O
processo de integração europeia tem vindo a evoluir gradualmente ao longo das
décadas. Nesse espaço de tempo, temos assistido a vários momentos de avanços e
recuos, dúvidas e certezas, triunfos e receios.
Apesar
de tudo isto a União Europeia tem-se vindo a afirmar cada vez mais no panorama
internacional, quer como força política, quer também como aglutinadora de
vários povos, culturas, religiões, em suma, cidadãos.
O
acórdão sobre o qual me debruço, além de se enquadrar numa das matérias que
achei mais interessante ao longo da unidade curricular e que me suscitou mais
interesse, insere-se também, neste contexto de conquista que, no meu ponto de
vista, devemos desejar para efectivamente podermos estar perante uma verdadeira
integração, uma verdadeira união.
Neste
caso específico o Tribunal de Justiça indicia já uma abertura para uma nova
forma de protecção do cidadão europeu que poderá fundar-se na cidadania
europeia. Ou seja, no futuro podemos ter uma maior protecção do indivíduo, pois
este irá beneficiar do estatuto de cidadão europeu.
Por tudo
isto, penso ser de enorme interesse uma análise mais cuidada a este processo,
que nos revela um progresso inicial a nível jurisprudencial por parte do
Tribunal de Justiça que poderá vir a ser de grande importância no futuro.
O
processo C-456/02 aborda temas bastante interessantes para o ordenamento
jurídico europeu, nomeadamente a livre circulação de pessoas, a cidadania da
União Europeia, e o direito de residência.
Em causa
está a apreciação por parte do Tribunal de Justiça do litígio que opõe Michel
Trojani e o Centre public d´aide sociale de Bruxelles (CPAS).
M. Trojani
é um cidadão francês que após ter residido na Bélgica, em 1972, durante um
pequeno período de tempo, regressou a este país em 2000. Inicialmente, residiu
num parque de campismo em Blankenberge, sem se registar, e, a partir de
Dezembro de 2001, em Bruxelas. A partir de 8 de Janeiro de 2002, foi acolhido
numa casa do Exército de Salvação, onde, a troco de alojamento e de algum
dinheiro de bolso, efectua diversas prestações num total de aproximadamente 30
horas por semana, no quadro de um projecto individual de inserção socioprofissional.
Como não possuía recursos dirigiu‑se ao CPAS a
fim de obter o minimex com fundamento no facto de que tem de pagar 400 euros
por mês à casa de acolhimento e de que lhe deve ser dada a possibilidade de
sair desse lar e de viver autonomamente.
M. Trojani
viu o seu pedido ser indeferido pelo CPAS, pois, por um lado não possuía
nacionalidade belga, e por outro lado não beneficiava da aplicação do
Regulamento nº 1612/68. Este indeferimento foi objecto de recurso para o
Tribunal du Travail de Bruxelles, que decide reenviar o processo para o
Tribunal de Justiça.
O órgão
jurisdicional de reenvio coloca duas questões prejudiciais. A saber: se uma
pessoa, numa situação idêntica à do recorrente no processo principal, pode
invocar um direito de residência enquanto trabalhador assalariado, trabalhador
não assalariado ou prestador ou beneficiário de serviços, na acepção,
respectivamente, dos artigos 39.º CE, 43.º CE e 49.º CE; e
também se, em caso de resposta negativa à primeira questão, uma pessoa que se
encontre na situação do recorrente no processo principal pode, na qualidade
apenas de cidadão da União Europeia, beneficiar de um direito de residência no
Estado‑Membro de acolhimento, por aplicação directa do artigo 18.° CE.
Cumpre
então analisar autonomamente cada questão prejudicial.
Relativamente
à primeira questão importa referir que esta se encontra relacionada com os
direitos concedidos aos migrantes por motivos económicos enquanto trabalhadores
com base no artº 39º CE, no âmbito da liberdade de estabelecimento, artº 43º
CE, ou no âmbito da livre prestação de serviços, artº 49º CE.
Importa
então recordar que o artigo 39º nº 3, alínea c) CE, confere aos cidadãos dos
Estados-Membros o direito de residirem no território nacional de um
Estado-Membro a fim de nele exercerem uma actividade laboral.
O
conceito de trabalhador presente neste artigo traduz-se numa redução dos
obstáculos a alguém que pretenda deslocar-se para outro Estado-Membro para aí
exercer uma actividade. Deve poder ser acompanhado pela sua família e os seus
familiares também irão beneficiar de certos direitos no Estado-Membro que os
acolhe.
Sendo
este o entendimento do Tratado sobre trabalhador, importa realçar que este
conceito levanta muitas questões pois é um conceito híbrido.
Ou seja,
uma pessoa não é sempre trabalhador assalariado ou trabalhador independente,
mas pode ser trabalhador assalariado e trabalhador independente
simultaneamente. De referir também como sugere o advogado-geral L. A. Geelhoed,
o caso do estudante, que para ter um maior rendimento tem pequenos empregos.
Em
situações idênticas encontram-se pessoas como M. Trojani, que durante a sua
permanência noutro Estado-Membro exerceu uma actividade que não é um emprego a
tempo inteiro e com o qual não se pode sustentar integralmente. Outra
dificuldade no caso concreto tem a ver com o facto de nem sempre ser possível
distinguir trabalho remunerado de trabalho voluntário.
Importa
também reter que quando se está perante um trabalhador assalariado nacional de
um Estado-terceiro, embora esteja radicado num Estado-Membro, este não
beneficia da livre circulação para exercer a sua actividade laboral no
território da U.E.
Além
disto temos que atentar no princípio da livre circulação, que inclui a
liberdade de deslocação, de residência e de permanência num Estado-Membro, tudo
isto em regime de perfeita igualdade de tratamento com os trabalhadores
nacionais, sem no entanto esquecer as restrições resultantes das reservas de
ordem pública, saúde pública, e de segurança pública.
Posto
isto, temos que ter em consideração o entendimento que o Tribunal de Justiça
acerca de toda esta matéria.
O
Tribunal de Justiça concretizou de forma extensiva o âmbito de aplicação
pessoal do conceito de trabalhador, na acepção do artº 39º CE. (acórdão
Ninni-Orasche).
A
característica principal da relação de trabalho é uma pessoa realizar durante
um certo período de tempo, a favor de outrem, e sob a direcção desta,
prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração. Temos aqui
presentes três condições cumulativas, que o TJ distingue: duração da
actividade, relação de subordinação e remuneração.
Deve ser
considerado trabalhador, qualquer pessoa que exerça actividades reais e
efectivas (excluindo-se aqui aquelas que sejam de tal forma reduzidas que se
apresentem apenas como marginais e acessórias).
O TJ
considerou também que as actividades que sejam apenas um meio de reeducação ou
de reinserção das pessoas, não podem ser consideradas actividades económicas
reais e efectivas. (acórdão Bettray).
No caso
em concreto e apesar das posições poderem divergir, o órgão jurisdicional de
reenvio tendo apurado que os benefícios em espécie e em dinheiro que o Exército
de Salvação concedeu a M. Trojani constituem a contrapartida das prestações que
este efectua em favor e sob a direcção dessa casa de acolhimento, conclui estar
em presença de uma relação de subordinação onde existe o pagamento de uma
remuneração.
O TJ
entende, no entanto, que o órgão jurisdicional de reenvio deve verificar se as
prestações efectuadas por M. Trojani podem estar abrangidas pelo mercado de
emprego.
Esta
solução apontada pelo TJ revela que nestes casos são os próprios órgãos
nacionais que devem fazer uma apreciação casuística, ou seja, surge já neste
momento uma indicação por parte do TJ que o direito à residência, e a
determinadas prestações não serão fundamentadas com base nas liberdades
económicas.
Além
disso, quanto à aplicabilidade dos artigos 43º e 49º, nenhuma destas
disposições pode ser invocada como fundamento jurídico do direito de
residência, segundo o TJ.
Em suma,
o recorrente só poderia reivindicar um direito de residência enquanto
trabalhador na acepção do artº 39 CE, cabendo ao órgão jurisdicional apurar se
existe na realidade, uma actividade real e efectiva.
Relativamente
à segunda questão, o que é suscitado é se em caso de resposta negativa à anterior,
pode o recorrente beneficiar de um direito de residência no Estado-Membro de
acolhimento por força do artº 18º CE.
Este
direito de residência motiva o acesso à qualidade de residente que é titulada
pela “carta de residência nacional de um Estado-Membro da União Europeia”,
sendo ela de modelo único em toda a União.
Tendo
como objectivo generalizar a todos, este direito, a U.E. legislou de forma a
impor que os Estados-Membros concedam esse direito aos nacionais dos
Estados-Membros que ainda não tenham beneficiado desse mesmo direito por força
de outras disposições do direito da U.E.
Acerca
desta matéria, é de especial relevo o Acórdão Baumbast, segundo o qual é
reconhecido a qualquer cidadão da União o direito de residir no território dos
Estados-Membros, segundo o artº 18º CE. Assim sendo, M. Trojani poderia invocar
esta disposição.
No
entanto, temos que este não é um direito incondicional. Essas limitações
decorrem da directiva 90/364, artº 1º, onde se prevê que “Os Estados-membros concederão o direito de residência aos nacionais
dos Estados-membros que não beneficiem desse direito por força de outras
disposições de direito comunitário e aos membros das respectivas famílias tal
como são definidos no nº 2, na condição de disporem, para si próprios e para as
suas famílias, de um seguro de doença que cubra todos os riscos no
Estado-membro de acolhimento e de recursos suficientes para evitar que se
tornem, durante a sua permanência, uma sobrecarga para a assistência social do
Estado-membro de acolhimento.”, ou seja, a única condição imposta para que
o direito de residência seja reconhecido a um não trabalhador é que o mesmo,
tenha um seguro de doença que cubra um determinado número de riscos no
Estado-Membro de acolhimento, evitando assim um aumento de encargos para esse
Estado.
Segundo
o artº 18º, pode um cidadão da U.E., que já não beneficie do direito de
residência como trabalhador migrante, beneficiar desse direito de residência
por força da aplicação directa do artigo supra-citado. Apesar de tudo, este
direito está limitado pelas condições referidas na directiva 90/364.
No caso
em apreço, o recorrente pede para beneficiar de uma prestação como o minimex,
devido à falta de recursos. Por este motivo, entende o TJ que ele não se
encontra regulado pelo artº 18º, uma vez que não dispõe de recursos suficientes
para cumprir as exigências da directiva 90/364.
O TJ
conclui então, pela não atribuição do direito de residência a M. Trojani, pela
aplicação do artº 18º.
No
entanto, e penso que é aqui que surge uma das questões mais importantes em todo
este processo, o mesmo tribunal lembra, que o recorrente reside legalmente na
Bélgica, facto esse comprovado pelo cartão de residência que foi emitido em seu
nome.
No
seguimento disto, abre-se uma porta para a aplicação do artº 12º CE, segundo o
qual é proibida a discriminação em razão da nacionalidade.
O princípio
da não discriminação é fundamental, na medida em que o funcionamento da U.E
seria inconcebível sem ele.
Todos,
sem qualquer tipo de discriminação adquirem pelo simples facto de serem
cidadãos de um Estado-Membro, um estatuto de plena igualdade. Por isso,
qualquer tipo de discriminação é contrária à ordem jurídica europeia.
Isto tem
reflexo directo no caso em análise, pois, qualquer cidadão da U.E., mesmo que
economicamente não activo pode invocar este princípio, desde que, disponha, por
exemplo, de um cartão de residência, que é o que sucede nesta situação.
Logo,
quando estamos perante situações como as do presente caso, em que um Estado não
atribui uma prestação de assistência social aos cidadãos da U.E não nacionais,
mesmo que residam legalmente, isto constitui uma discriminação em função da
nacionalidade, sendo esta proibida pelo artº 12º.
E é por
meio desta disposição que o TJ concede ao recorrente o direito à prestação
social.
No meu
entender, através deste acórdão, o TJ dá novos passos, que considero importantes
para todo o processo de integração europeia.
Isto é,
o direito de residência, o próprio direito a uma prestação social, são
concedidos ao recorrente pelo TJ não com base nas liberdades económicas, mas
sim na própria cidadania europeia.
Dá-se
aqui um rompimento, um corte, pois o direito de residência deixa de estar
ligado a qualquer referência do estatuto laboral do indivíduo, encarado como
agente económico, para se ligar, se reportar a um outro estatuto - um estatuto
de natureza política, o de ser cidadão da União Europeia.
Este
entendimento tem-se vindo a acentuar cada vez mais, e além do acórdão em
análise, existe cada vez mais jurisprudência do TJ, que vem seguindo esta linha
de orientação, sendo disso exemplo os Acórdãos Jheorge Jipa, Metock, e mais
recentemente o Acórdão Rottmann.
Todas
estas indicações, toda esta nova abertura jurisprudencial do TJ, é muito
importante, pois poderemos estar perante uma mudança de paradigma. Ou seja,
cada vez mais, os cidadãos da U.E poderão fazer valer os seus direitos não
pelos motivos tradicionais, como por exemplo as “4 liberdades”, mas pelo
simples facto de serem cidadãos da U.E. Isto é algo que a concretizar-se irá
abrir novas portas, quer para os direitos fundamentais dos cidadãos, quer para
a própria evolução da União e do seu direito.
Por Pedro Cruz
Junho de 2011
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