ENQUADRAMENTO: O DIREITO À DEDUÇÃO
Em
homenagem ao princípio do primado do Direito da UE as normas nacionais devem
ter a sua aplicação e interpretação conformes ao quadro normativo comunitário[1]. A matéria
ora em análise não é excepção, devendo a parte referente à dedução constante do
CIVA ser interpretada de harmonia com os arts. 17º a 20º da Directiva IVA[2].
Assim, e
segundo o art. 17º daquela directiva comunitária, nos seus números 2 e 3, para
que o imposto pago, nas aquisições de bens e serviços, possa ser deduzido, terá
de existir uma relação directa e imediata dessas aquisições com as operações a
jusante que conferem o direito à dedução.
EXPOSIÇÃO FACTUAL DO CASO
- A SKF é
a sociedade-mãe de um grupo industrial, em actividade em diversos países,
participando activamente na gestão das suas filiais e prestando-lhes serviços remunerados.
- A SKF
é sujeito passivo de IVA relativamente a estas prestações facturadas às
filiais.
- A SKF
tenciona reestruturar o seu grupo, cedendo com este intuito, a actividade de
uma das suas filiais (que detém a 100%), vendendo a totalidade das respectivas acções.
- Além
disso, irá vender a sua participação de 26,5% numa outra sociedade, anteriormente
detida a 100%, à qual prestava, enquanto sociedade-mãe, serviços sujeitos a
IVA.
- Para proceder
às referidas cessões, a SKF tenciona recorrer a serviços de avaliação de
títulos, de assistência nas negociações e de consultoria jurídica especializada
para a redacção de contractos (todas as prestações de serviços sujeitas a IVA).
- Com o
intuito de obter esclarecimentos quanto às consequências fiscais destas
cessões, a SKF pediu uma informação prévia vinculativa à Skatterättsnämnden
sobre o direito a deduzir o IVA pago a montante sobre os serviços adquiridos no
âmbito da transmissão das acções, quer da filial quer da sociedade controlada.
- Na
informação prévia vinculativa de 12 de Janeiro de 2007, a Skatterättsnämnden considerou
que, em ambos os casos, a SKF tinha direito a deduzir o IVA pago a montante sobre
essas prestações de serviços.
- Considerou,
nesta linha, que os serviços prestados pela SKF à filial e à sociedade
controlada constituíam uma actividade económica e que o IVA pago sobre as suas
despesas por ocasião da aquisição daquelas sociedades era dedutível.
- Da
mesma forma, o IVA pago sobre as suas despesas aquando da cessação dessa
actividade deveria igualmente ser dedutível.
- A
Skatteverket recorreu desta informação prévia vinculativa para o órgão
jurisdicional de reenvio, concluindo que o IVA pago sobre os serviços adquiridos
não era dedutível.
- A SKF pediu,
por seu turno, a confirmação da informação prévia vinculativa da
Skatterättsnämnden.
- Nestas
circunstâncias, o Regeringsrätten decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal
de Justiça as questões prejudiciais analisadas infra.
O Acórdão SKF
Feita
uma primeira abordagem introdutória, atende-se no presente ponto à análise do
Acórdão SKF do Tribunal de Justiça,
de 29 de Outubro de 2008.
Vejamos
o entendimento do Tribunal no que toca às questões levantadas pelo tribunal de
reenvio, com especial destaque às questões suscitadas em matéria de dedutibilidade
do IVA, referente às despesas com a transmissão de participações sociais.
A TRANSMISSÃO DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS: OPERAÇÃO
ECONÓMICA?
A
primeira questão colocada pelo tribunal de reenvio ao Tribunal de Justiça é a
de saber se os arts. 2º, n.° 1, e 4º, nº 1 e 2, da Sexta Directiva e os artigos
2º, n.° 1, e 9º, n.° 1, da Directiva 2006/112 devem ser interpretados no
sentido de que “constitui uma actividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação
das referidas directivas, uma transmissão, pela sociedade-mãe, da totalidade
das acções de uma filial detida a 100% e da sua participação remanescente
noutra sociedade controlada que detinha anteriormente a 100%, às quais prestou
serviços sujeitos a IVA”.
O
Tribunal de Justiça começou por referir que, “no território de um
Estado-Membro, apenas estão sujeitas a este imposto, as actividades que tenham
carácter económico”.
Prosseguiu,
depois, o douto Tribunal, por precisar conceptualmente “sujeito passivo de IVA”
e “actividade económica para efeitos de IVA”. Segundo o nº1 do art. 9º da
Directiva do IVA, um sujeito passivo de IVA será “qualquer pessoa que exerça,
de modo independente e em qualquer lugar, uma actividade económica, seja qual
for o fim ou o resultado dessa actividade”.
Incluem-se
no conceito de actividade económica, ainda segundo o preceito referido, “todas
as actividades de produção, de comercialização ou de prestação de serviços,
incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões liberais ou
equiparadas”.
E se é
certo que anterior jurisprudência comunitária[3]
considera que “a simples aquisição, a detenção e a venda de acções não
constituem em si mesmas uma actividade económica na acepção da Sexta Directiva”
(o mesmo acontecendo em relação às actividades que consistem em ceder
participações) certo é também que o Tribunal de Justiça, em jurisprudência
assente[4],
considerou que configura situação completamente distinta “quando a participação
financeira numa sociedade é acompanhada pela interferência directa ou indirecta
na gestão das sociedades em que se verificou a tomada de participação (…) na
medida em que tal interferência implique a realização de transacções sujeitas
ao IVA (…), tais como o fornecimento de serviços administrativos,
contabilísticos e informáticos”.
A
jurisprudência do Tribunal de Justiça já havia fixado que a transmissão de participações
financeiras detidas por uma sociedade, não é, em princípio, considerada, uma
actividade económica para efeitos de IVA, não cabendo, portanto, no seu âmbito
de aplicação.
Deve
fazer-se, no entanto, uma clara distinção: por um lado, a aquisição, detenção
ou venda de participações sociais muito simplesmente com objectivos de
investimento financeiro e por outro, a venda de participações como decisão de
gestão no quadro da actividade económica do sujeito passivo.
Nesta
linha, na situação hipotética de uma “sociedade-mãe” se envolver na gestão da
sociedade em que participa, fornecendo-lhe prestações de serviços (sujeitas a
IVA), a transferência de participações por parte da sociedade-mãe, deve ser
vista como uma operação de obtenção de receitas com carácter permanente, não
cabendo numa situação de simples venda de participações. A operação supracitada
apresenta um nexo directo com a organização da actividade exercida pelo grupo e
constitui assim o prolongamento directo, permanente e necessário da actividade
tributável do sujeito passivo.
O Tribunal
pronunciou-se, portanto, no sentido de que constitui uma actividade económica a
“transmissão, por uma sociedade-mãe, da totalidade das acções que detém no
capital de uma filial detida a 100% e a participação remanescente numa
sociedade controlada anteriormente detida a 100%, às quais forneceu prestações
de serviços sujeitas a IVA”.
A TRANSMISSÃO DE PARTICIPAÇÕES: ISENTA DE IVA?
No
presente ponto, o Tribunal de Justiça pretendeu verificar se uma transmissão de
participações sociais (depois de qualificada como uma operação sujeita a IVA)
deve ser isenta do imposto, por força do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo
135º da Directiva do IVA.
Beneficiam
da isenção de IVA, segundo o aresto referido, “as operações, incluindo a
negociação, mas excluindo a guarda e gestão, relativas às acções, participações
em sociedades ou em associações, obrigações e demais títulos, com exclusão dos
títulos representativos de mercadorias”.
No
entender do Tribunal de Justiça, “os serviços de natureza administrativa,
material ou técnica, bem como as actividades de informação financeira, que não
alteram a situação jurídica e financeira existente entre as partes, não são
abrangidos pela isenção”.
Ao
invés, a transmissão de participações sociais, altera a situação jurídica e
financeira das partes no contrato e por isso cai na isenção prevista na alínea
f) do nº 1 do artigo 135º da Directiva do IVA.
Em suma,
a transmissão de participações, conforme a descrição supracitada, cai na
incidência do IVA, mas beneficia da isenção.
A QUESTÃO DA DEDUTIBILIDADE
No
Acórdão SKF, o Tribunal de Justiça
refere-se a anteriores decisões em que ficou bem patente que o direito à
dedução é determinado pelas operações a jusante às quais são afectadas as
operações a montante, sendo por esta via necessário que as operações a montante
e a jusante se mostrem relacionadas.
Assim, e em homenagem ao princípio da
neutralidade do IVA, as despesas a montante são integradas no preço a jusante
ou nas despesas gerais da actividade económica do sujeito passivo. Portanto, as
despesas realizadas a montante terão de ser incorporadas no preço das operações
a jusante ou integrar as despesas gerais do conjunto da actividade económica do
sujeito passivo. Nesta linha deve ser indagado se os bens ou serviços adquiridos
pela entidade cedente das participações estão directa e imediatamente
associados à operação de transmissão ou, diferentemente, ao conjunto da actividade
económica levada a cabo pelo sujeito passivo.
O Tribunal
de Justiça considera: “o direito à dedução do IVA pago a montante sobre prestações
destinadas a realizar uma transmissão de acções é conferido (…), se existir uma
relação directa e imediata entre as despesas relacionadas com as prestações a
montante e o conjunto das actividades económicas do sujeito passivo”.
Ora, o
IVA referente às despesas relativas à transmissão e participações será
dedutível se assumirem relação directa e imediata com a actividade principal
desenvolvida pelo referido transmitente. Assim, só se deve considerar a transmissão
de participações sociais como uma operação isenta de IVA, e por essa via, não susceptível
de conferir direito à dedução, se existir uma relação directa e imediata entre
os serviços adquiridos a montante e a transmissão de participações sociais
isenta a jusante.
Não se
verificando a situação descrita, caso em que o preço dos serviços ou bens
adquiridos, é alvo de incorporação no preço dos serviços e bens fornecidos no
âmbito da actividade desenvolvida, a dedutibilidade do IVA incorrido nos
serviços adquiridos a montante deve ser admitida. Se assim não fosse, refere o
Tribunal de Justiça, pôr-se-iam em causa princípios comunitários basilares do
IVA, nomeadamente a neutralidade e a igualdade fiscais.
Por fim,
relembra o Tribunal de Justiça jurisprudência comunitária assente, em que ficou
bem patente a taxatividade das exclusões do direito à dedução e a
impossibilidade do afastamento de exercício do direito à dedução do imposto
quando o legislador não a exclui. Além do mais, as exclusões ao direito à
dedução devem sempre ser alvo de interpretação estrita, como deixou claro o
Acórdão Metropol.[5]
Ora não
existindo em qualquer disposição o afastamento do direito à dedução do IVA
relativo a serviços adquiridos num contexto aquisitivo de participações
sociais, não existem obstáculos à respectiva dedutibilidade.
O CASO HIPOTÉTICO DA SUCESSÃO DE TRANSMISSÕES
Com a
última questão o tribunal de reenvio pretende, no fundo, determinar, se as
questões colocadas saem, de alguma forma, afectadas, pela circunstância de a
transmissão de participações se dar por meio de sucessivas operações.
No
Acórdão ora analisado, o Tribunal de Justiça, na senda de anteriores decisões
jurisprudenciais, vem alertar para um conceito de actividade económica em sede
de IVA, não condizente necessariamente com um único acto, mas, porventura, com
um conjunto sucessivo de actos.
Assim,
estabeleceram os juízes do douto Tribunal que o tratamento fiscal dado a uma transmissão
de acções deve orientar-se por elementos objectivos e não pelo número de
momentos em que é levada a cabo. Assim é, em homenagem à segurança jurídica e à
neutralidade fiscal.
CONCLUSÕES
A venda
de participações sociais, enquanto actividade de investimento, não é
considerada uma actividade económica para efeitos de IVA. Apesar disso, a
situação consubstancia-se de forma diferente, quando a venda de participações
apresente um nexo directo com a actividade que a “sociedade-mãe” leva a cabo.
Ou seja, estando a sociedade envolvida na gestão das sociedades participadas, a
venda de participações deve ser considerada uma actividade económica para
efeito de IVA, existindo, por esta via, e apesar da isenção, uma sujeição a
este imposto.
A
segunda questão suscitada, e a que, porventura, menos dificuldade levantou, foi
a determinação da transmissão de participações sociais como uma prestação de
serviços isenta de imposto. De facto, a transmissão de participações sociais,
uma vez sujeita a IVA, encontra-se abrangida pela isenção prevista na Directiva
do IVA.
Num
terceiro momento coube aos juízes do Tribunal de Justiça responder à questão: o
IVA pago na aquisição de serviços, por exemplo de auditoria, no âmbito de uma operação
de venda de participações sociais, é susceptível de dedução?
Neste
sentido, foram estabelecidos critérios aferidores com vista a estabelecer a
possibilidade de dedução.
Para o
efeito, a primeira verificação a fazer é, como ficou patente supra, a seguinte: aferir se os custos são
susceptíveis de incorporação no preço das participações sociais a transmitir ou
se, ao invés devem ser objecto de incorporação no preço dos bens e serviços
fornecidos pelo sujeito passivo no conjunto da actividade económica por si
exercida, sendo neste último caso admissível a dedução.
A
dedução será, portanto possível, desde que exista uma interferência directa da
“sociedade-mãe” na gestão da sociedade participada e desde que os custos
incorridos com a operação de venda das participações se mostrem directa e
imediatamente relacionados com o conjunto da actividade económica.
Quanto à
questão da possibilidade da transmissão de forma sucessiva poder afectar a
resposta às demais questões, o Tribunal respondeu, como se viu, de forma
negativa, sendo irrelevante se se dão em operações sucessivas ou apenas num
momento isolado.
O Acórdão
SKF cifra-se como um marco quanto à
questão da dedutibilidade do IVA nas operações singulares que aqui se
discorreram. Mostra-se uma decisão de tal vulto que tem mesmo vindo a ser
referenciada em decisões dos tribunais portugueses[6]
e vinca, uma vez mais, o direito à dedução como a “pedra de toque” no que ao
sistema do IVA diz respeito.
Por José Vieira de Castro
Janeiro de 2014
[1] Nomeadamente, recorrendo aos institutos de
coordenação, aproximação e harmonização de legislações. A este propósito, NABAIS,
José Casalta – Direito Fiscal. 6ª Edição. Coimbra : Almedina, 2010, p. 181.
[2] Referência à Sexta Directiva (Directiva
77/388/CEE).
[3] Nomeadamente no Acórdão EDM.
[4] Designadamente, por exemplo, no Acórdão Polysar.
[5] Cfr. o ponto 59 do referido Acórdão: “as
disposições que prevêem derrogações ao princípio do direito à dedução do IVA,
que garante a neutralidade deste imposto, são de interpretação estrita”.
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