segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O Crime Aduaneiro de Contrabando de Circulação - Considerações Gerais





CONSIDERAÇÃO INICIAL: A INOVAÇÃO OPERADA PELO RGIT
O RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001 de 5 de Junho consagra o regime sancionatório das infracções em matéria tributária. Antes da aprovação do diploma referido, existiam dois normativos autónomos: o RJIFA e o RJIFNA que em nada favoreciam a simplicidade processual e espelhavam a tendência de dispersão legislativa tão comum no nosso ordenamento jurídico[1].

O RGIT opera, assim, uma concentração salutar, com o valor simplificador de toda a rede sancionatória tributária:
- Classifica as infracções tributárias em crimes e contra-ordenações (art. 2º): os primeiros são ilícitos dotados de maior gravidade, punidos com penas criminais e sanções acessórias; os segundos são ilícitos menos graves e por isso sancionados de forma mais leve, com coimas e sanções acessórias;
-Tipifica as infracções em especial (arts. 87º a 129º);
-Estabelece o elenco de sanções aplicáveis (artigos 12º e seguintes e 26º e seguintes);
-Regula os aspectos essenciais dos processos criminais e contra-ordenacionais (arts. 35º a 50º e 51º a 75º, respectivamente);
-Organiza os crimes tributários em função de quatro critérios distintos e bem delimitados: crimes tributários comuns (arts. 87º a 91º), crimes aduaneiros (arts. 92º a 102º), crimes fiscais (arts. 103º a 105º) e crimes contra a segurança social (arts. 106º e 107º);
- Quanto às contra-ordenações tributárias, classifica-as como aduaneiras (arts. 108º a 112º) ou fiscais (arts. 113º a 129º).

Ora, como bem se verifica da análise legal, existe um elemento essencial[2] dos tipos penais: um limite quantitativo. Assim, e referindo-nos aos crimes aduaneiros, a conduta prevista no tipo legal apenas constituirá crime, se a prestação em causa for superior a 15000€, ou, não havendo prestação, se a mercadoria objecto da infracção for de valor superior a 50000€[3].

A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DO CRIME DE CONTRABANDO DE CIRCULAÇÃO
Até 1941
As normas fiscais aduaneiras faziam, tradicionalmente, parte do direito penal clássico. Neste seguimento, o crime aduaneiro por excelência, o contrabando começou por ser um crime comum[4].

Em 1941, as infracções aduaneiras foram autonomizadas no Contencioso Aduaneiro[5], deixando de fazer parte do chamado direito penal primário, passando a fazer parte do secundário, até hoje.

Além do “puro” delito de contrabando, o Contencioso equiparava outras condutas ilícitas àquele delito, nomeadamente considerando como contrabando o crime de contrabando de circulação, conforme o art. 36º do referido diploma.

Assim, seria também considerado contrabando a circulação de mercadorias que, não sendo livre, se efectue sem o processamento das competentes guias ou outros documentos requeridos ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos.

Nesta linha, o crime aqui em análise não havia sido, ainda autonomizado, constituindo-se unicamente como um tipo de contrabando – seria um segundo filtro de segurança, visando as mercadorias que, apesar de todo o aparato de fiscalização, podiam ser furtadas ao cumprimento das formalidades de despacho.

A partir de 1983
Com a publicação do DL nº 187/83, de 13 de Maio foi levada a cabo uma importante sistematização: dividiram-se infracções aduaneiras em crimes aduaneiros e contra-ordenações aduaneiras.

O contrabando de circulação passou, a partir daqui, a ser definido como crime. Se o Contencioso Aduaneiro previa a conduta típica no seu artº 36º, o DL nº 187/83 passou a prevê-la com os mesmos pressupostos, na alínea c) do nº 2 do artº 9º. Tal como já acontecia, este crime não mais seria que uma assimilação ao delito de contrabando, ao qual era aplicada a mesma pena. Do mesmo modo, continuou a ser definido nos mesmos moldes o conceito de circulação, agora constante do nº 6 do artº 9º.

A partir de 1986
O DL nº 424/86, de 27 de Dezembro procedeu à revogação do DL nº 187/83 procedendo a profundas alterações por um lado, e à manutenção de soluções do velho Contencioso Aduaneiro por outro, por terem ainda um assinalável grau de validade e actualidade.

 Quanto ao crime que constitui a base de estudo deste trabalho, o crime de contrabando de circulação, permaneceu inalterado em todos os seus pressupostos. Mudaram, apenas, dois aspectos: a arrumação, por um lado, passando o conceito a constar do nº 7 do artigo 9º e uma clarificação, por outro, ao não considerar em poder do consumidor “as mercadorias existentes em estabelecimentos comerciais ou industriais ou suas dependências ou quando se destinem a comércio”.

Portanto, e em suma, o contrabando de circulação continuou a ser um crime assimilado ao contrabando, punível com a mesma pena.

A partir de 1989
Em 1989 é aprovado o DL nº 376-A/89, de 25 de Outubro. De facto, foram muitas as declarações de inconstitucionalidade que abalaram o DL nº 424/86 e, além disso, tornava-se urgente adaptar o sistema luso ao estabelecimento do mercado interno que ocorreria dentro de poucos anos. Foi, assim, introduzido o RJIFA, aprovado pelo aludido DL.

Neste diploma, e no que toca ao crime de contrabando de circulação, assumiu-se finalmente a posição lógica exigível: é inadmissível comparar o contrabando de circulação a um contrabando de importação, já que no primeiro a exigibilidade de as mercadorias terem proveniência estrangeira não existe.  Com efeito, o RJIFA autonomizou o crime, separando-o finalmente do contrabando clássico.

O RGIT
Finalmente, surge o RGIT, aprovado em 2001[6], que procedeu à arrumação legal que hoje conhecemos, definindo o crime de contrabando de circulação no art. 93º, com os elementos que, adiante, serão devidamente analisados.

O CRIME DE CONTRABANDO DE CIRCULAÇÃO EM ESPECIAL
Elementos objectivos
O crime em análise tem três grandes elementos. Nesta linha, pratica o crime de contrabando de circulação, previsto no art. 93º do RGIT, quem:
- Colocar ou deter em circulação, no interior do território nacional, mercadorias em violação de leis aduaneiras relativas à circulação interna ou comunitária de mercadorias,  
- Sem o processamento das competentes guias ou outros documentos legalmente exigíveis ou sem a aplicação de selos, marcas ou outros sinais legalmente prescritos,
- Se o valor da prestação tributária em falta for superior a 15000€ ou, não havendo lugar a prestação tributária, a mercadoria objecto da infracção for de valor aduaneiro superior a 50000€[7]”.

Remissão: as leis aduaneiras
A previsão do crime, conforme plasmada supra, efectua, como fica patente no ponto anterior, uma remissão legislativa para disposições subsidiárias: as leis aduaneiras.

Ora, esta remissão refere-se ao CAC, aprovado pelo Regulamento (CEE) nº 2913/92, de 12 de Outubro, estabelecendo o seu art. 1º que a legislação aduaneira compreende esse próprio Código e as disposições adoptadas a nível comunitário ou nacional em sua aplicação, de que são exemplo as Disposições de Aplicação do CAC. O legislador comunitário não inclui, na sistematização aduaneira comunitária, apenas as normas que regulam aspectos de natureza estritamente aduaneira, mas também outras normas que regulam prestações tributárias cuja administração esteja cometida às alfândegas.

Basta, a este respeito verificar, que DGAIEC administra os impostos especiais sore o consumo, incluindo-se, portanto, a respeitante lei reguladora no conceito de legislação aduaneira.

A PUNIBILIDADE DA TENTATIVA
Segundo o art. 22º do CP, há tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.

Ora, refere, o nº 2 do art. 93º do RGIT que a tentativa de praticar o crime de contrabando de circulação é também punível. A tentativa consiste, na realização incompleta do comportamento típico do tipo de crime – a sua incriminação corresponde à extensão da punibilidade às realizações incompletas do tipo de crime que o agente decidiu realizar.

A APLICAÇÃO DE PENA ACESSÓRIA
Além da punição prevista no art. 93º, há lugar à aplicação de uma pena acessória[8]: a perda de mercadorias (com previsão no art. 18º). Assim, grosso modo:
- As mercadorias objecto do crime de contrabando de circulação são declaradas perdidas a favor da Fazenda Pública;
- O resultado anterior não se verificará se as mercadorias pertencem a pessoa sem responsabilidade sobre a prática criminosa;
- No caso anterior, o agente do crime paga à Fazenda Pública importância igual à das mercadorias.

CONCLUSÕES
O tratamento dado pelo legislador ao crime de contrabando de circulação pouco mudou desde a década de 40 e da influência do “velho” Contencioso Aduaneiro. As mercadorias que, em cada momento, poderiam ser objecto do crime, contidas em disposições aduaneiras subsidiárias, sempre espelharam a preocupação governamental, procedendo a um controlo especial, tendente a opor-se à distorção económica operada pelo tráfico ilegal[9].

Apesar de este crime não ser um crime de contrabando puro, foi sendo a ele, erradamente, equiparado. Erradamente, já que, o crime analisado neste trabalho refere-se a mercadorias furtadas ao cumprimento das formalidades de despacho, sejam elas nacionais ou estrangeiras, enquanto o “puro” contrabando apenas se pretende referir à introdução ilegal de mercadorias com proveniência no exterior do país.

Ora, as mercadorias que podiam ser objecto do crime de circulação, não tinham circulação livre no interior do país, no que constituía restrição à sua circulação. As exigências da UE opor-se-iam a uma restrição de tal ordem, pelo que, se verificou a revogação tácito do Regulamento das Alfândegas. Não são admissíveis limitações aduaneiras à circulação de mercadorias entre Estados-membros. É este um princípio basilar a nossa ordem comunitária.

Ora, se assim não fosse, uma mercadoria prevista no art. 1º do CAC, que desse entrada em Portugal, sem os selos e documentos exigidos pelo referido compêndio legislativo, com proveniência num território de um Estado-membro, seria objecto de um crime de contrabando de circulação, resultado inadmissível, à luz do Tratado da UE.

Assim, tendo em conta tudo quanto foi dito supra tem de retirar-se conclusão inegável: a norma do art. 93º do RGIT é, nos dias que correm, obsoleta e desajustada à realidade. Os princípios que lhe servem de base não existem, por força da adesão do nosso país à UE.


Por José Vieira de Castro


Junho de 2014





[1] Basta pensar, a este propósito, na dispersão de procedimentos tributários pelo CPPT e pela LGT, sem qualquer sistematização lógica.
[2] Com a excepção do crime de contrabando de mercadorias de circulação condicionada em embarcações, previsto no art. 94º do RGIT.
[3] Veja-se, a título exemplificativo, os arts. 95º e 96º.
[4] Cfr. art. 279º do CP de 1852.
[5] Aprovado pelo Decreto-Lei nº 31.664
[6] Diploma aprovado pelo DL nº 15/2001 de 5 de Junho.
[7] Como, aliás já foi referido.
[8] Veja-se o art. 16º, alínea i) do RGIT.
[9] Existiriam, ainda, outras preocupações como a defesa da saúde pública.



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