segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Comentário e análise ao Acórdão do TJUE - Michel Trojani





O processo de integração europeia tem vindo a evoluir gradualmente ao longo das décadas. Nesse espaço de tempo, temos assistido a vários momentos de avanços e recuos, dúvidas e certezas, triunfos e receios.
Apesar de tudo isto a União Europeia tem-se vindo a afirmar cada vez mais no panorama internacional, quer como força política, quer também como aglutinadora de vários povos, culturas, religiões, em suma, cidadãos.
O acórdão sobre o qual me debruço, além de se enquadrar numa das matérias que achei mais interessante ao longo da unidade curricular e que me suscitou mais interesse, insere-se também, neste contexto de conquista que, no meu ponto de vista, devemos desejar para efectivamente podermos estar perante uma verdadeira integração, uma verdadeira união.
Neste caso específico o Tribunal de Justiça indicia já uma abertura para uma nova forma de protecção do cidadão europeu que poderá fundar-se na cidadania europeia. Ou seja, no futuro podemos ter uma maior protecção do indivíduo, pois este irá beneficiar do estatuto de cidadão europeu.
Por tudo isto, penso ser de enorme interesse uma análise mais cuidada a este processo, que nos revela um progresso inicial a nível jurisprudencial por parte do Tribunal de Justiça que poderá vir a ser de grande importância no futuro.
O processo C-456/02 aborda temas bastante interessantes para o ordenamento jurídico europeu, nomeadamente a livre circulação de pessoas, a cidadania da União Europeia, e o direito de residência.
Em causa está a apreciação por parte do Tribunal de Justiça do litígio que opõe Michel Trojani e o Centre public d´aide sociale de Bruxelles (CPAS).
M. Trojani é um cidadão francês que após ter residido na Bélgica, em 1972, durante um pequeno período de tempo, regressou a este país em 2000. Inicialmente, residiu num parque de campismo em Blankenberge, sem se registar, e, a partir de Dezembro de 2001, em Bruxelas. A partir de 8 de Janeiro de 2002, foi acolhido numa casa do Exército de Salvação, onde, a troco de alojamento e de algum dinheiro de bolso, efectua diversas prestações num total de aproximadamente 30 horas por semana, no quadro de um projecto individual de inserção socioprofissional.
 Como não possuía recursos dirigiu‑se ao CPAS a fim de obter o minimex com fundamento no facto de que tem de pagar 400 euros por mês à casa de acolhimento e de que lhe deve ser dada a possibilidade de sair desse lar e de viver autonomamente.
M. Trojani viu o seu pedido ser indeferido pelo CPAS, pois, por um lado não possuía nacionalidade belga, e por outro lado não beneficiava da aplicação do Regulamento nº 1612/68. Este indeferimento foi objecto de recurso para o Tribunal du Travail de Bruxelles, que decide reenviar o processo para o Tribunal de Justiça.
O órgão jurisdicional de reenvio coloca duas questões prejudiciais. A saber: se uma pessoa, numa situação idêntica à do recorrente no processo principal, pode invocar um direito de residência enquanto trabalhador assalariado, trabalhador não assalariado ou prestador ou beneficiário de serviços, na acepção, respectivamente, dos artigos 39.º CE, 43.º CE e 49.º CE; e também se, em caso de resposta negativa à primeira questão, uma pessoa que se encontre na situação do recorrente no processo principal pode, na qualidade apenas de cidadão da União Europeia, beneficiar de um direito de residência no Estado‑Membro de acolhimento, por aplicação directa do artigo 18.° CE.

Cumpre então analisar autonomamente cada questão prejudicial.

Relativamente à primeira questão importa referir que esta se encontra relacionada com os direitos concedidos aos migrantes por motivos económicos enquanto trabalhadores com base no artº 39º CE, no âmbito da liberdade de estabelecimento, artº 43º CE, ou no âmbito da livre prestação de serviços, artº 49º CE.
Importa então recordar que o artigo 39º nº 3, alínea c) CE, confere aos cidadãos dos Estados-Membros o direito de residirem no território nacional de um Estado-Membro a fim de nele exercerem uma actividade laboral.
O conceito de trabalhador presente neste artigo traduz-se numa redução dos obstáculos a alguém que pretenda deslocar-se para outro Estado-Membro para aí exercer uma actividade. Deve poder ser acompanhado pela sua família e os seus familiares também irão beneficiar de certos direitos no Estado-Membro que os acolhe.
Sendo este o entendimento do Tratado sobre trabalhador, importa realçar que este conceito levanta muitas questões pois é um conceito híbrido.
Ou seja, uma pessoa não é sempre trabalhador assalariado ou trabalhador independente, mas pode ser trabalhador assalariado e trabalhador independente simultaneamente. De referir também como sugere o advogado-geral L. A. Geelhoed, o caso do estudante, que para ter um maior rendimento tem pequenos empregos.
Em situações idênticas encontram-se pessoas como M. Trojani, que durante a sua permanência noutro Estado-Membro exerceu uma actividade que não é um emprego a tempo inteiro e com o qual não se pode sustentar integralmente. Outra dificuldade no caso concreto tem a ver com o facto de nem sempre ser possível distinguir trabalho remunerado de trabalho voluntário.
Importa também reter que quando se está perante um trabalhador assalariado nacional de um Estado-terceiro, embora esteja radicado num Estado-Membro, este não beneficia da livre circulação para exercer a sua actividade laboral no território da U.E.
Além disto temos que atentar no princípio da livre circulação, que inclui a liberdade de deslocação, de residência e de permanência num Estado-Membro, tudo isto em regime de perfeita igualdade de tratamento com os trabalhadores nacionais, sem no entanto esquecer as restrições resultantes das reservas de ordem pública, saúde pública, e de segurança pública.

Posto isto, temos que ter em consideração o entendimento que o Tribunal de Justiça acerca de toda esta matéria.
O Tribunal de Justiça concretizou de forma extensiva o âmbito de aplicação pessoal do conceito de trabalhador, na acepção do artº 39º CE. (acórdão Ninni-Orasche).
A característica principal da relação de trabalho é uma pessoa realizar durante um certo período de tempo, a favor de outrem, e sob a direcção desta, prestações em contrapartida das quais recebe uma remuneração. Temos aqui presentes três condições cumulativas, que o TJ distingue: duração da actividade, relação de subordinação e remuneração.
Deve ser considerado trabalhador, qualquer pessoa que exerça actividades reais e efectivas (excluindo-se aqui aquelas que sejam de tal forma reduzidas que se apresentem apenas como marginais e acessórias).
O TJ considerou também que as actividades que sejam apenas um meio de reeducação ou de reinserção das pessoas, não podem ser consideradas actividades económicas reais e efectivas. (acórdão Bettray).
No caso em concreto e apesar das posições poderem divergir, o órgão jurisdicional de reenvio tendo apurado que os benefícios em espécie e em dinheiro que o Exército de Salvação concedeu a M. Trojani constituem a contrapartida das prestações que este efectua em favor e sob a direcção dessa casa de acolhimento, conclui estar em presença de uma relação de subordinação onde existe o pagamento de uma remuneração.
O TJ entende, no entanto, que o órgão jurisdicional de reenvio deve verificar se as prestações efectuadas por M. Trojani podem estar abrangidas pelo mercado de emprego.
Esta solução apontada pelo TJ revela que nestes casos são os próprios órgãos nacionais que devem fazer uma apreciação casuística, ou seja, surge já neste momento uma indicação por parte do TJ que o direito à residência, e a determinadas prestações não serão fundamentadas com base nas liberdades económicas.
Além disso, quanto à aplicabilidade dos artigos 43º e 49º, nenhuma destas disposições pode ser invocada como fundamento jurídico do direito de residência, segundo o TJ.
Em suma, o recorrente só poderia reivindicar um direito de residência enquanto trabalhador na acepção do artº 39 CE, cabendo ao órgão jurisdicional apurar se existe na realidade, uma actividade real e efectiva.

Relativamente à segunda questão, o que é suscitado é se em caso de resposta negativa à anterior, pode o recorrente beneficiar de um direito de residência no Estado-Membro de acolhimento por força do artº 18º CE.
Este direito de residência motiva o acesso à qualidade de residente que é titulada pela “carta de residência nacional de um Estado-Membro da União Europeia”, sendo ela de modelo único em toda a União.
Tendo como objectivo generalizar a todos, este direito, a U.E. legislou de forma a impor que os Estados-Membros concedam esse direito aos nacionais dos Estados-Membros que ainda não tenham beneficiado desse mesmo direito por força de outras disposições do direito da U.E.
Acerca desta matéria, é de especial relevo o Acórdão Baumbast, segundo o qual é reconhecido a qualquer cidadão da União o direito de residir no território dos Estados-Membros, segundo o artº 18º CE. Assim sendo, M. Trojani poderia invocar esta disposição.
No entanto, temos que este não é um direito incondicional. Essas limitações decorrem da directiva 90/364, artº 1º, onde se prevê que “Os Estados-membros concederão o direito de residência aos nacionais dos Estados-membros que não beneficiem desse direito por força de outras disposições de direito comunitário e aos membros das respectivas famílias tal como são definidos no nº 2, na condição de disporem, para si próprios e para as suas famílias, de um seguro de doença que cubra todos os riscos no Estado-membro de acolhimento e de recursos suficientes para evitar que se tornem, durante a sua permanência, uma sobrecarga para a assistência social do Estado-membro de acolhimento.”, ou seja, a única condição imposta para que o direito de residência seja reconhecido a um não trabalhador é que o mesmo, tenha um seguro de doença que cubra um determinado número de riscos no Estado-Membro de acolhimento, evitando assim um aumento de encargos para esse Estado.
Segundo o artº 18º, pode um cidadão da U.E., que já não beneficie do direito de residência como trabalhador migrante, beneficiar desse direito de residência por força da aplicação directa do artigo supra-citado. Apesar de tudo, este direito está limitado pelas condições referidas na directiva 90/364.
No caso em apreço, o recorrente pede para beneficiar de uma prestação como o minimex, devido à falta de recursos. Por este motivo, entende o TJ que ele não se encontra regulado pelo artº 18º, uma vez que não dispõe de recursos suficientes para cumprir as exigências da directiva 90/364.
O TJ conclui então, pela não atribuição do direito de residência a M. Trojani, pela aplicação do artº 18º.
No entanto, e penso que é aqui que surge uma das questões mais importantes em todo este processo, o mesmo tribunal lembra, que o recorrente reside legalmente na Bélgica, facto esse comprovado pelo cartão de residência que foi emitido em seu nome.
No seguimento disto, abre-se uma porta para a aplicação do artº 12º CE, segundo o qual é proibida a discriminação em razão da nacionalidade.
O princípio da não discriminação é fundamental, na medida em que o funcionamento da U.E seria inconcebível sem ele.
Todos, sem qualquer tipo de discriminação adquirem pelo simples facto de serem cidadãos de um Estado-Membro, um estatuto de plena igualdade. Por isso, qualquer tipo de discriminação é contrária à ordem jurídica europeia.
Isto tem reflexo directo no caso em análise, pois, qualquer cidadão da U.E., mesmo que economicamente não activo pode invocar este princípio, desde que, disponha, por exemplo, de um cartão de residência, que é o que sucede nesta situação.
Logo, quando estamos perante situações como as do presente caso, em que um Estado não atribui uma prestação de assistência social aos cidadãos da U.E não nacionais, mesmo que residam legalmente, isto constitui uma discriminação em função da nacionalidade, sendo esta proibida pelo artº 12º.
E é por meio desta disposição que o TJ concede ao recorrente o direito à prestação social.
No meu entender, através deste acórdão, o TJ dá novos passos, que considero importantes para todo o processo de integração europeia.
Isto é, o direito de residência, o próprio direito a uma prestação social, são concedidos ao recorrente pelo TJ não com base nas liberdades económicas, mas sim na própria cidadania europeia.
Dá-se aqui um rompimento, um corte, pois o direito de residência deixa de estar ligado a qualquer referência do estatuto laboral do indivíduo, encarado como agente económico, para se ligar, se reportar a um outro estatuto - um estatuto de natureza política, o de ser cidadão da União Europeia.  

Este entendimento tem-se vindo a acentuar cada vez mais, e além do acórdão em análise, existe cada vez mais jurisprudência do TJ, que vem seguindo esta linha de orientação, sendo disso exemplo os Acórdãos Jheorge Jipa, Metock, e mais recentemente o Acórdão Rottmann.
Todas estas indicações, toda esta nova abertura jurisprudencial do TJ, é muito importante, pois poderemos estar perante uma mudança de paradigma. Ou seja, cada vez mais, os cidadãos da U.E poderão fazer valer os seus direitos não pelos motivos tradicionais, como por exemplo as “4 liberdades”, mas pelo simples facto de serem cidadãos da U.E. Isto é algo que a concretizar-se irá abrir novas portas, quer para os direitos fundamentais dos cidadãos, quer para a própria evolução da União e do seu direito.     


Por Pedro Cruz


Junho de 2011





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