sábado, 1 de novembro de 2014

A figura do administrador independente nas sociedades comerciais portuguesas


O nascimento da figura

O relevo da inclusão de administradores independentes na estrutura das sociedades comerciais representa um dos principais temas debatidos em relação ao governo societário ou, na expressão anglo-saxónica, corporate governance. A origem deste debate remonta ao século XIX e está relacionada com o princípio da separação entre propriedade e gestão do capital das empresas, princípio esse que contribuiu para focalizar as competências decisórias no órgão de administração, deixando o accionista investidor desprotegido. A sua protecção passaria a residir nos mecanismos de controlo da actuação da administração, tanto externos[1]como internos[2], aos quais caberia inspeccionar, com transparência, a sua actividade.


Todavia, foi nas décadas finais do século XX que este assunto assumiu um maior relevo. Naquela altura erguiam-se nos Estados Unidos da América alguns escândalos políticos e económicos – mencionamos aqui o caso Watergate, por ser o mais paradigmático – que, aliados ao fraco desempenho económico de muitas empresas americanas durante as décadas de 70 e 80, denunciavam algumas falhas clamorosas que se mantinham desde os anos 50: existia uma completa ausência de controlo de actividade de gestão pelo conselho de administração que deu origem à descoberta da aprovação de remunerações qualificadas como obscenas e num falhanço generalizado em detectar e resolver situações de conflitos de interesses e de manipulação de contas. Era, portanto, urgente rever a estrutura do sistema de corporate governance americano, que ainda hoje se caracteriza pela preponderância de sociedades de titularidade fragmentada, desprovidas de um accionista maioritário e constituídas por um órgão de administração afastado da gestão corrente da sociedade e uma fraca fiscalização da mesma.

A própria eleição dos membros do conselho de administração era condicionada por grupos de accionistas da esfera de influência do C.E.O. (Chief Executive Officer), o qual detinha um grande poder sobre o conselho de administração, em virtude da acumulação dessas funções executivas com as de presidente do conselho de administração. Hoje em dia, naquele ordenamento, fomenta-se a ideia de que devem existir reuniões entre os administradores (independentes) sem a presença do C.E.O..

Para tentar sarar estas feridas que, com o passar dos anos, se foram destapando, o direito societário norte-americano recorreu a um leque de mecanismo sque visavam limitar os agency costs[3], sendo um deles a integração de administradores independentes nos conselhos de administração, cuja função primordial seria a de controlo e inspecção da entidade gestora da sociedade, com vista à protecção do accionista investidor.
           
Perfil e funções do administrador independente
Feito este breve enquadramento histórico, cumpre agora examinar as funções que um administrador independente deverá desempenhar, ou seja, qual é que deverá ser o seu papel/perfil dentro da estrutura societária, através de um recurso ao direito comparado (com especial incidência ao direito societário norte-americano). Como já pudemos referenciar, os administradores independentes devem, fundamentalmente, exercer uma função de supervisão da sociedade. Não obstante, tal não implica que este não possa desempenhar outras funções tais como o aconselhamento e planeamento da actividade de gestão, com vista à prossecução dos interesses da sociedade no seu todo, isto é, sem favorecer determinados membros.

“O administrador independente deve ser um elemento desligado em relação a áreas de influência que sejam susceptíveis de conformar o sentido da sua actuação e decisão no âmbito do órgão de administração”[4]. Essas áreas de influência, segundo Rui Oliveira e Neves, agregam-se essencialmente em torno de 3 núcleos: a esfera da sociedade, a esfera dos interesses próprios ou conexos e a esfera dos sócios ou, pelo menos, de determinados sócios…

Mas como é que se pode diminuir o efeito nefasto destas áreas de influência na actuação do administrador, de forma a termos uma “administração” (o mais) isenta (possível)? Ao longo deste trabalho vamos tentar, aos poucos, responder a esta questão. Para já, podemos adiantar que o facto de os administradores independentes não colaborarem na gestão corrente da sociedade reforça a imparcialidade das suas decisões.

A inclusão de membros independentes nos conselhos de administração tem sido, portanto, consagrada internacionalmente, quer através de Recomendações da Comissão Europeia, quer através de Princípios Internacionais, que têm sido, passo a passo, adoptados ao direito interno de cada país. Este mecanismo, contudo, não representa obrigatoriamente uma vantagem para a sociedade em termos de “performance”, de rendimento, uma vez que não existe uma relação de causalidade directa entre a participação destes e a melhoria de desempenho desta[5].

Assim sendo, a importância do administrador independente, nas palavras de Rui de Oliveira Neves, “ não se pode perspectivar do ponto de vista ontológico, como uma realidade indispensável para o bom funcionamento das sociedades, mas do ponto de vista axiológico, na medida em que o administrador independente introduza uma valoração ética à condução dos negócios sociais, que permita impedir/corrigir os abusos cometidos pela gestão”.

O administrador independente constitui, também, uma alternativa à actuação de entidades de supervisão e tribunais nalgumas matérias em que podem surgir conflitos de interesses que necessitem de uma avaliação rigorosa que apenas poderá ser feita por alguém que tenha uma conexão mais próxima com a sociedade em concreto. Falamos, a título de exemplo, das regras sobre remuneração e nomeação de administradores. São questões que exigem um tratamento cuidado e a presença de entidades imparciais no interior do órgão de administração, com vista à gestão destes inevitáveis conflitos de interesses, poderá traduzir-se num factor essencial de prevenção de abusos de poder por parte da gestão.

Todavia, há alguns obstáculos que podem, sem dúvida, impossibilitar os administradores independentes de fiscalizar, com rigor, a gestão social. Referimo-nos aqui às raras reuniões dos Conselhos de Administração, por exemplo, bem como as dificuldades que lhes são colocadas quando necessitam de aceder a alguma informação importante no interior da empresa. Para tudo isto contribui, claro está, o facto de os administradores independentes não serem, normalmente, administradores a tempo inteiro, bem como o facto de, nalguns casos, estes serem propostos pela gestão executiva da sociedade e eleitos pelos seus accionistas, o que lhes pode retirar uma boa parte da sua afamada isenção.

Basta pensarmos numa sociedade em que exista um accionista maioritário e, consequentemente, com uma maior capacidade de influência nas decisões negociais da sociedade. Havendo um monopólio do capital votante, os administradores independentes eleitos serão aqueles que fizerem parte da lista de administradores aprovada pelos accionistas de controlo, não obstante as regras formais de aferição de independência. Este é um dos inconvenientes de uma sociedade em que não exista dispersão do capital por vários accionistas, uma vez que nestes casos é necessário conciliar vários interesses em situação de paridade.

Em síntese, cada ordenamento jurídico prevê, à sua maneira, factores de exclusão de independência que impeçam o administrador de actuar de acordo com os interesses de todos os stakeholders. Este deve respeitar os objectivos da sociedade, mantendo a sua vontade decisória livre de influências de grupos específicos de interesse. Do ponto de vista funcional, observamos que a figura do administrador independente encontra-se mais vocacionada para as tarefas de fiscalização, funcionando como um mecanismo de controlo interno. Há um afastamento relativamente à gestão corrente da sociedade, embora tal não implique este não possa desempenhar um papel de aconselhamento e planeamento das actividades do órgão de administração.

A inserção do administrador independente no nosso ordenamento jurídico
Após uma abordagem ao conceito de administrador independente e ao seu papel na estrutura societária norte-americana (de onde é originário), resta-nos agora saber como é que esta figura foi introduzida no ordenamento jurídico português. Como é sabido, existem bastantes diferenças entre estes dois ordenamentos, pelo que a inclusão desta figura implica, obrigatoriamente, algumas adaptações devido aos diferentes contextos: trata-se de uma espécie de um “transplante legal”. De facto, distinguindo-se do sistema norte-americano, a estrutura societária portuguesa caracteriza-se pela existência comum de um órgão de administração a par de um órgão de fiscalização; as sociedades cotadas, frequentemente, possuem um accionista maioritário; o órgão de administração participa na gestão corrente da sociedade.

Em 1999 apareciam, através das Recomendações da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (C.M.V.M.) sobre o governo das sociedades cotadas, as primeiras referências à independência de um membro do órgão de administração no ordenamento jurídico português. De acordo com a recomendação nº 15 estimulava-se “a inclusão no órgão de administração de um ou mais membros independentes em relação aos accionistas dominantes, de forma a maximizar a prossecução dos interesses da sociedade”.

Decorridos dois anos, eis que surge a primeira revisão às Recomendações da C.M.V.M., em Dezembro de 2001, concomitante com o Regulamento nº7/2001.Aperfeiçoou-se o papel atribuído aos membros independentes, cujo conceito passou a ser determinado por cada sociedade. Assim, de acordo com a Recomendação número 9, pretendia-se que os administradores independentes do órgão de administração exercessem “uma influência significativa na tomada de decisões colegiais e contribuir para o desenvolvimento da estratégia da sociedade, em prol da prossecução dos interesses da sociedade. Para este efeito, é importante que cada sociedade determine o conceito de administrador independente que seja ajustado às suas características concretas e que explicite publicamente o conceito adoptado”.

Em 2003 surgiu uma nova actualização, em consonância com o Regulamento C.M.V.M. nº11/2003, a qual veio, de forma inovadora, introduzir uma definição, na Recomendação número 9, do perfil do administrador independente, com vista a atingir uma padronização de critérios para a identificação de membros independentes do conselho de administração. Esta definição, que ainda hoje se mantém, trata-se de uma delimitação negativa do conceito de administrador independente, que será aquele que não esteja aliado a grupos de interesses específicos na sociedade.

A seguinte revisão, em Novembro de 2005, apesar de ter mantido a definição de administrador independente que abordamos no parágrafo anterior, estabeleceu algumas alterações que incidiram sobretudo sobre o aperfeiçoamento dos sistemas de controlo interno das sociedades: o leque taxativo de situações que impossibilitavam a independência dos administradores foi alargado.

Um outro factor de relevo para o aprimorar da noção de administrador independente no direito societário nacional encontra-se na Recomendação da Comissão Europeia nº 2005/162/CE, de 15 de Fevereiro de 2005, relativa ao papel dos administradores não executivos ou membros de supervisão de sociedades com valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado. Seguindo as linhas orientadoras deste documento europeu, os Estados-Membros da União Europeia foram, então, moldando o seu direito interno.

Observando o ponto 13 desta recomendação, verificamos que é proposta uma definição de administrador independente, o qual não deve ter “ quaisquer relações comerciais, familiares ou outras – com a sociedade, com o accionista que detém o controlo ou com os órgãos de direcção de qualquer um dos anteriores – que possam originar um conflito de interesses susceptível de prejudicar a sua capacidade de apreciação”.

A fixação dos critérios para a determinação da independência, segundo este ponto, é da competência do próprio conselho de administração ou de supervisão, o qual pode determinar que “ apesar de um determinado administrador cumprir todos os critérios adoptados a nível nacional para a apreciação da independência dos administradores, não pode ser considerado independente devido a circunstâncias específicas da pessoa ou da sociedade, sendo o inverso igualmente aplicável”.

Arrematando, o órgão de administração deve incluir, então, suficientes membros independentes, com capacidades de supervisão relativamente às decisões da gestão, preservando os interesses dos stakeholders.
As Recomendações da C.M.V.M. mencionadas, bem como a Recomendação da Comissão Europeia, tiveram um papel preponderante na reforma do Código das Sociedades Comerciais, efectuada pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, que veio introduzir o conceito de membro independente no domínio da fiscalização interna das sociedades comerciais, patente no nº5 do artigo 414º, e alargar o leque de incompatibilidades presente no artigo 414º-A, relativamente aos membros do conselho fiscal. A independência do administrador prende-se, então, com a autonomia da sua capacidade de decisão, livre de qualquer influência económica, psicológica ou pessoal.
Este documento trouxe, de certa forma, uma alteração aos modelos de governo das sociedades anónimas, ou seja, ao sistema de regras atinente ao controlo e direcção destas sociedades, que iremos explorar mais à frente neste artigo. No seguimento deste Decreto-Lei, surge o “Código de Governo das Sociedades da C.M.V.M.”, em Setembro de 2007, numa tentativa de arrumação destas recomendações, incentivando a inclusão de membros não executivos no conselho de administração, os quais devem supervisionar a actividade dos membros executivos. Este conjunto de administradores não executivos deve abranger um determinado número de administradores independentes, tendo em conta a dimensão da sociedade, não podendo, em caso algum, ser inferior a um quarto do número total de administradores.

Este Código de Governo das Sociedades foi alterado em 2010 e, mais recentemente, revogado pelo Regulamento da C.M.V.M. 4/2013, que entrará em vigor no dia 1 de Janeiro de 2014. Manteve-se a ideia central de que devem existir administradores não executivos – e independentes, devendo o seu número ser adequado modelo de governo adoptado - no conselho de administração que avaliem a actividade dos restantes membros do órgão de administração. Acrescentamos ainda a existência de uma lista taxativa de causas susceptíveis de afectar a isenção de análise dos membros do Conselho de administração – que não os membros da comissão de auditoria nem do conselho geral de supervisão, uma vez que a independência desses se afere através da legislação vigente -, os quais não devem estar associados a qualquer grupo de interesses específicos na sociedade.

Em suma, o administrador independente apresenta-se, hoje em dia, como um elemento desligado de grupo de interesses específicos na sociedade, que não se inclui em nenhuma das causas que excluem a independência, não se encontrando, portanto, em qualquer circunstância susceptível de afectar a sua imparcialidade nas tomadas de decisão.

O seu papel consiste em informar-se sobre a gestão societária, fiscalizando-a, tornando-se num agente de controlo societário interno, tendo sempre em conta os interesses dos diversos stakeholders. Trata-se de um verdadeiro Tertium genus, isto é, um administrador fiscalizador com uma postura activa no plano da prevenção e gestão de conflitos de interesses.

A figura do administrador independente e os modelos de fiscalização do artigo 278º do C.S.C.
Depois desta exposição, por ordem cronológica, da evolução legislativa concernente ao desenvolvimento da figura do administrador independente no ordenamento jurídico português, passaremos agora à análise de alguns artigos importantes do Código das Sociedades Comerciais. Com o Decreto-Lei nº 76-A/2006 surgiu uma alteração do quadro normativo dos modelos de governo das sociedades anónimas. Segundo o número 1 do artigo 278º C.S.C., a fiscalização e a administração destas sociedades podem adoptar, para a sua estrutura, um destes três modelos: conselho de administração e conselho fiscal (modelo latino); conselho de administração (que inclui uma comissão de auditoria) e um revisor oficial de contas (modelo anglo-saxónico); conselho de administração executivo, conselho geral e de supervisão e revisor oficial de contas. Consoante o modelo adaptado, poderemos ter certas algumas diferenças nos poderes e funções atribuídos ao administrador independente.

A cláusula geral de independência – o artigo 414º nº 5
No que concerne ao primeiro modelo, o nº4 do artigo 414º (referente à composição qualitativa do conselho fiscal) diz-nos que no caso das sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado o conselho fiscal deve ter pelo menos um membro que seja independente. No nº5 do mesmo artigo podemos encontrar uma definição sobre independência, fruto das influências das recomendações da C.M.V.M. e da Recomendação da Comissão europeia. Alcançada através da utilização de critérios negativos, esta definição confere a qualidade de independência a um membro de um órgão de fiscalização (bem como a um administrador independente, enquanto membro da comissão de auditoria, artigo 414º nº5 ex vi 423º-B), através da verificação cumulativa de dois preceitos: o administrador não pode estar associado a determinados grupos com entidades interesses específicos na sociedade; é imperativa a inexistência de circunstâncias susceptíveis de afectar a sua isenção de análise ou decisão.

Estamos perante uma cláusula geral de independência que, na esteira dos documentos europeus e nacionais que a influenciaram, vem estabelecer uma relação entre a independência do administrador e a sujeição do mesmo a certas entidades que pretendem atingir um certo fim não compartilhado com outros grupos de interesse, influenciando a sua capacidade de análise.

Juridificou-se a expressão “grupos de interesses” que, à semelhança do domínio político, consiste em “formas associativas com menor ou maior estruturação, mas em que o elemento aglutinador dos respectivos membros (ou dos seus representantes) consiste em partilha de interesses ou objectivos comuns que pretendem prosseguir através do exercício, por diversos meios, de influência sobre os decisores políticos”[6].Por incrível que pareça, estes grupos de interesses são compostos maioritariamente por accionistas e administradores da própria sociedade, os quais tentam sobrepor os seus interesses individuais aos dos restantes stakeholders, desconsiderando, no caso dos administradores, o princípio da lealdade presente no artigo 64º C.S.C.
Esta cláusula geral de independência pode ser concretizada através da verificação dos exemplos presentes nas alíneas a) e b) do mesmo número: quando o administrador seja titular ou actue em nome de titulares de participação qualificada igual ou superior a 2% do capital social da sociedade, ou quando se verifique a sua reeleição por mais de dois mandatos, respectivamente, este deixa de ser acreditado como independente para efeito da composição dos órgãos de controlo interno.

Apesar de útil, este critério geral de independência é, na nossa opinião, demasiado vago, o que dificulta a tarefa de avaliar, no caso concreto, se um administrador é ou não verdadeiramente independente e, consequentemente, cria um obstáculo à finalidade da norma. Por outro lado, a expressão “grupo de interesses” necessita, também, de ser densificada, quanto mais não seja, doutrinalmente. Esta crítica, se nos é permitido fazê-la, estende-se não só a esta cláusula, mas ao regime criado em 2006 pela reforma do C.S.C. relativo à independência dos administradores, que pecou pela falta de aprofundamento e de imprecisão de alguns conceitos.

O papel do administrador independente no modelo anglo-saxónico – artigo 278º nº1 b)
O modelo anglo-saxónico encontra-se plasmado na alínea b) do nº1 do artigo 278º do C.S.C.. Este modelo propõe, então, a existência de um conselho de administração que inclua uma comissão de auditoria e um reviso oficial de contas. Segundo o artigo 423º-B nº4, a comissão de auditoria das sociedades cotadas deve conter pelo menos um membro que, nos termos do nº5 do artigo 414º, seja considerado independente. Mas no que é que consiste a comissão de auditoria? Qual é a sua função?

As competências deste órgão encontram-se descritas no artigo 423º-F, sendo que aquela que terá mais relevância para o nosso tema será a função de fiscalizar a administração da sociedade. Diversamente do modelo latino, neste género de estrutura societária temos uma fiscalização que é feita por “dentro”, e não por um órgão exterior. Todavia, as regras correspondentes à fiscalização nos dois tipos de modelo são as mesmas, o processo é o mesmo.

A comissão de auditoria consiste, então, no órgão social – cujas funções não são delegadas do conselho de administração, mas sim próprias - que fiscaliza a actividade da administração da sociedade. Ora surge-nos aqui uma questão: sabendo que, de acordo com o artigo 423º-B nº2, este órgão tem que integrar um número mínimo de três membros da administração, – sendo pelo menos um deles independente, nº4 do mesmo artigo, como já foi referido anteriormente – deduz-se que a comissão é composta por membros que desempenham, simultaneamente, funções de administração. Admitindo então que teremos três administradores (sendo pelo menos um deles independente) a desempenhar dois tipos de funções, não poderá haver aqui algum conflito entre os dois papéis que desempenham? Os poderes de fiscalização que o administrador independente terá, como membro da comissão de auditoria, não poderão fazer dele um “watchdog” interno no seio do órgão de administração, utilizando a terminologia de Rui de Oliveira Neves?

Para tentar responder a esta dúvida, vamos analisar algumas das funções e deveres do administrador independente enquanto membro do conselho de administração. Como a qualquer outro administrador, compete-lhe:
-  dirigir a sociedade (artigos 405º e 406º do C.S.C.), respeitando os deveres de cuidado e diligência de um gestor criterioso, atendendo aos interesses da sociedade , artigo 64º C.S.C.;
- monitorizar a actuação dos administradores-delegados ou da comissão executiva (artigo 407º nº8);
-   prestar contas aos accionistas ( artigo 65º nº2 );
- prestar caução pela responsabilidade quanto à sua actuação como administrador, salvo dispensa prevista no nº 3 do artigo 396º;

Tendo em conta estas competências, não nos parece que o administrador independente tenha, enquanto membro do órgão de administração, algum poder especial de controlo interno que advenha da sua posição na comissão de auditoria e que o torne numa espécie de cão de vigia interno. Aliás, mesmo no âmbito da responsabilidade civil, verifica-se esta paridade entre os elementos do órgão de administração (quer sejam membros ou não da comissão de auditoria), como é visível através de uma leitura dos artigos 72º, 78º e 79º C.S.C. Segundo estes artigos, o administrador independente poderá ser demandado, pela sua actuação enquanto administrador, pelos danos causados à sociedade, aos accionistas ou aos credores sociais, como qualquer outro administrador. Para além disso, acrescentamos o facto de cada administrador ser solidariamente responsável pelos actos praticados pelos seus consortes, segundo o artigo 73º, seguindo o princípio da colegialidade.

Não obstante, a conclusão retirada do parágrafo anterior não implica que o administrador independente, enquanto membro da comissão de auditoria, não disponha de faculdades de inspecção e supervisionamento. Aqui sim, possui poderes especiais de controlo interno, seguindo a linha de pensamento trilhada pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, que veio atribuir funções de fiscalização ao administrador e que implicou o seu afastamento das actividades de gestão corrente da sociedade, artigo 423º-B nº3 do C.S.C., como veremos no tópico seguinte.

Mecanismos de controlo interno: os poderes do administrador independente enquanto membro da comissão de auditoria
Para finalizar o presente estudo vamos tentar perceber, afinal, quais são os poderes de um administrador independente pertencente à comissão de auditoria. Este órgão de fiscalização, como já pudemos referir, dedica-se, entre outras coisas, à monitorização da administração da sociedade, artigo 423º-F nº1 a) o C.S.C.. Seguindo as directrizes da reforma de 2006, que criou este novo modelo de estrutura societária que permite uma fiscalização feita “por dentro”, os administradores que integram a comissão de auditoria passam a desempenhar funções de controlo interno da actuação dos membros do órgão de administração, representando assim um atestado de confiança aos investidores e ao mercado em relação à sociedade. De facto, o princípio de solidariedade no âmbito da responsabilidade civil dos membros do órgão de fiscalização por actos dos membros do órgão de administração, quando ocorram danos que poderiam ter sido evitados se os fiscalizadores tivessem actuado com diligência, implementado pela reforma de 2006 no artigo 81º nº2 C.S.C., serve como um exemplo de um reforço na confiança do accionista investidor.

Este enquadramento dogmático da figura do administrador independente como um “watchdog” do órgão da administração, enquanto membro do órgão de fiscalização, requer que o mesmo esteja sujeito a um regime exigente de independência e incompatibilidades, artigos 414º e 414º-A, por remissão do artigo 423º-B. Só com uma selecção rigorosa e cuidada destes membros é que é possível justificar algumas das faculdades (inerentes ao cargo) que lhes são atribuídas, essenciais para um desempenho eficaz das suas funções de inspecção: falamos aqui, por exemplo, do facto de os membros da comissão de auditoria só poderem ser destituídos pela assembleia geral no caso de justa causa (423º-E C.S.C.).

Para além disso, o legislador apetrechou a comissão de auditoria de instrumentos jurídicos que a permitam prosseguir as suas tarefas de inspecção de forma eficiente, tutelando assim os interesses sociais: possui poderes de “whistle-blowing” quer ao conselho de administração, no sentido deste órgão disponibilizar esclarecimentos ou adequar a sua conduta (artigo 420º-A ex vi 423º-G), quer ao colectivo de accionistas para denunciar as irregularidades verificadas, podendo convocar assembleias gerais (artigo 423º-F, alínea h).

Mas tais funções de controlo traduzem-se, ao certo, em que género de competências? O que é que é permitido ao membro deste órgão de fiscalização? Citando Rui de Oliveira Neves[7], “essas funções de controlo compreendem um conjunto de competências que se podem agregar em seis áreas de actuação: a fiscalização da administração; o controlo de legalidade e conformidade estatutária; a supervisão dos documentos de informação financeira, dos documentos de suporte e do respectivo processo de preparação a divulgação pública; o acompanhamento do sistema e dos processos de gestão de riscos e auditoria interna; a contratação dos serviços de auditoria externa; organização do sistema interno de denúncias de irregularidades.”    
       
A execução destes poderes, porém, encontra alguns impedimentos que dificultam este papel de ‘cão de vigia’. Em primeiro lugar, podemos apontar a existência de uma capacidade diminuída de actuação dos membros da comissão de auditoria comparativamente com aquela que é conferida aos membros do conselho fiscal, ou seja, neste âmbito há uma distinção entre o regime legal consagrado para os dois tipos de fiscalização dos dois modelos. As funções atribuídas a cada membro do conselho fiscal encontram-se acompanhadas de medidas eficazes que permitem o desempenho independente e responsável dessas funções. O facto de não vigorar o princípio da colegialidade no seio do conselho fiscal permite que os seus membros possam exercer, individualmente (e, na nossa opinião, de forma mais eficaz), as suas competências de fiscalização, artigo 421º C.S.C., ao contrário do que acontece na comissão de auditoria. Aqui, o administrador independente exerce as suas funções de acordo com o princípio da colegialidade, não há uma situação de paridade entre os dois modelos, o que nos parece uma solução infeliz.

Em segundo lugar, o facto de, segundo o artigo 423º-B nº 4, no caso das sociedades emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado e nas sociedades de grande dimensão, a independência não constituir uma qualificação necessária para todos os membros da comissão de auditoria, mas apenas para um dos administradores dessa, perturba o bom funcionamento da monitorização da gestão da sociedade. Tal facto pode implicar uma maior incidência dos grupos de interesses específicos no órgão de fiscalização, devido ao facto de existir um maior número de administradores que não teve que se sujeitar ao catálogo de factores que afastam a independência. 

Por último, surge um problema que decorre do facto do administrador (independente) da comissão de auditoria ser, ao mesmo tempo, membro do órgão de administração. Apesar de lhes estar interdito o exercício de funções executivas (artigo 423º-B nº2), estes podem, enquanto membros do órgão de administração pelo ser chamados a pronunciar-se relativamente a assuntos de administração, como por exemplo, no que toca à matéria de aprovação de contas anuais. Os membros da comissão de auditoria, incluindo o administrador independente, devem emitir um parecer, enquanto órgão de fiscalização, sobre o relatório das contas anuais, e, de acordo com os artigos 65º nº1 e 406º d), participar na elaboração do mesmo na qualidade de membros do órgão de administração. Isto significa que os membros da comissão de auditoria são responsáveis (pelos próprios actos) pela inobservância dos deveres funcionais a que se encontram sujeitos no desempenho das funções de administração e fiscalização, podendo até admitir-se que daí possa gerar-se uma situação de concurso ou cúmulo de responsabilidade.

Resumindo, a dúplice qualidade do administrador independente pode resultar na sua responsabilização enquanto órgão de administração, pois apesar de não poder realizar actos de gestão, não está afastada a sua capacidade directiva ao nível do conselho de administração da sociedade. Estas considerações apontam no sentido de se assistir, no âmbito do modelo anglo-saxónico de organização societária, a um reforço da accountability dos membros da comissão de auditoria por efeito da sua sujeição a um duplo conjunto de funções e de regime de responsabilidade emergente do seu exercício.


Dezembro de 2013

Por João Casulo





[1]   Este controlo externo pode ser exercido tanto pelos tribunais como pelas autoridades de supervisão e regulação. Em Portugal, no que aos primeiros diz respeito, indicamos como exemplo as acções de responsabilidade propostas contra os membros do conselho de administração; Quanto aos segundos, podemos apontar o caso da C.M.V.M., dotada de poderes de supervisão contínua e fiscalização, artigos 362º e 364º do Código dos valores mobiliários, bem como de poderes sancionatórios, artigos 408º e ssg do mesmo código.
[2]   Sendo levado a cabo, neste caso, pelo órgão de fiscalização da própria empresa, pelos accionistas e pelo próprio órgão de administração.
[3]   Segundo a teoria económica, os custos de agência consistem nos custos decorrentes dos conflitos de interesses entre o principal e o agente, entre capital e gestão.

[4]Rui de Oliveira Neves, “Código das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades”, páginas 150 e seguintes.
[5]Carlos Alves e Víctor Mendes, “As recomendações da CMVM relativas ao corporate governance e a performance das sociedades”, Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, nº 12, Dezembro de 2001;
Muito resumidamente, o estudo relata uma certa insignificância quanto ao impacto da introdução de administradores independentes na estrutura de organização e funcionamento do órgão de administração.
[6]   Daniel J. Schwartz, “The potential effects of nondeferential review on interest group incentives and voter turnout”, New York University Law Review., volume 77, páginas 1845 e seguintes.
[7]   Rui de Oliveira Neves, “Código das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades”, páginas 185 e seguintes.



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