de
discriminações e devem eliminar qualquer tipo de prática discriminatória.
Ao longo
dos anos, a jurisprudência do TJ tem sido clara sobre esta matéria e tem
afirmado em vários acórdãos que as entidades adjudicantes são obrigadas a
respeitar as regras fundamentais do Tratado e em especial este princípio.
Outro
princípio fundamental é o princípio da igualdade, pois é muito importante para
as administrações públicas nacionais, uma vez que vincula os entes públicos em
sede da liberdade que têm na prossecução das suas funções.
A
igualdade é, então, uma das pedras basilares da construção europeia e como tal,
no âmbito da contratação pública encontra-se também consagrada como um dos
princípios estruturantes.
Na
contratação pública pretende-se concretizar efectivamente este princípio
através da harmonização dos regimes jurídicos, da igualdade de oportunidades,
da igualdade de tratamento entre todos os operadores económicos que possam
estar interessados na celebração de um contrato público, enfim, de um conjunto
de regras e procedimentos que consigam eliminar todos os factores que possam
obstar à efectiva realização deste princípio.
Deste
modo, se uma das pretensões é a igualdade de tratamento e a igualdade de
oportunidades, parece-me desde já, que este caso poderá ser contrário aos
princípios comunitários pois não há abertura de concurso.
Neste
caso, além disto, temos também que analisar a transparência e a publicidade. No
seguimento do Acórdão Telaustria, o
TJ tem defendido que a transparência se consegue assegurar através da
publicidade. Ambas devem ser observadas pelas entidades concedentes ao longo de
um procedimento pré-contratual que é obrigatório e que vincula todos os
Estados-Membros, devendo ser respeitado por todas as entidades e tendo os
tribunais nacionais a tarefa de sancionar a sua não aplicação.
Parece,
então, no seguimento de toda esta explicitação que no caso em análise o Coname
deve ver a sua pretensão atendida, visto que a não abertura de concurso
público, ou seja, a existência de uma adjudicação directa, contraria todos os
princípios e toda a jurisprudência comunitária.
Não
obstante isto, este acórdão levanta uma situação interessante. Como refere a
Advogada-Geral, nas suas conclusões, podem existir situações em que “seja possível efectuar o ajuste directo,
isto é, um processo de adjudicação sem publicação prévia de anúncio de
concurso.”
Poderão,
segundo ela, existir situações em que devido ao valor e ao objecto da
adjudicação tal possa ser realizado por adjudicação directa, respeitando da
mesma forma as liberdades fundamentais.
O TJ
segue um pouco esta linha de orientação no caso Coname, afirmando que quando
haja situações em que estejam em causa interesses económicos muito reduzidos,
poderá haver a dispensa da realização de uma adjudicação aberta a todos, o que
não é o caso.
Neste
processo, o TJ afirma que “não resulta
dos autos que, devido a circunstâncias especiais, tais como um interesse
económico muito reduzido, se possa razoavelmente defender que uma empresa
situada num Estado‑Membro diferente do do comune di Cingia de’ Botti não
estaria interessada na concessão em causa e que os efeitos nas liberdades
fundamentais em causa seriam, portanto, considerados demasiado aleatórios e
demasiado indirectos para se poder concluir que os mesmos foram eventualmente
violados”, mas abre desde logo este precedente.
Na minha
opinião e de acordo com vários autores, como Cláudia Viana, esta é uma decisão
muito vaga, pois não esclarece quanto ao valor do contrato que deve ser
considerado para os efeitos de realização do procedimento de adjudicação,
criando também um novo factor de distinção relativos aos contratos públicos e
ao regime jurídico que lhe vai ser aplicado.
Assim sendo,
e não obstante esta questão levantada por este caso, a conclusão a tirar do
mesmo é a seguinte: como sabemos os artigos 43º e 49º do CE opõem-se à adjudicação
directa e como tal deve-se respeitar o Tratado e os seus princípios, que
determinam a existência de concurso público. Ou seja, no caso, não pode haver
adjudicação directa por um município de uma concessão relativa à gestão do
serviço público de distribuição de gás a uma sociedade de capitais
maioritariamente públicos da qual esse município detenha uma participação de
0,97% do capital.
Tal sucede
porque esta concessão pode interessar a uma outra empresa situada noutro
Estado-Membro, e como tal a não existência de transparência no processo de
adjudicação constitui uma violação aos princípios constantes no Tratado,
levando a uma diferença de tratamento, pois uma empresa que esteja sedeada
noutro Estado-Membro não tem hipótese de manifestar o seu interesse na obtenção
da concessão referida neste processo.
Desta
forma, a inexistência de publicidade e de abertura à concorrência da atribuição
de uma concessão de serviços públicos, é já uma discriminação, ainda que
potencial, a empresas de outros Estados-Membros, pois estas não podem exercer
correctamente, a sua liberdade de estabelecimento e de fornecimento de
serviços.
Por Pedro Cruz
Junho de 2011
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