segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A dedução do IVA nas transmissões de participações sociais – ACÓRDÃO SKF - PROCESSO C-29/08





ENQUADRAMENTO: O DIREITO À DEDUÇÃO
Em homenagem ao princípio do primado do Direito da UE as normas nacionais devem ter a sua aplicação e interpretação conformes ao quadro normativo comunitário[1]. A matéria ora em análise não é excepção, devendo a parte referente à dedução constante do CIVA ser interpretada de harmonia com os arts. 17º a 20º da Directiva IVA[2].

Assim, e segundo o art. 17º daquela directiva comunitária, nos seus números 2 e 3, para que o imposto pago, nas aquisições de bens e serviços, possa ser deduzido, terá de existir uma relação directa e imediata dessas aquisições com as operações a jusante que conferem o direito à dedução.

EXPOSIÇÃO FACTUAL DO CASO
- A SKF é a sociedade-mãe de um grupo industrial, em actividade em diversos países, participando activamente na gestão das suas filiais e prestando-lhes serviços remunerados.
- A SKF é sujeito passivo de IVA relativamente a estas prestações facturadas às filiais.
- A SKF tenciona reestruturar o seu grupo, cedendo com este intuito, a actividade de uma das suas filiais (que detém a 100%), vendendo a totalidade das respectivas acções.
- Além disso, irá vender a sua participação de 26,5% numa outra sociedade, anteriormente detida a 100%, à qual prestava, enquanto sociedade-mãe, serviços sujeitos a IVA.
- Para proceder às referidas cessões, a SKF tenciona recorrer a serviços de avaliação de títulos, de assistência nas negociações e de consultoria jurídica especializada para a redacção de contractos (todas as prestações de serviços sujeitas a IVA).
- Com o intuito de obter esclarecimentos quanto às consequências fiscais destas cessões, a SKF pediu uma informação prévia vinculativa à Skatterättsnämnden sobre o direito a deduzir o IVA pago a montante sobre os serviços adquiridos no âmbito da transmissão das acções, quer da filial quer da sociedade controlada.
- Na informação prévia vinculativa de 12 de Janeiro de 2007, a Skatterättsnämnden considerou que, em ambos os casos, a SKF tinha direito a deduzir o IVA pago a montante sobre essas prestações de serviços.
- Considerou, nesta linha, que os serviços prestados pela SKF à filial e à sociedade controlada constituíam uma actividade económica e que o IVA pago sobre as suas despesas por ocasião da aquisição daquelas sociedades era dedutível.
- Da mesma forma, o IVA pago sobre as suas despesas aquando da cessação dessa actividade deveria igualmente ser dedutível.
- A Skatteverket recorreu desta informação prévia vinculativa para o órgão jurisdicional de reenvio, concluindo que o IVA pago sobre os serviços adquiridos não era dedutível.
- A SKF pediu, por seu turno, a confirmação da informação prévia vinculativa da Skatterättsnämnden.
- Nestas circunstâncias, o Regeringsrätten decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as questões prejudiciais analisadas infra.

O Acórdão SKF
Feita uma primeira abordagem introdutória, atende-se no presente ponto à análise do Acórdão SKF do Tribunal de Justiça, de 29 de Outubro de 2008.
Vejamos o entendimento do Tribunal no que toca às questões levantadas pelo tribunal de reenvio, com especial destaque às questões suscitadas em matéria de dedutibilidade do IVA, referente às despesas com a transmissão de participações sociais.

A TRANSMISSÃO DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS: OPERAÇÃO ECONÓMICA?
A primeira questão colocada pelo tribunal de reenvio ao Tribunal de Justiça é a de saber se os arts. 2º, n.° 1, e 4º, nº 1 e 2, da Sexta Directiva e os artigos 2º, n.° 1, e 9º, n.° 1, da Directiva 2006/112 devem ser interpretados no sentido de que “constitui uma actividade económica abrangida pelo âmbito de aplicação das referidas directivas, uma transmissão, pela sociedade-mãe, da totalidade das acções de uma filial detida a 100% e da sua participação remanescente noutra sociedade controlada que detinha anteriormente a 100%, às quais prestou serviços sujeitos a IVA”.

O Tribunal de Justiça começou por referir que, “no território de um Estado-Membro, apenas estão sujeitas a este imposto, as actividades que tenham carácter económico”.

Prosseguiu, depois, o douto Tribunal, por precisar conceptualmente “sujeito passivo de IVA” e “actividade económica para efeitos de IVA”. Segundo o nº1 do art. 9º da Directiva do IVA, um sujeito passivo de IVA será “qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma actividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa actividade”.

Incluem-se no conceito de actividade económica, ainda segundo o preceito referido, “todas as actividades de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as actividades extractivas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas”.

E se é certo que anterior jurisprudência comunitária[3] considera que “a simples aquisição, a detenção e a venda de acções não constituem em si mesmas uma actividade económica na acepção da Sexta Directiva” (o mesmo acontecendo em relação às actividades que consistem em ceder participações) certo é também que o Tribunal de Justiça, em jurisprudência assente[4], considerou que configura situação completamente distinta “quando a participação financeira numa sociedade é acompanhada pela interferência directa ou indirecta na gestão das sociedades em que se verificou a tomada de participação (…) na medida em que tal interferência implique a realização de transacções sujeitas ao IVA (…), tais como o fornecimento de serviços administrativos, contabilísticos e informáticos”.

A jurisprudência do Tribunal de Justiça já havia fixado que a transmissão de participações financeiras detidas por uma sociedade, não é, em princípio, considerada, uma actividade económica para efeitos de IVA, não cabendo, portanto, no seu âmbito de aplicação.

Deve fazer-se, no entanto, uma clara distinção: por um lado, a aquisição, detenção ou venda de participações sociais muito simplesmente com objectivos de investimento financeiro e por outro, a venda de participações como decisão de gestão no quadro da actividade económica do sujeito passivo.

Nesta linha, na situação hipotética de uma “sociedade-mãe” se envolver na gestão da sociedade em que participa, fornecendo-lhe prestações de serviços (sujeitas a IVA), a transferência de participações por parte da sociedade-mãe, deve ser vista como uma operação de obtenção de receitas com carácter permanente, não cabendo numa situação de simples venda de participações. A operação supracitada apresenta um nexo directo com a organização da actividade exercida pelo grupo e constitui assim o prolongamento directo, permanente e necessário da actividade tributável do sujeito passivo.

O Tribunal pronunciou-se, portanto, no sentido de que constitui uma actividade económica a “transmissão, por uma sociedade-mãe, da totalidade das acções que detém no capital de uma filial detida a 100% e a participação remanescente numa sociedade controlada anteriormente detida a 100%, às quais forneceu prestações de serviços sujeitas a IVA”.

A TRANSMISSÃO DE PARTICIPAÇÕES: ISENTA DE IVA?
No presente ponto, o Tribunal de Justiça pretendeu verificar se uma transmissão de participações sociais (depois de qualificada como uma operação sujeita a IVA) deve ser isenta do imposto, por força do disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 135º da Directiva do IVA.

Beneficiam da isenção de IVA, segundo o aresto referido, “as operações, incluindo a negociação, mas excluindo a guarda e gestão, relativas às acções, participações em sociedades ou em associações, obrigações e demais títulos, com exclusão dos títulos representativos de mercadorias”.

No entender do Tribunal de Justiça, “os serviços de natureza administrativa, material ou técnica, bem como as actividades de informação financeira, que não alteram a situação jurídica e financeira existente entre as partes, não são abrangidos pela isenção”.

Ao invés, a transmissão de participações sociais, altera a situação jurídica e financeira das partes no contrato e por isso cai na isenção prevista na alínea f) do nº 1 do artigo 135º da Directiva do IVA.

Em suma, a transmissão de participações, conforme a descrição supracitada, cai na incidência do IVA, mas beneficia da isenção.

A QUESTÃO DA DEDUTIBILIDADE
No Acórdão SKF, o Tribunal de Justiça refere-se a anteriores decisões em que ficou bem patente que o direito à dedução é determinado pelas operações a jusante às quais são afectadas as operações a montante, sendo por esta via necessário que as operações a montante e a jusante se mostrem relacionadas.

 Assim, e em homenagem ao princípio da neutralidade do IVA, as despesas a montante são integradas no preço a jusante ou nas despesas gerais da actividade económica do sujeito passivo. Portanto, as despesas realizadas a montante terão de ser incorporadas no preço das operações a jusante ou integrar as despesas gerais do conjunto da actividade económica do sujeito passivo. Nesta linha deve ser indagado se os bens ou serviços adquiridos pela entidade cedente das participações estão directa e imediatamente associados à operação de transmissão ou, diferentemente, ao conjunto da actividade económica levada a cabo pelo sujeito passivo.

O Tribunal de Justiça considera: “o direito à dedução do IVA pago a montante sobre prestações destinadas a realizar uma transmissão de acções é conferido (…), se existir uma relação directa e imediata entre as despesas relacionadas com as prestações a montante e o conjunto das actividades económicas do sujeito passivo”.

Ora, o IVA referente às despesas relativas à transmissão e participações será dedutível se assumirem relação directa e imediata com a actividade principal desenvolvida pelo referido transmitente. Assim, só se deve considerar a transmissão de participações sociais como uma operação isenta de IVA, e por essa via, não susceptível de conferir direito à dedução, se existir uma relação directa e imediata entre os serviços adquiridos a montante e a transmissão de participações sociais isenta a jusante.

Não se verificando a situação descrita, caso em que o preço dos serviços ou bens adquiridos, é alvo de incorporação no preço dos serviços e bens fornecidos no âmbito da actividade desenvolvida, a dedutibilidade do IVA incorrido nos serviços adquiridos a montante deve ser admitida. Se assim não fosse, refere o Tribunal de Justiça, pôr-se-iam em causa princípios comunitários basilares do IVA, nomeadamente a neutralidade e a igualdade fiscais.

Por fim, relembra o Tribunal de Justiça jurisprudência comunitária assente, em que ficou bem patente a taxatividade das exclusões do direito à dedução e a impossibilidade do afastamento de exercício do direito à dedução do imposto quando o legislador não a exclui. Além do mais, as exclusões ao direito à dedução devem sempre ser alvo de interpretação estrita, como deixou claro o Acórdão Metropol.[5]

Ora não existindo em qualquer disposição o afastamento do direito à dedução do IVA relativo a serviços adquiridos num contexto aquisitivo de participações sociais, não existem obstáculos à respectiva dedutibilidade.

O CASO HIPOTÉTICO DA SUCESSÃO DE TRANSMISSÕES
Com a última questão o tribunal de reenvio pretende, no fundo, determinar, se as questões colocadas saem, de alguma forma, afectadas, pela circunstância de a transmissão de participações se dar por meio de sucessivas operações.

No Acórdão ora analisado, o Tribunal de Justiça, na senda de anteriores decisões jurisprudenciais, vem alertar para um conceito de actividade económica em sede de IVA, não condizente necessariamente com um único acto, mas, porventura, com um conjunto sucessivo de actos.

Assim, estabeleceram os juízes do douto Tribunal que o tratamento fiscal dado a uma transmissão de acções deve orientar-se por elementos objectivos e não pelo número de momentos em que é levada a cabo. Assim é, em homenagem à segurança jurídica e à neutralidade fiscal.

 CONCLUSÕES
A venda de participações sociais, enquanto actividade de investimento, não é considerada uma actividade económica para efeitos de IVA. Apesar disso, a situação consubstancia-se de forma diferente, quando a venda de participações apresente um nexo directo com a actividade que a “sociedade-mãe” leva a cabo. Ou seja, estando a sociedade envolvida na gestão das sociedades participadas, a venda de participações deve ser considerada uma actividade económica para efeito de IVA, existindo, por esta via, e apesar da isenção, uma sujeição a este imposto.

A segunda questão suscitada, e a que, porventura, menos dificuldade levantou, foi a determinação da transmissão de participações sociais como uma prestação de serviços isenta de imposto. De facto, a transmissão de participações sociais, uma vez sujeita a IVA, encontra-se abrangida pela isenção prevista na Directiva do IVA.

Num terceiro momento coube aos juízes do Tribunal de Justiça responder à questão: o IVA pago na aquisição de serviços, por exemplo de auditoria, no âmbito de uma operação de venda de participações sociais, é susceptível de dedução?

Neste sentido, foram estabelecidos critérios aferidores com vista a estabelecer a possibilidade de dedução.
Para o efeito, a primeira verificação a fazer é, como ficou patente supra, a seguinte: aferir se os custos são susceptíveis de incorporação no preço das participações sociais a transmitir ou se, ao invés devem ser objecto de incorporação no preço dos bens e serviços fornecidos pelo sujeito passivo no conjunto da actividade económica por si exercida, sendo neste último caso admissível a dedução.

A dedução será, portanto possível, desde que exista uma interferência directa da “sociedade-mãe” na gestão da sociedade participada e desde que os custos incorridos com a operação de venda das participações se mostrem directa e imediatamente relacionados com o conjunto da actividade económica.

Quanto à questão da possibilidade da transmissão de forma sucessiva poder afectar a resposta às demais questões, o Tribunal respondeu, como se viu, de forma negativa, sendo irrelevante se se dão em operações sucessivas ou apenas num momento isolado.

O Acórdão SKF cifra-se como um marco quanto à questão da dedutibilidade do IVA nas operações singulares que aqui se discorreram. Mostra-se uma decisão de tal vulto que tem mesmo vindo a ser referenciada em decisões dos tribunais portugueses[6] e vinca, uma vez mais, o direito à dedução como a “pedra de toque” no que ao sistema do IVA diz respeito.



Por José Vieira de Castro


Janeiro de 2014



[1] Nomeadamente, recorrendo aos institutos de coordenação, aproximação e harmonização de legislações. A este propósito, NABAIS, José Casalta – Direito Fiscal. 6ª Edição. Coimbra : Almedina, 2010, p. 181.
[2] Referência à Sexta Directiva (Directiva 77/388/CEE).
[3] Nomeadamente no Acórdão EDM.
[4] Designadamente, por exemplo, no Acórdão Polysar.
[5] Cfr. o ponto 59 do referido Acórdão: “as disposições que prevêem derrogações ao princípio do direito à dedução do IVA, que garante a neutralidade deste imposto, são de interpretação estrita”.
[6] Veja-se, a título de exemplo o Processo 01148/11, de 3 de Julho de 2013, proferido pelo STA.



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