O nascimento da figura
O relevo da inclusão de administradores independentes na estrutura das
sociedades comerciais representa um dos principais temas debatidos em relação
ao governo societário ou, na expressão anglo-saxónica, corporate governance. A origem deste debate remonta ao século XIX e
está relacionada com o princípio da separação entre propriedade e gestão do
capital das empresas, princípio esse que contribuiu para focalizar as
competências decisórias no órgão de administração, deixando o accionista
investidor desprotegido. A sua protecção passaria a residir nos mecanismos
de controlo da actuação da administração, tanto externos[1]como
internos[2], aos quais
caberia inspeccionar, com transparência, a sua actividade.
Todavia,
foi nas décadas finais do século XX que este assunto assumiu um maior relevo. Naquela
altura erguiam-se nos Estados Unidos da América alguns escândalos políticos e
económicos – mencionamos aqui o caso Watergate,
por ser o mais paradigmático – que, aliados ao fraco desempenho económico de
muitas empresas americanas durante as décadas de 70 e 80, denunciavam algumas falhas
clamorosas que se mantinham desde os anos 50: existia uma completa ausência de
controlo de actividade de gestão pelo conselho de administração que deu origem
à descoberta da aprovação de remunerações qualificadas como obscenas e num
falhanço generalizado em detectar e resolver situações de conflitos de interesses
e de manipulação de contas. Era, portanto, urgente rever a estrutura do sistema
de corporate governance americano,
que ainda hoje se caracteriza pela preponderância de sociedades de titularidade
fragmentada, desprovidas de um accionista maioritário e constituídas por um
órgão de administração afastado da gestão corrente da sociedade e uma fraca
fiscalização da mesma.
A
própria eleição dos membros do conselho de administração era condicionada por
grupos de accionistas da esfera de influência do C.E.O. (Chief Executive Officer), o qual detinha um grande poder sobre o
conselho de administração, em virtude da acumulação dessas funções executivas
com as de presidente do conselho de administração. Hoje em dia, naquele
ordenamento, fomenta-se a ideia de que devem existir reuniões entre os
administradores (independentes) sem a presença do C.E.O..
Para
tentar sarar estas feridas que, com o passar dos anos, se foram destapando, o
direito societário norte-americano recorreu a um leque de mecanismo sque visavam
limitar os agency costs[3], sendo um
deles a integração de administradores independentes nos conselhos de
administração, cuja função primordial seria a de controlo e inspecção da
entidade gestora da sociedade, com vista à protecção do accionista investidor.
Perfil e funções do administrador independente
Feito
este breve enquadramento histórico, cumpre agora examinar as funções que um
administrador independente deverá desempenhar, ou seja, qual é que deverá ser o
seu papel/perfil dentro da estrutura societária, através de um recurso ao
direito comparado (com especial incidência ao direito societário
norte-americano). Como já pudemos referenciar, os administradores independentes
devem, fundamentalmente, exercer uma função de supervisão da sociedade. Não
obstante, tal não implica que este não possa desempenhar outras funções tais como
o aconselhamento e planeamento da actividade de gestão, com vista à prossecução
dos interesses da sociedade no seu todo, isto é, sem favorecer determinados membros.
“O
administrador independente deve ser um elemento desligado em relação a áreas de
influência que sejam susceptíveis de conformar o sentido da sua actuação e
decisão no âmbito do órgão de administração”[4]. Essas
áreas de influência, segundo Rui Oliveira e Neves, agregam-se essencialmente em
torno de 3 núcleos: a esfera da sociedade, a esfera dos interesses próprios ou
conexos e a esfera dos sócios ou, pelo menos, de determinados sócios…
Mas como
é que se pode diminuir o efeito nefasto destas áreas de influência na actuação
do administrador, de forma a termos uma “administração” (o mais) isenta
(possível)? Ao longo deste trabalho vamos tentar, aos poucos, responder a esta
questão. Para já, podemos adiantar que o facto de os administradores
independentes não colaborarem na gestão corrente da sociedade reforça a
imparcialidade das suas decisões.
A
inclusão de membros independentes nos conselhos de administração tem sido,
portanto, consagrada internacionalmente, quer através de Recomendações da
Comissão Europeia, quer através de Princípios Internacionais, que têm sido,
passo a passo, adoptados ao direito interno de cada país. Este mecanismo,
contudo, não representa obrigatoriamente uma vantagem para a sociedade em
termos de “performance”, de rendimento, uma vez que não existe uma relação de
causalidade directa entre a participação destes e a melhoria de desempenho
desta[5].
Assim
sendo, a importância do administrador independente, nas palavras de Rui de
Oliveira Neves, “ não se pode perspectivar do ponto de vista ontológico, como
uma realidade indispensável para o bom funcionamento das sociedades, mas do
ponto de vista axiológico, na medida em que o administrador independente
introduza uma valoração ética à condução dos negócios sociais, que permita impedir/corrigir
os abusos cometidos pela gestão”.
O
administrador independente constitui, também, uma alternativa à actuação de
entidades de supervisão e tribunais nalgumas matérias em que podem surgir conflitos
de interesses que necessitem de uma avaliação rigorosa que apenas poderá ser
feita por alguém que tenha uma conexão mais próxima com a sociedade em concreto.
Falamos, a título de exemplo, das regras sobre remuneração e nomeação de
administradores. São questões que exigem um tratamento cuidado e a presença de
entidades imparciais no
interior do órgão de administração, com vista à gestão destes inevitáveis
conflitos de interesses, poderá traduzir-se num factor essencial de prevenção
de abusos de poder por parte da gestão.
Todavia,
há alguns obstáculos que podem, sem dúvida, impossibilitar os administradores
independentes de fiscalizar, com rigor, a gestão social. Referimo-nos aqui às
raras reuniões dos Conselhos de Administração, por exemplo, bem como as
dificuldades que lhes são colocadas quando necessitam de aceder a alguma
informação importante no interior da empresa. Para tudo isto contribui, claro
está, o facto de os administradores independentes não serem, normalmente,
administradores a tempo inteiro, bem como o facto de, nalguns casos, estes
serem propostos pela gestão executiva da sociedade e eleitos pelos seus
accionistas, o que lhes pode retirar uma boa parte da sua afamada isenção.
Basta
pensarmos numa sociedade em que exista um accionista maioritário e,
consequentemente, com uma maior capacidade de influência nas decisões negociais
da sociedade. Havendo um monopólio do capital votante, os administradores
independentes eleitos serão aqueles que fizerem parte da lista de
administradores aprovada pelos accionistas de controlo, não obstante as regras
formais de aferição de independência. Este é um dos inconvenientes de uma
sociedade em que não exista dispersão do capital por vários accionistas, uma vez
que nestes casos é necessário conciliar vários interesses em situação de
paridade.
Em
síntese, cada ordenamento jurídico prevê, à sua maneira, factores de exclusão
de independência que impeçam o administrador de actuar de acordo com os
interesses de todos os stakeholders.
Este deve respeitar os objectivos da sociedade, mantendo a sua vontade
decisória livre de influências de grupos específicos de interesse. Do ponto de
vista funcional, observamos que a figura do administrador independente
encontra-se mais vocacionada para as tarefas de fiscalização, funcionando como
um mecanismo de controlo interno. Há um afastamento relativamente à gestão
corrente da sociedade, embora tal não implique este não possa desempenhar um
papel de aconselhamento e planeamento das actividades do órgão de
administração.
A inserção do administrador independente no nosso
ordenamento jurídico
Após uma
abordagem ao conceito de administrador independente e ao seu papel na estrutura
societária norte-americana (de onde é originário), resta-nos agora saber como é
que esta figura foi introduzida no ordenamento jurídico português. Como é
sabido, existem bastantes diferenças entre estes dois ordenamentos, pelo que a
inclusão desta figura implica, obrigatoriamente, algumas adaptações devido aos
diferentes contextos: trata-se de uma espécie de um “transplante legal”. De facto, distinguindo-se do sistema
norte-americano, a estrutura societária portuguesa caracteriza-se pela existência
comum de um órgão de administração a par de um órgão de fiscalização; as
sociedades cotadas, frequentemente, possuem um accionista maioritário; o órgão
de administração participa na gestão corrente da sociedade.
Em 1999
apareciam, através das Recomendações da Comissão do Mercado de Valores
Mobiliários (C.M.V.M.) sobre o governo das sociedades cotadas, as primeiras
referências à independência de um membro do órgão de administração no
ordenamento jurídico português. De acordo com a recomendação nº 15 estimulava-se
“a inclusão no órgão de administração de um ou mais membros independentes em
relação aos accionistas dominantes, de forma a maximizar a prossecução dos
interesses da sociedade”.
Decorridos
dois anos, eis que surge a primeira revisão às Recomendações da C.M.V.M., em
Dezembro de 2001, concomitante com o Regulamento nº7/2001.Aperfeiçoou-se o
papel atribuído aos membros independentes, cujo conceito passou a ser
determinado por cada sociedade. Assim, de acordo com a Recomendação número 9, pretendia-se
que os administradores independentes do órgão de administração exercessem “uma
influência significativa na tomada de decisões colegiais e contribuir para o
desenvolvimento da estratégia da sociedade, em prol da prossecução dos
interesses da sociedade. Para este efeito, é importante que cada sociedade
determine o conceito de administrador independente que seja ajustado às suas características
concretas e que explicite publicamente o conceito adoptado”.
Em 2003
surgiu uma nova actualização, em consonância com o Regulamento C.M.V.M.
nº11/2003, a qual veio, de forma inovadora, introduzir uma definição, na
Recomendação número 9, do perfil do administrador independente, com vista a atingir
uma padronização de critérios para a identificação de membros independentes do
conselho de administração. Esta definição, que ainda hoje se mantém, trata-se
de uma delimitação negativa do conceito de administrador independente, que será
aquele que não esteja aliado a grupos de interesses específicos na sociedade.
A
seguinte revisão, em Novembro de 2005, apesar de ter mantido a definição de
administrador independente que abordamos no parágrafo anterior, estabeleceu
algumas alterações que incidiram sobretudo sobre o aperfeiçoamento dos sistemas
de controlo interno das sociedades: o leque taxativo de situações que
impossibilitavam a independência dos administradores foi alargado.
Um outro
factor de relevo para o aprimorar da noção de administrador independente no
direito societário nacional encontra-se na Recomendação da Comissão Europeia
nº 2005/162/CE, de 15 de Fevereiro de 2005, relativa ao papel dos
administradores não executivos ou membros de supervisão de sociedades com
valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado.
Seguindo as linhas orientadoras deste documento europeu, os Estados-Membros da
União Europeia foram, então, moldando o seu direito interno.
Observando
o ponto 13 desta recomendação, verificamos que é proposta uma definição de
administrador independente, o qual não deve ter “ quaisquer relações
comerciais, familiares ou outras – com a sociedade, com o accionista que detém
o controlo ou com os órgãos de direcção de qualquer um dos anteriores – que
possam originar um conflito de interesses susceptível de prejudicar a sua
capacidade de apreciação”.
A fixação
dos critérios para a determinação da independência, segundo este ponto, é da
competência do próprio conselho de administração ou de supervisão, o qual pode
determinar que “ apesar de um determinado administrador cumprir todos os
critérios adoptados a nível nacional para a apreciação da independência dos
administradores, não pode ser considerado independente devido a circunstâncias
específicas da pessoa ou da sociedade, sendo o inverso igualmente aplicável”.
Arrematando,
o órgão de administração deve incluir, então, suficientes membros
independentes, com capacidades de supervisão relativamente às decisões da
gestão, preservando os interesses dos stakeholders.
As
Recomendações da C.M.V.M. mencionadas, bem como a Recomendação da Comissão
Europeia, tiveram um papel preponderante na reforma do Código das Sociedades
Comerciais, efectuada pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, que veio introduzir
o conceito de membro independente no domínio da fiscalização interna das
sociedades comerciais, patente no nº5 do artigo 414º, e alargar o leque de
incompatibilidades presente no artigo 414º-A, relativamente aos membros do
conselho fiscal. A independência do administrador prende-se, então, com a
autonomia da sua capacidade de decisão, livre de qualquer influência económica,
psicológica ou pessoal.
Este
documento trouxe, de certa forma, uma alteração aos modelos de governo das
sociedades anónimas, ou seja, ao sistema de regras atinente ao controlo e
direcção destas sociedades, que iremos explorar mais à frente neste artigo. No
seguimento deste Decreto-Lei, surge o “Código de Governo das Sociedades da
C.M.V.M.”, em Setembro de 2007, numa tentativa de arrumação destas
recomendações, incentivando a inclusão de membros não executivos no conselho de
administração, os quais devem supervisionar a actividade dos membros
executivos. Este conjunto de administradores não executivos deve abranger um
determinado número de administradores independentes, tendo em conta a dimensão
da sociedade, não podendo, em caso algum, ser inferior a um quarto do número
total de administradores.
Este
Código de Governo das Sociedades foi alterado em 2010 e, mais recentemente,
revogado pelo Regulamento da C.M.V.M. 4/2013, que entrará em vigor no
dia 1 de Janeiro de 2014. Manteve-se a ideia central de que devem existir
administradores não executivos – e independentes, devendo o seu número ser
adequado modelo de governo adoptado - no conselho de administração que avaliem
a actividade dos restantes membros do órgão de administração. Acrescentamos
ainda a existência de uma lista taxativa de causas susceptíveis de afectar a isenção
de análise dos membros do Conselho de administração – que não os membros da comissão
de auditoria nem do conselho geral de supervisão, uma vez que a independência
desses se afere através da legislação vigente -, os quais não devem estar
associados a qualquer grupo de interesses específicos na sociedade.
Em suma,
o administrador independente apresenta-se, hoje em dia, como um elemento
desligado de grupo de interesses específicos na sociedade, que não se inclui em
nenhuma das causas que excluem a independência, não se encontrando, portanto,
em qualquer circunstância susceptível de afectar a sua imparcialidade nas
tomadas de decisão.
O seu
papel consiste em informar-se sobre a gestão societária, fiscalizando-a, tornando-se
num agente de controlo societário interno, tendo sempre em conta os interesses
dos diversos stakeholders. Trata-se
de um verdadeiro Tertium genus, isto
é, um administrador fiscalizador com uma postura activa no plano da prevenção e
gestão de conflitos de interesses.
A figura do administrador independente e os modelos de fiscalização
do artigo 278º do C.S.C.
Depois
desta exposição, por ordem cronológica, da evolução legislativa concernente ao
desenvolvimento da figura do administrador independente no ordenamento jurídico
português, passaremos agora à análise de alguns artigos importantes do Código
das Sociedades Comerciais. Com o Decreto-Lei nº 76-A/2006 surgiu uma alteração
do quadro normativo dos modelos de governo das sociedades anónimas. Segundo o
número 1 do artigo 278º C.S.C., a fiscalização e a administração destas
sociedades podem adoptar, para a sua estrutura, um destes três modelos:
conselho de administração e conselho fiscal (modelo latino); conselho de
administração (que inclui uma comissão de auditoria) e um revisor oficial de
contas (modelo anglo-saxónico); conselho de administração executivo, conselho
geral e de supervisão e revisor oficial de contas. Consoante o modelo adaptado,
poderemos ter certas algumas diferenças nos poderes e funções atribuídos ao
administrador independente.
A cláusula geral de independência – o artigo 414º nº 5
No que
concerne ao primeiro modelo, o nº4 do artigo 414º (referente à composição
qualitativa do conselho fiscal) diz-nos que no caso das sociedades emitentes de
valores mobiliários admitidos à negociação em mercado regulamentado o conselho
fiscal deve ter pelo menos um membro que seja independente. No nº5 do mesmo
artigo podemos encontrar uma definição sobre independência, fruto das
influências das recomendações da C.M.V.M. e da Recomendação da Comissão
europeia. Alcançada através da utilização de critérios negativos, esta
definição confere a qualidade de independência a um membro de um órgão de
fiscalização (bem como a um administrador independente, enquanto membro da
comissão de auditoria, artigo 414º nº5 ex vi 423º-B), através da verificação
cumulativa de dois preceitos: o administrador não pode estar associado a
determinados grupos com entidades interesses específicos na sociedade; é
imperativa a inexistência de circunstâncias susceptíveis de afectar a sua isenção
de análise ou decisão.
Estamos
perante uma cláusula geral de independência que, na esteira dos
documentos europeus e nacionais que a influenciaram, vem estabelecer uma
relação entre a independência do administrador e a sujeição do mesmo a certas
entidades que pretendem atingir um certo fim não compartilhado com outros
grupos de interesse, influenciando a sua capacidade de análise.
Juridificou-se
a expressão “grupos de interesses” que, à semelhança do domínio
político, consiste em “formas associativas com menor ou maior estruturação, mas
em que o elemento aglutinador dos respectivos membros (ou dos seus
representantes) consiste em partilha de interesses ou objectivos comuns que
pretendem prosseguir através do exercício, por diversos meios, de influência
sobre os decisores políticos”[6].Por
incrível que pareça, estes grupos de interesses são compostos maioritariamente
por accionistas e administradores da própria sociedade, os quais tentam
sobrepor os seus interesses individuais aos dos restantes stakeholders, desconsiderando, no caso dos administradores, o
princípio da lealdade presente no artigo 64º C.S.C.
Esta
cláusula geral de independência pode ser concretizada através da verificação
dos exemplos presentes nas alíneas a) e b) do mesmo número: quando o
administrador seja titular ou actue em nome de titulares de participação
qualificada igual ou superior a 2% do capital social da sociedade, ou quando se
verifique a sua reeleição por mais de dois mandatos, respectivamente, este
deixa de ser acreditado como independente para efeito da composição dos órgãos
de controlo interno.
Apesar
de útil, este critério geral de independência é, na nossa opinião, demasiado
vago, o que dificulta a tarefa de avaliar, no caso concreto, se um
administrador é ou não verdadeiramente independente e, consequentemente, cria
um obstáculo à finalidade da norma. Por outro lado, a expressão “grupo de
interesses” necessita, também, de ser densificada, quanto mais não seja,
doutrinalmente. Esta crítica, se nos é permitido fazê-la, estende-se não só a
esta cláusula, mas ao regime criado em 2006 pela reforma do C.S.C. relativo à
independência dos administradores, que pecou pela falta de aprofundamento e de
imprecisão de alguns conceitos.
O papel do administrador independente no modelo anglo-saxónico
– artigo 278º nº1 b)
O modelo
anglo-saxónico encontra-se plasmado na alínea b) do nº1 do artigo 278º do
C.S.C.. Este modelo propõe, então, a existência de um conselho de administração
que inclua uma comissão de auditoria e um reviso oficial de contas.
Segundo o artigo 423º-B nº4, a comissão de auditoria das sociedades cotadas
deve conter pelo menos um membro que, nos termos do nº5 do artigo 414º, seja
considerado independente. Mas no que é que consiste a comissão de auditoria?
Qual é a sua função?
As
competências deste órgão encontram-se descritas no artigo 423º-F, sendo que
aquela que terá mais relevância para o nosso tema será a função de fiscalizar a
administração da sociedade. Diversamente do modelo latino, neste género de
estrutura societária temos uma fiscalização que é feita por “dentro”, e não por
um órgão exterior. Todavia, as regras correspondentes à fiscalização nos dois
tipos de modelo são as mesmas, o processo é o mesmo.
A comissão de auditoria consiste, então, no
órgão social – cujas funções não são delegadas do conselho de administração,
mas sim próprias - que fiscaliza a actividade da administração da sociedade.
Ora surge-nos aqui uma questão: sabendo que, de acordo com o artigo 423º-B nº2,
este órgão tem que integrar um número mínimo de três membros da administração,
– sendo pelo menos um deles independente, nº4 do mesmo artigo, como já foi
referido anteriormente – deduz-se que a comissão é composta por membros que
desempenham, simultaneamente, funções de administração. Admitindo então que
teremos três administradores (sendo pelo menos um deles independente) a
desempenhar dois tipos de funções, não poderá haver aqui algum conflito entre
os dois papéis que desempenham? Os poderes de fiscalização que o administrador independente
terá, como membro da comissão de auditoria, não poderão fazer dele um “watchdog” interno no seio do órgão de
administração, utilizando a terminologia de Rui de Oliveira Neves?
Para
tentar responder a esta dúvida, vamos analisar algumas das funções e deveres do
administrador independente enquanto membro do conselho de administração. Como a
qualquer outro administrador, compete-lhe:
- dirigir a sociedade (artigos 405º e 406º do C.S.C.),
respeitando os deveres de cuidado e diligência de um gestor criterioso,
atendendo aos interesses da sociedade , artigo 64º C.S.C.;
- monitorizar
a actuação dos administradores-delegados ou da comissão executiva (artigo 407º
nº8);
- prestar contas aos accionistas ( artigo 65º
nº2 );
- prestar
caução pela responsabilidade quanto à sua actuação como administrador, salvo
dispensa prevista no nº 3 do artigo 396º;
Tendo em
conta estas competências, não nos parece que o administrador independente
tenha, enquanto membro do órgão de
administração, algum poder especial de controlo interno que advenha da sua
posição na comissão de auditoria e que o torne numa espécie de cão de vigia
interno. Aliás, mesmo no âmbito da responsabilidade civil, verifica-se esta
paridade entre os elementos do órgão de administração (quer sejam membros ou
não da comissão de auditoria), como é visível através de uma leitura dos
artigos 72º, 78º e 79º C.S.C. Segundo estes artigos, o administrador
independente poderá ser demandado, pela sua actuação enquanto administrador, pelos danos causados à sociedade, aos
accionistas ou aos credores sociais, como qualquer outro administrador. Para
além disso, acrescentamos o facto de cada administrador ser solidariamente
responsável pelos actos praticados pelos seus consortes, segundo o artigo 73º,
seguindo o princípio da colegialidade.
Não
obstante, a conclusão retirada do parágrafo anterior não implica que o administrador
independente, enquanto membro da
comissão de auditoria, não disponha de faculdades de inspecção e
supervisionamento. Aqui sim, possui poderes especiais de controlo interno,
seguindo a linha de pensamento trilhada pelo Decreto-Lei nº 76-A/2006, que veio
atribuir funções de fiscalização ao administrador e que implicou o seu
afastamento das actividades de gestão corrente da sociedade, artigo 423º-B nº3
do C.S.C., como veremos no tópico seguinte.
Mecanismos de controlo interno: os poderes do
administrador independente enquanto membro da comissão de auditoria
Para
finalizar o presente estudo vamos tentar perceber, afinal, quais são os poderes
de um administrador independente pertencente à comissão de auditoria. Este
órgão de fiscalização, como já pudemos referir, dedica-se, entre outras coisas,
à monitorização da administração da sociedade, artigo 423º-F nº1 a) o C.S.C.. Seguindo
as directrizes da reforma de 2006, que criou este novo modelo de estrutura
societária que permite uma fiscalização feita “por dentro”, os administradores
que integram a comissão de auditoria passam a desempenhar funções de controlo
interno da actuação dos membros do órgão de administração, representando assim
um atestado de confiança aos investidores e ao mercado em relação à sociedade. De
facto, o princípio de solidariedade no âmbito da responsabilidade civil dos
membros do órgão de fiscalização por actos dos membros do órgão de
administração, quando ocorram danos que poderiam ter sido evitados se os
fiscalizadores tivessem actuado com diligência, implementado pela reforma de
2006 no artigo 81º nº2 C.S.C., serve como um exemplo de um reforço na confiança
do accionista investidor.
Este enquadramento dogmático da figura do administrador independente como um “watchdog” do órgão da administração, enquanto membro do órgão de fiscalização, requer que o mesmo esteja sujeito a um regime exigente de independência e incompatibilidades, artigos 414º e 414º-A, por remissão do artigo 423º-B. Só com uma selecção rigorosa e cuidada destes membros é que é possível justificar algumas das faculdades (inerentes ao cargo) que lhes são atribuídas, essenciais para um desempenho eficaz das suas funções de inspecção: falamos aqui, por exemplo, do facto de os membros da comissão de auditoria só poderem ser destituídos pela assembleia geral no caso de justa causa (423º-E C.S.C.).
Para
além disso, o legislador apetrechou a comissão de auditoria de instrumentos
jurídicos que a permitam prosseguir as suas tarefas de inspecção de forma eficiente,
tutelando assim os interesses sociais: possui poderes de “whistle-blowing” quer ao conselho de administração, no sentido
deste órgão disponibilizar esclarecimentos ou adequar a sua conduta (artigo
420º-A ex vi 423º-G), quer ao colectivo de accionistas para denunciar as irregularidades
verificadas, podendo convocar assembleias gerais (artigo 423º-F, alínea h).
Mas tais
funções de controlo traduzem-se, ao certo, em que género de
competências? O que é que é permitido ao membro deste órgão de fiscalização?
Citando Rui de Oliveira Neves[7], “essas
funções de controlo compreendem um conjunto de competências que se podem
agregar em seis áreas de actuação: a fiscalização da administração; o controlo
de legalidade e conformidade estatutária; a supervisão dos documentos de
informação financeira, dos documentos de suporte e do respectivo processo de
preparação a divulgação pública; o acompanhamento do sistema e dos processos de
gestão de riscos e auditoria interna; a contratação dos serviços de auditoria
externa; organização do sistema interno de denúncias de irregularidades.”
A
execução destes poderes, porém, encontra alguns impedimentos que dificultam
este papel de ‘cão de vigia’. Em primeiro lugar, podemos apontar a existência
de uma capacidade diminuída de actuação dos membros da comissão de auditoria
comparativamente com aquela que é conferida aos membros do conselho fiscal, ou
seja, neste âmbito há uma distinção entre o regime legal consagrado para os
dois tipos de fiscalização dos dois modelos. As funções atribuídas a cada
membro do conselho fiscal encontram-se acompanhadas de medidas eficazes que
permitem o desempenho independente e responsável dessas funções. O facto de não
vigorar o princípio da colegialidade no seio do conselho fiscal permite que os
seus membros possam exercer, individualmente (e, na nossa opinião, de forma
mais eficaz), as suas competências de fiscalização, artigo 421º C.S.C., ao
contrário do que acontece na comissão de auditoria. Aqui, o administrador
independente exerce as suas funções de acordo com o princípio da colegialidade,
não há uma situação de paridade entre os dois modelos, o que nos parece uma
solução infeliz.
Em segundo
lugar, o facto de, segundo o artigo 423º-B nº 4, no caso das sociedades
emitentes de valores mobiliários admitidos à negociação em mercado
regulamentado e nas sociedades de grande dimensão, a independência não
constituir uma qualificação necessária para todos os membros da comissão de
auditoria, mas apenas para um dos administradores dessa, perturba o bom
funcionamento da monitorização da gestão da sociedade. Tal facto pode implicar
uma maior incidência dos grupos de interesses específicos no órgão de
fiscalização, devido ao facto de existir um maior número de administradores que
não teve que se sujeitar ao catálogo de factores que afastam a
independência.
Por último,
surge um problema que decorre do facto do administrador (independente) da
comissão de auditoria ser, ao mesmo tempo, membro do órgão de administração. Apesar
de lhes estar interdito o exercício de funções executivas (artigo 423º-B nº2), estes
podem, enquanto membros do órgão de administração pelo ser chamados a
pronunciar-se relativamente a assuntos de administração, como por exemplo, no
que toca à matéria de aprovação de contas anuais. Os membros da comissão de
auditoria, incluindo o administrador independente, devem emitir um parecer,
enquanto órgão de fiscalização, sobre o relatório das contas anuais, e, de
acordo com os artigos 65º nº1 e 406º d), participar na elaboração do mesmo na
qualidade de membros do órgão de administração. Isto significa que os membros
da comissão de auditoria são responsáveis (pelos próprios actos) pela
inobservância dos deveres funcionais a que se encontram sujeitos no desempenho
das funções de administração e fiscalização, podendo até admitir-se que daí
possa gerar-se uma situação de concurso ou cúmulo de responsabilidade.
Resumindo,
a dúplice qualidade do administrador independente pode resultar na sua
responsabilização enquanto órgão de administração, pois apesar de não poder
realizar actos de gestão, não está afastada a sua capacidade directiva ao nível
do conselho de administração da sociedade. Estas considerações apontam no
sentido de se assistir, no âmbito do modelo anglo-saxónico de organização
societária, a um reforço da accountability dos membros da comissão de auditoria
por efeito da sua sujeição a um duplo conjunto de funções e de regime de
responsabilidade emergente do seu exercício.
Dezembro de 2013
Por João Casulo
[1] Este controlo externo pode ser exercido
tanto pelos tribunais como pelas autoridades de supervisão e regulação. Em
Portugal, no que aos primeiros diz respeito, indicamos como exemplo as acções
de responsabilidade propostas contra os membros do conselho de administração;
Quanto aos segundos, podemos apontar o caso da C.M.V.M., dotada de poderes de
supervisão contínua e fiscalização, artigos 362º e 364º do Código dos valores
mobiliários, bem como de poderes sancionatórios, artigos 408º e ssg do mesmo
código.
[2] Sendo levado a cabo, neste caso, pelo órgão
de fiscalização da própria empresa, pelos accionistas e pelo próprio órgão de
administração.
[3] Segundo a teoria económica, os custos de
agência consistem nos custos decorrentes dos conflitos de interesses entre o
principal e o agente, entre capital e gestão.
[4]Rui de Oliveira Neves, “Código
das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades”, páginas 150 e seguintes.
[5]Carlos Alves e Víctor Mendes,
“As recomendações da CMVM relativas ao corporate
governance e a performance das sociedades”, Cadernos do Mercado de Valores
Mobiliários, nº 12, Dezembro de 2001;
Muito resumidamente, o estudo
relata uma certa insignificância quanto ao impacto da introdução de
administradores independentes na estrutura de organização e funcionamento do
órgão de administração.
[6] Daniel J. Schwartz, “The potential effects of nondeferential
review on interest group incentives and voter turnout”, New York University
Law Review., volume 77, páginas 1845 e seguintes.
[7] Rui
de Oliveira Neves, “Código das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades”,
páginas 185 e seguintes.
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