CONSIDERAÇÃO INICIAL: A INOVAÇÃO OPERADA PELO RGIT
O RGIT,
aprovado pela Lei nº 15/2001 de 5 de Junho consagra o regime sancionatório das
infracções em matéria tributária. Antes da aprovação do diploma referido,
existiam dois normativos autónomos: o RJIFA e o RJIFNA que em nada favoreciam a
simplicidade processual e espelhavam a tendência de dispersão legislativa tão
comum no nosso ordenamento jurídico[1].
O RGIT
opera, assim, uma concentração salutar, com o valor simplificador de toda a
rede sancionatória tributária:
-
Classifica as infracções tributárias em crimes e contra-ordenações (art. 2º):
os primeiros são ilícitos dotados de maior gravidade, punidos com penas
criminais e sanções acessórias; os segundos são ilícitos menos graves e por
isso sancionados de forma mais leve, com coimas e sanções acessórias;
-Tipifica
as infracções em especial (arts. 87º a 129º);
-Estabelece
o elenco de sanções aplicáveis (artigos 12º e seguintes e 26º e seguintes);
-Regula
os aspectos essenciais dos processos criminais e contra-ordenacionais (arts.
35º a 50º e 51º a 75º, respectivamente);
-Organiza
os crimes tributários em função de quatro critérios distintos e bem delimitados:
crimes tributários comuns (arts. 87º a 91º), crimes aduaneiros (arts. 92º a
102º), crimes fiscais (arts. 103º a 105º) e crimes contra a segurança social
(arts. 106º e 107º);
- Quanto
às contra-ordenações tributárias, classifica-as como aduaneiras (arts. 108º a
112º) ou fiscais (arts. 113º a 129º).
Ora,
como bem se verifica da análise legal, existe um elemento essencial[2] dos tipos
penais: um limite quantitativo. Assim, e referindo-nos aos crimes aduaneiros, a
conduta prevista no tipo legal apenas constituirá crime, se a prestação em
causa for superior a 15000€, ou, não havendo prestação, se a mercadoria objecto
da infracção for de valor superior a 50000€[3].
A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO CRIME DE CONTRABANDO DE
CIRCULAÇÃO
Até 1941
As
normas fiscais aduaneiras faziam, tradicionalmente, parte do direito penal
clássico. Neste seguimento, o crime aduaneiro por excelência, o contrabando começou
por ser um crime comum[4].
Em 1941,
as infracções aduaneiras foram autonomizadas no Contencioso Aduaneiro[5], deixando
de fazer parte do chamado direito penal primário, passando a fazer parte do
secundário, até hoje.
Além do
“puro” delito de contrabando, o Contencioso equiparava outras condutas ilícitas
àquele delito, nomeadamente considerando como contrabando o crime de contrabando
de circulação, conforme o art. 36º do referido diploma.
Assim,
seria também considerado contrabando a
circulação de mercadorias que, não sendo livre, se efectue sem o processamento
das competentes guias ou outros documentos requeridos ou sem a aplicação de
selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos.
Nesta
linha, o crime aqui em análise não havia sido, ainda autonomizado,
constituindo-se unicamente como um tipo de contrabando – seria um segundo
filtro de segurança, visando as mercadorias que, apesar de todo o aparato de
fiscalização, podiam ser furtadas ao cumprimento das formalidades de despacho.
A partir de 1983
Com a
publicação do DL nº 187/83, de 13 de Maio foi levada a cabo uma importante
sistematização: dividiram-se infracções aduaneiras em crimes aduaneiros e
contra-ordenações aduaneiras.
O
contrabando de circulação passou, a partir daqui, a ser definido como crime. Se
o Contencioso Aduaneiro previa a conduta típica no seu artº 36º, o DL nº 187/83
passou a prevê-la com os mesmos pressupostos, na alínea c) do nº 2 do artº 9º. Tal
como já acontecia, este crime não mais seria que uma assimilação ao delito de
contrabando, ao qual era aplicada a mesma pena. Do mesmo modo, continuou a ser
definido nos mesmos moldes o conceito de circulação, agora constante do nº 6 do
artº 9º.
A partir de 1986
O DL nº
424/86, de 27 de Dezembro procedeu à revogação do DL nº 187/83 procedendo a
profundas alterações por um lado, e à manutenção de soluções do velho
Contencioso Aduaneiro por outro, por terem ainda um assinalável grau de
validade e actualidade.
Quanto ao crime que constitui a base de estudo
deste trabalho, o crime de contrabando de circulação, permaneceu inalterado em
todos os seus pressupostos. Mudaram, apenas, dois aspectos: a arrumação, por um
lado, passando o conceito a constar do nº 7 do artigo 9º e uma clarificação,
por outro, ao não considerar em poder do consumidor “as mercadorias existentes
em estabelecimentos comerciais ou industriais ou suas dependências ou quando se
destinem a comércio”.
Portanto,
e em suma, o contrabando de circulação continuou a ser um crime assimilado ao
contrabando, punível com a mesma pena.
A partir de 1989
Em 1989
é aprovado o DL nº 376-A/89, de 25 de Outubro. De facto, foram muitas as
declarações de inconstitucionalidade que abalaram o DL nº 424/86 e, além disso,
tornava-se urgente adaptar o sistema luso ao estabelecimento do mercado interno
que ocorreria dentro de poucos anos. Foi, assim, introduzido o RJIFA, aprovado
pelo aludido DL.
Neste
diploma, e no que toca ao crime de contrabando de circulação, assumiu-se
finalmente a posição lógica exigível: é inadmissível comparar o contrabando de
circulação a um contrabando de importação, já que no primeiro a exigibilidade
de as mercadorias terem proveniência estrangeira não existe. Com efeito, o RJIFA autonomizou o crime,
separando-o finalmente do contrabando clássico.
O RGIT
Finalmente,
surge o RGIT, aprovado em 2001[6], que procedeu
à arrumação legal que hoje conhecemos, definindo o crime de contrabando de
circulação no art. 93º, com os elementos que, adiante, serão devidamente
analisados.
O CRIME DE CONTRABANDO DE CIRCULAÇÃO EM ESPECIAL
Elementos objectivos
O crime
em análise tem três grandes elementos. Nesta linha, pratica o crime de
contrabando de circulação, previsto no art. 93º do RGIT, quem:
- Colocar
ou deter em circulação, no interior do território nacional, mercadorias em
violação de leis aduaneiras relativas à circulação interna ou comunitária de
mercadorias,
- Sem o
processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis
ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos,
- Se o
valor da prestação tributária em falta for superior a 15000€ ou, não havendo
lugar a prestação tributária, a mercadoria objecto da infracção for de valor
aduaneiro superior a 50000€[7]”.
Remissão: as leis aduaneiras
A
previsão do crime, conforme plasmada supra,
efectua, como fica patente no ponto anterior, uma remissão legislativa para
disposições subsidiárias: as leis aduaneiras.
Ora,
esta remissão refere-se ao CAC, aprovado pelo Regulamento (CEE) nº 2913/92, de
12 de Outubro, estabelecendo o seu art. 1º que a legislação aduaneira
compreende esse próprio Código e as disposições adoptadas a nível comunitário
ou nacional em sua aplicação, de que são exemplo as Disposições de Aplicação do
CAC. O legislador comunitário não inclui, na sistematização aduaneira
comunitária, apenas as normas que regulam aspectos de natureza estritamente
aduaneira, mas também outras normas que regulam prestações tributárias cuja
administração esteja cometida às alfândegas.
Basta, a
este respeito verificar, que DGAIEC administra os impostos especiais sore o
consumo, incluindo-se, portanto, a respeitante lei reguladora no conceito de
legislação aduaneira.
A PUNIBILIDADE DA TENTATIVA
Segundo
o art. 22º do CP, há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um
crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.
Ora, refere, o nº 2 do art. 93º do RGIT que
a tentativa de praticar o crime de contrabando de circulação é também punível. A
tentativa consiste, na realização incompleta do comportamento típico do tipo de
crime – a sua incriminação corresponde à extensão da punibilidade às
realizações incompletas do tipo de crime que o agente decidiu realizar.
A APLICAÇÃO DE PENA ACESSÓRIA
Além da
punição prevista no art. 93º, há lugar à aplicação de uma pena acessória[8]: a perda
de mercadorias (com previsão no art. 18º). Assim, grosso modo:
- As
mercadorias objecto do crime de contrabando de circulação são declaradas
perdidas a favor da Fazenda Pública;
- O
resultado anterior não se verificará se as mercadorias pertencem a pessoa sem
responsabilidade sobre a prática criminosa;
- No
caso anterior, o agente do crime paga à Fazenda Pública importância igual à das
mercadorias.
CONCLUSÕES
O
tratamento dado pelo legislador ao crime de contrabando de circulação pouco
mudou desde a década de 40 e da influência do “velho” Contencioso Aduaneiro. As
mercadorias que, em cada momento, poderiam ser objecto do crime, contidas em
disposições aduaneiras subsidiárias, sempre espelharam a preocupação
governamental, procedendo a um controlo especial, tendente a opor-se à
distorção económica operada pelo tráfico ilegal[9].
Apesar
de este crime não ser um crime de contrabando puro, foi sendo a ele,
erradamente, equiparado. Erradamente, já que, o crime analisado neste trabalho
refere-se a mercadorias furtadas ao cumprimento das formalidades de despacho,
sejam elas nacionais ou estrangeiras, enquanto o “puro” contrabando apenas se
pretende referir à introdução ilegal de mercadorias com proveniência no
exterior do país.
Ora, as
mercadorias que podiam ser objecto do crime de circulação, não tinham
circulação livre no interior do país, no que constituía restrição à sua circulação.
As exigências da UE opor-se-iam a uma restrição de tal ordem, pelo que, se
verificou a revogação tácito do Regulamento das Alfândegas. Não são admissíveis
limitações aduaneiras à circulação de mercadorias entre Estados-membros. É este
um princípio basilar a nossa ordem comunitária.
Ora, se
assim não fosse, uma mercadoria prevista no art. 1º do CAC, que desse entrada
em Portugal, sem os selos e documentos exigidos pelo referido compêndio legislativo,
com proveniência num território de um Estado-membro, seria objecto de um crime
de contrabando de circulação, resultado inadmissível, à luz do Tratado da UE.
Assim,
tendo em conta tudo quanto foi dito supra
tem de retirar-se conclusão inegável: a norma do art. 93º do RGIT é, nos dias
que correm, obsoleta e desajustada à realidade. Os princípios que lhe servem de
base não existem, por força da adesão do nosso país à UE.
Por José Vieira de Castro
Junho de 2014
[1] Basta pensar, a este propósito,
na dispersão de procedimentos tributários pelo CPPT e pela LGT, sem qualquer
sistematização lógica.
[2] Com a excepção do crime de
contrabando de mercadorias de circulação condicionada em embarcações, previsto
no art. 94º do RGIT.
[3] Veja-se, a título
exemplificativo, os arts. 95º e 96º.
[4] Cfr. art. 279º do CP de 1852.
[5] Aprovado pelo Decreto-Lei nº
31.664
[6] Diploma aprovado pelo DL nº
15/2001 de 5 de Junho.
[7] Como, aliás já foi referido.
[8] Veja-se o art. 16º, alínea i) do
RGIT.
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