O estigma da seropositividade – o mandato
antidiscriminatório
Para uma
melhor compreensão daquilo que iremos expor ao longo deste artigo, convém
definir e distinguir os conceitos de SIDA, VIH e seropositividade. O vírus da
imunodeficiência humana (VIH) trata-se de um vírus que enfraquece o sistema
humanitário do ser humano, e distingue-se da síndrome da imunodeficiência
adquirida (SIDA) na medida em que a última resulta da infecção com VIH em fase
adiantada, que se caracteriza pelo aparecimento de infecções ou cancros
oportunistas relacionados com o VIH. Os seropositivos diferem dos doentes com
SIDA porque apenas estão contaminados com o vírus, o qual não se manifesta.
A
importância/impacto deste tema no ordenamento jurídico-laboral reflecte-se no
simples facto de 90% dos portadores de VIH/SIDA se encontrarem inseridos na
faixa etária economicamente produtiva. O elevado número de
trabalhadores/candidatos a emprego seropositivos impõe ao Estado e ao próprio
empregador a obrigação de proteger a sua esfera jurídica. Todavia, tal
protecção não poderá descurar o resguardo simultâneo do bem-estar e da saúde
dos restantes trabalhadores e de terceiros (clientes, por exemplo) e,
consequentemente, evitar que estes sejam contaminados por trabalhadores
portadores do vírus. É necessário tentar harmonizar os interesses de ambos,
tentando sempre combater o estigma aliado à seropositividade, resultante do
facto de não ter uma terapia eficaz.
Assim
sendo, importa saber como é que o vírus se transmite para podermos elaborar
medidas de prevenção. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o vírus
transmite-se por via sexual, por contacto com o sangue e outros líquidos
orgânicos e por via fetal. De acordo com estes dados, parece-nos impossível
eliminar a possibilidade de existir risco de contágio em qualquer profissão. De
facto, no desempenho de uma qualquer actividade profissional parece haver uma
hipótese de infecção por VIH, o que não implica que a ordem jurídica deva
excluir os seropositivos da esfera laboral. Tomemos como exemplo um individuo
que faz trabalhos de instalação e reparação de canalizações que apresente uma
escoriação na mão, devido ao manuseamento de um instrumento de trabalho, o qual
é, em seguida, utilizado por outro trabalhador que também apresente um corte na
mesma mão.
Neste
âmbito, o artigo 25º nº1 do C.T. enuncia um mandato antidiscriminatório,
segundo o qual o trabalhador seropositivo assintomático, ou seja, que se
encontra infectado pelo vírus mas não está incapacitado para desempenhar as
suas funções, deve ser tratado como os demais trabalhadores, e o doente com
SIDA deve ser tratado como outro trabalhador doente[1],
sendo as suas faltas ao trabalho justificadas ao abrigo da alínea d) do nº2 do
artigo 249º C.T., suspendendo-se o contrato em caso de impedimento temporário
que se prolongue por mais de um mês, segundo o nº1 do artigo 296º C.T..
Impede-se, assim, através do princípio da não discriminação, que exista uma
discriminação baseada no estado de saúde do trabalhador, neutralizando a
diferença e evidenciando que, não obstante essa diferença, todos têm igual
dignidade.
Todavia,
este princípio só terá aplicação para o conjunto de profissões em que não há um
elevado risco de contágio pelas formas já indicadas. Mas como é que podemos,
então determinar quais as profissões que comportam um elevado risco de
contágio? Na esteira daquilo que tem vindo a ser proposto pela OMS, tais
profissões serão aquelas em que não existe uma mera possibilidade de contágio,
mas sim um risco qualificado de contágio devido ao contacto recorrente com
fluidos orgânicos no exercício da sua actividade, como é o caso dos médicos e
outros profissionais de saúde. Não se incluirá neste leque de profissões o
exemplo supramencionado, sobre o individuo que faz trabalhos de reparação de
canalizações, por exemplo. O contacto com fluidos orgânicos não se inscreve no
quadro normal da actividade, pelo que as regras de segurança, higiene e saúde
no trabalho consideram-se suficientes para prevenir um remoto contágio.
Parece-nos
estranho, no entanto, que não exista uma lista de profissões, elaborada por uma
comissão de médicos especialistas na matéria, relativamente às quais se poderia
aferir que existe um elevado risco de contágio, estabelecendo-se assim limites
concretos.
Direitos de personalidade do trabalhador à luz do Código
do Trabalho
Feito
este breve enquadramento, cumpre-nos agora examinar os direitos de
personalidade que o ordenamento jurídico-laboral confere ao trabalhador. Para
tal, convém analisar alguns pormenores da relação laboral.
A
relação laboral analisa-se numa relação de poder, na qual o trabalhador surge
como sujeito juridicamente subordinado à direcção e autoridade do empregador, de
acordo com artigos 97º (poder directivo), 99º nº1 (poder regulamentar) e 98º
(poder disciplinar) do C.T.. Com efeito, compete ao empregador definir os
termos em que o trabalho deve ser prestado, estabelecendo um horário e local de
trabalho, controlando o modo de prestação, emitindo ordens e impondo assim
disciplina na empresa. Mas como é que se
gere o conflito entre as exigências organizativas e disciplinares do
empregador, por um lado, e os direitos do trabalhador, por outro, mais
propriamente os seus direitos inespecíficos[2]?
A partir
do artigo 11º do C.T. é possível definir o trabalhador como “a pessoa que se
obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras
pessoas sob autoridade e direcção destas.” Ao aceitar submeter-se à autoridade
do empregador, o trabalhador permite automaticamente uma auto-limitação dos
seus direitos de personalidade, a qual, embora revogável (artigo 81º nº2 C.C.)
subsiste enquanto dura o contrato de trabalho.
Existe,
portanto uma compressão dos direitos do trabalhador enquanto individuo decorrente
da subordinação jurídica que o contrato de trabalho/relação laboral pressupõe. Todavia
o trabalhador não perde o direito à individualidade, isto é, de que não deixa
de ser pessoa só por estar integrado na empresa[3].
O que temos aqui é um problema de conflitos de direitos a reclamar uma
concordância prática entre eles, de acordo com o princípio da proporcionalidade
na sua tríplice dimensão (adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu), para encontrar um ponto
de equilíbrio.
Estes
direitos de personalidade do trabalhador foram reconhecidos no âmbito laboral
pelo Código do Trabalho nos artigos 14º a 22º. A instituição de um dever de
respeito pelos seus direitos da personalidade, hoje em dia, apresenta-se como
necessária para que não haja uma restrição excessiva dos direitos. É inegável o
facto de a relação laboral consistir numa relação assimétrica, configurando os
trabalhadores a parte mais fraca, desde logo por o rendimento do trabalho
constituir, também em regra, a sua única fonte de subsistência. Este factor
condiciona psicologicamente o (candidato a) trabalhador na revindicação dos
seus direitos, necessitando portanto de uma protecção especial[4].
O direito à reserva da intimidade da vida privada – o
artigo 16º
Depois
desta abordagem geral dos direitos de personalidade do trabalhador, analisemos agora
alguns artigos em específico, neste caso, o artigo 16º, que consagra o direito
à reserva da intimidade da vida privada.
Este
direito, constitucionalmente protegido no artigo 26º nº1 C.R.P., impõe tanto ao
empregador como ao trabalhador um dever de respeito pelos direitos de
personalidade de ambos, guardando reserva quanto à intimidade da vida privada.
Este dever concretiza-se no nº2 do artigo 16º C.T. através da proibição, quer
do acesso, quer da divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal
das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual,
com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas. Por imposição
quer do n.º 2 do art. 18.º da CRP quer do art. 335.º do Código Civil, a reserva
da intimidade da vida privada deve ser a regra, não a excepção, apenas se
justificando a sua limitação quando outros direitos constitucionalmente
protegidos estejam em conflito.
Recorrendo
à teoria das três esferas podemos distinguir, no direito à intimidade da
vida privada, entre: uma esfera íntima, abrangendo a vida familiar,
saúde, comportamentos sexuais, cuja protecção é, em princípio, absoluta; uma
esfera privada, que abarca hábitos de vida e informações que o indivíduo
partilha com um número restrito de pessoas (a sua família e amigos) e cujo
conhecimento tem interesse em guardar para si, cuja protecção é relativa,
podendo ceder em caso de conflito com direitos e interesses superior; uma
esfera pública, relativa às situações que são objecto de conhecimento
público e que, por isso, podem ser livremente divulgadas.
Esta
teoria é aplicável às relações laborais, pelo que através dela é-nos possível
afirmar que existe uma protecção absoluta da esfera íntima, protecção essa que
se estende à esfera privada, salvo quando exista um direito e interesse
superior, que seja necessário salvaguardar. O estado de saúde do trabalhador
encontra-se então especialmente salvaguardado, o que significa que o mesmo não
poderá ser discriminado por ser seropositivo, a não ser que tal condição
perturbe a sua prestação de trabalho, ou seja, a não ser que tal condição tenha
uma ligação directa com as suas funções. Mas, neste caso, o que influi não é o
facto de ser seropositivo, mas sim de ter uma desvantagem que pode afectar o
seu desempenho, tal como uma deficiência física, por exemplo. Daqui deduz-se que
“o círculo da reserva da intimidade da vida privada não é uniforme, devendo ser definido
consoante a natureza do caso, mormente em
função da actividade laboral do trabalhador”[5].
Este
direito pode, todavia, comportar algumas excepções. Os artigos 17º e 19º, que
iremos abordar de seguida, são exemplo disso, e indicam-nos as situações em que
o empregador pode questionar o trabalhador sobre o seu estado de saúde,
invadindo assim a sua esfera íntima. Por configurarem uma coarctação do direito
à reserva da intimidade da vida privada, estes preceitos devem ser interpretados
em consonância com o artigo 18º da C.R.P., relativo à restrição de direitos
fundamentais. Observando este artigo da lei fundamental, verificamos que o
acesso a estes dados do (candidato a) trabalhador só é permitido quando se
revelar adequado à prossecução de outros valores com dignidade constitucional, devendo
tal acesso ser indispensável à protecção dos mesmos, não podendo o prejuízo decorrente
da restrição ser superior à vantagem obtida.
Nos pontos seguintes iremos ver em que
situações é admissível ao empregador questionar ao (candidato a) trabalhador
sobre a possibilidade de se encontrar infectado pelo VIH, através de questões
ou de exames médicos. Nestas situações poderá ocorrer a exclusão do candidato
ou o afastamento do trabalhador, quer através da mudança de funções, da
suspensão do vínculo, ou até mesmo através da cessação do contrato de trabalho.
Fora destas situações, caso o empregador eventualmente venha a ter conhecimento
da seropositividade do trabalhador, deverá guardar silêncio sobre esse facto,
respeitando o disposto neste preceito legal.
A protecção de dados pessoais – o artigo 17º conjugado
com a Lei nº 67/98
A tutela
da privacidade do trabalhador abarca também a protecção de dados pessoais. No
que aos mesmos diz respeito, torna-se necessário conjugar o Código do Trabalho
com a Lei nº 67/98, de 26 de Outubro. O tratamento de dados pessoais, ou seja,
a recolha ou o registo de “qualquer informação, de qualquer natureza e
independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma
pessoa singular identificada ou identificável “, artigo 3º alínea a) da Lei
nº67/98, está sujeito à Lei da Protecção de Dados Pessoais, como resulta do
artigo 4º da mesma, bem como do artigo 17º nº4 do Código do Trabalho.
O artigo
7º desta lei reporta-se ao tratamento de dados sensíveis, estabelecendo a
proibição do tratamento de “dados pessoais referentes a convicções filosóficas
ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e
origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde
e à vida sexual, incluindo os dados genéticos”. Verificamos, assim, a
existência de uma proibição relativa ao tratamento dos dados relativos à saúde.
No entanto, esta mesma lei prevê algumas excepções, nomeadamente no nº2 do
artigo 7º, no caso de existir uma disposição legal que o preveja ou caso exista
uma autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, o que, porém, tem
de basear-se em motivos de interesse público importantes ou no consentimento
expresso do titular dos dados. Estas excepções vêm com garantias de não
discriminação e com medidas de segurança especiais, artigo 15º da mesma lei.
Ora, parece-nos que o art. 17.º do Código do
Trabalho cabe na primeira das excepções enunciadas, ou seja, trata-se de uma
disposição legal que levanta a proibição estabelecida no artigo 7º da Lei nº
67/98 relativamente ao tratamento de dados sensíveis, uma vez que permite que
sejam exigidas ao candidato a emprego ou ao trabalhador informações relativas à
sua vida privada quando tais aspectos sejam necessários e relevantes para avaliar da aptidão no que respeita à
execução do contrato de trabalho, bem como informações relativas à saúde ou ao
estado de gravidez, quando a natureza
da actividade profissional assim o justifique.
Assim, a
entidade empregadora poderia exigir a candidato a emprego ou a trabalhador que
preste informações relativas à sua saúde caso se verifique alguma das situações
mencionadas supra, solicitando à Comissão Nacional de Protecção de dados a
devida autorização, segundo o artigo 28º desta lei. A entidade empregadora
encontra-se também obrigada a entregar a devida fundamentação por
escrito, artigo 17 nº1 C.T., ao trabalhador ou candidato a emprego, respeitando
o direito à informação enunciado no artigo 10º nº1 da lei nº 67/98, e a
proceder ao tratamento dos dados com respeito e licitamente, artigo 5º da mesma
lei. De salientar que, segundo o nº2 do artigo 17º do C.T., como estamos a
tratar de informações relativas à saúde, apenas o médico (de trabalho ou
assistente) pode ter conhecimento das mesmas, enviando posteriormente uma
comunicação à entidade empregadora sobre a (in)aptidão do trabalhador para o
desempenho das suas funções. Deve, isso sim, caso não haja nenhuma
desconformidade jurídica, comunicar obrigatoriamente qualquer estádio de
infecção de VIH detectado ao Centro de Vigilância epidemiológica das doenças
transmissíveis, segundo a portaria 258/2005.
Direito à mentira
Tendo em
conta o que acabamos de escrever, afigura-se-nos plausível tentar responder à
seguinte questão: como é que poderemos avaliar a conduta de um candidato a
emprego ou trabalhador que preste falsas declarações sobre dados pessoais? Se
observarmos o artigo 106º nº2 do C.T., verificamos que o trabalhador possui o
dever de “informar o empregador sobre aspectos relevantes para a prestação da
actividade laboral”. Não obstante, a doutrina tem vindo a entender que a
resposta a esta questão varia consoante as perguntas tenha sido colocadas, ou
não, de forma lícita. Assim, caso não se verificasse alguma das excepções
presentes no artigo 17º nº1, estando, portanto, o empregador a questionar
ilegitimamente, o (candidato a) trabalhador poderia reagir prestando falsas
declarações, uma vez que lhe é reconhecido um direito à mentira. Aplicando ao
tema, falta um requisito substancial de admissibilidade do conhecimento do
estado de seropositividade, pelo que o trabalhador poderia mentir, tratando-se
de um caso de desobediência lícita, alínea a) do nº2 do artigo 351º C.T..Caso a
pergunta fosse legítima, a mentira poderia determinar a invalidade do contrato
ou justificar o despedimento.
Testes e exames médicos – o artigo 19º
O artigo
19º do C.T., por seu lado, regula as situações em que será possível (ou não)
exigir ao (candidato a) trabalhador testes e exames médicos. Como estamos a
tratar de dados de saúde, referentes à esfera íntima, do trabalhador, é natural
que o legislador tenha colocado fortes restrições no que toca ao acesso aos
mesmos, tal como no que toca à protecção de dados pessoais, como pudemos
verificar. Exige-se uma ligação directa entre a realização de testes e exames
médicos exigida aos trabalhadores e as funções que estes desempenham ou irão
desempenhar, consoante de um trabalhador efectivo ou de um candidato a emprego.
A regra
consiste, então, na proibição desses exames, protegendo a intimidade do
trabalhador. Contudo, este preceito legal prevê algumas excepções em que se
verifica a possibilidade de sujeição do (candidato a) trabalhador a testes ou
exames médicos[6]. Em
primeiro lugar, temos as situações previstas em legislação relativa a segurança
e saúde no trabalho, situações essas em que é levantada a cancela, dando-se
permissão à entidade patronal para exigir os tais exames[7].
Para além destes casos, tal permissão será também dada quando tais exames
tenham por finalidade a protecção e segurança do trabalhador ou de terceiros,
ou quando a necessidade de realização dos testes ou exames deve resultar de particulares exigências inerentes à actividade.
Referenciamos
aqui o Acórdão do Tribunal Constitucional 368/02 , segundo o qual “no âmbito
das relações laborais, tem-se por certo que o direito à protecção da saúde, a
todos reconhecido no artigo 64º nº1 C.R.P., bem como o dever consignado no
mesmo preceito constitucional, não podem deixar de credenciar suficientemente a
obrigação para o trabalhador de se sujeitar, desde logo, aos exames médicos
necessários e adequados para (…) evitar situações de contágio para os restantes
trabalhadores ou para terceiros, propiciadas pelo exercício da actividade
profissional do trabalhador” – serão raras as profissões que poderão justificar
um teste de VIH, uma vez que, segundo o Conselho Nacional de Ética para as
Ciências da Vida (CNECV), o teste da Sida deve ser exigível às seguintes
pessoas: “ Profissionais de saúde, que entrem em contacto directo com órgãos ou
líquidos biológicos humanos”. Há um campo restrito de actividades
profissionais, como podemos ver, campo esse delimitado por balizas
estabelecidas pelo princípio da proporcionalidade, que nos indica em que casos será
necessário, adequado e não excessivo sujeitar um trabalhador a exames ou testes
de saúde.
O número 1 do artigo 19º C.T. estabelece também a
obrigatoriedade de ser fornecida ao (candidato a) trabalhador a devida
fundamentação, por escrito, quanto à necessidade de realização dos testes/exames, constituindo
contra-ordenação muito grave a violação do aqui disposto, segundo o número 4 do
mesmo artigo. Para além disso, convém enunciar que o médico do trabalho,
detentor do resultado dos testes, apenas pode comunicar à entidade empregadora
se o trabalhador está ou não apto para desempenhar a sua profissão, de acordo
com o nº3 do mesmo artigo.
Nestas
excepções, em que os exames são obrigatórios, o trabalhador não poderá
recusar-se a cumpri-los, sob pena de não ser contratado ou despedido. Aplicando
o artigo ao tema que estamos abordar, poderíamos dizer que o trabalhador
seropositivo poderá ver o seu contrato caducado, caso seja considerado incapaz
para trabalhar quem não poder continuar a trabalhar pelo risco de infecção para
terceiros, bem como poderá ser despedido com justa causa no caso de, por
exemplo, ocultar o seu estatuto serológico.
Em suma,
parece-nos a conjugação deste artigo 19º C.T. com o princípio da
proporcionalidade serão adequados para aferir aquelas situações limite em que é
absolutamente necessário aceder a alguns dados da esfera íntima do trabalhador,
garantindo-se, ao mesmo tempo, a sua privacidade. Deixaríamos, todavia, na
medida em que nos é permitido, uma sugestão: um aditamento neste preceito legal
relativamente à possibilidade de o (candidato a) trabalhador exigir a
realização de um segundo teste, a título de contraprova, uma vez que este género de exames tem uma margem
percentual de falibilidade.
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Maio
de 2007 – O cozinheiro seropositivo
Para
finalizar o artigo em mérito vamos debruçar-nos sobre um acórdão que suscitou alguma
polémica, tanto no seio da comunidade científica como no público em geral.
Referimo-nos ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Maio de 2007
o qual veio inserir as profissões relacionadas com a confecção de refeições na
categoria de risco qualificado de contágio, no que toca à transmissão do vírus
da imunodeficiência humana.
Para uma
melhor compreensão de algumas das problemáticas suscitadas por esta decisão,
iremos fazer uma exposição sucinta do caso, bem como de alguma da fundamentação
utilizada pelo tribunal:
Em causa
estaria um cozinheiro (autor) que havia intentado contra o seu empregador (réu)
uma acção pedindo que fosse declarado ilícito o seu despedimento e exigindo a
sua reintegração nas suas funções de cozinheiro, bem como a restituição dos
vencimentos que deixou de receber desde a data do seu despedimento. Tendo esta
mesma acção sido julgada improcedente, o autor decidiu interpor recurso para a
Relação.
Do que
pudemos apurar da matéria de facto, retiramos que o Autor era cozinheiro num
hotel que era propriedade da ré. O autor, portador do vírus VIH, esteve de
baixa durante alguns meses, tendo, após isso, o seu médico emitido uma
declaração em como poderia regressar à sua actividade, não apresentando
qualquer perigo para os seus colegas.
De volta
ao activo, foi submetido a novos exames médicos, desta vez pelo médico do
trabalho, o qual o considerou inapto para a profissão de cozinheiro, tendo
recebido uma carta comunicando a caducidade do contrato de trabalho por
inaptidão para o exercício das suas funções. Apesar de o autor nunca ter
comunicado ao réu que era portador do vírus, facto que a entidade patronal
declarou só ter tomado conhecimento durante o processo e que considera ser uma
violação do dever de lealdade e de informação.
A
Relação considerou que o cozinheiro, no exercício das suas funções, tinha que
manipular alimentos e utilizar objectos cortantes, pelo que a sua condição de
seropositivo poderia ser um perigo concreto de transmitir o vírus a terceiros,
uma vez que, citando a argumentação utilizada pelo tribunal, “o vírus HIV
existe no sangue, na saliva, no suor e nas lágrimas. O vírus HIV pode ser
transmitido no caso de haver derrame de sangue, saliva, suor ou lágrimas sobre
alimentos servidos em cru consumidos por quem tenha na boca uma ferida na
mucosa de qualquer espécie.”.
Quanto à
fundamentação de Direito, no que à caducidade do contrato de trabalho diz
respeito, dispunha o então artigo 387º do C.T. (actual 343º C.T.) que o
contrato de trabalho caduca nos termos gerais, nomeadamente, “em caso de impossibilidade
superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho
ou de o empregador o receber”.
Na
esteira da doutrina de Abílio Neto, Contrato de trabalho, Notas Práticas 16º
ed., Set. 2000: “No que toca especificamente ao contrato de trabalho, será
superveniente quando a causa determinante só se verificar depois da
constituição do vínculo laboral, e não quando já existisse à data em que o
mesmo se constitui; será absoluta, quando seja total, isto é, quando o
trabalhador ou a entidade empregadora não estejam em condições de,
respectivamente, prestar ou receber, sequer parte do trabalho; será definitiva
quando, face a uma evolução normal e previsível, não mais seja viável a
prestação ou o recebimento do trabalho.”.
Considerou
o tribunal que a doença do Autor se traduzia numa incapacidade superveniente e
definitiva: “a referida doença só foi adquirida ou pelo menos diagnosticada
depois da constituição do vínculo laboral, pelo que é superveniente; É
também definitiva porquanto, sendo crónica, no estádio actual do
conhecimento da doença, face a uma sua evolução normal e previsível, não se
afigura viável que o Autor possa futuramente vir a prestar o seu trabalho”. Quanto
ao facto de ser também absoluta, adoptou-se a seguinte posição doutrinal
de Pedro Romano Martinez (Dto do Trabalho, II Vol., contrato de trabalho, 2º
tomo, 3ª ed. pag. 291), segundo o qual:
“Não se
encontrando o trabalhador incapacitado para a realização de todo e qualquer
trabalho poder-se-á questionar se, em tal caso, a impossibilidade é absoluta.
(…) Importante distinguir se as tarefas que o trabalhador, apesar de
incapacitado, pode desempenhar se incluem ou não na sua categoria contratual. Estando
o trabalhador impedido de realizar parcialmente a sua actividade, continuará a
prestar o que for possível (art. 793, nº 1 C. Civil) e, em tal caso, tendo em
conta que a incapacidade é absoluta (art. 4º alínea b) de LCCT) o empregador
não pode resolver o contrato invocando perda de interesse (art. 793º, nº 2
C.C.). Diferentemente, na eventualidade de a incapacidade do trabalhador
abranger todas as actividades compreendidas na sua categoria, a subsistência da
relação laboral pressuporia uma alteração do objecto do contrato. Nada obsta a
um acordo no sentido de se proceder a uma reclassificação do trabalhador
incapacitado, alterando-se o contrato de trabalho, de molde a permitir a
subsistência da relação laboral. Mas como a impossibilidade absoluta se tem de
reportar às actividades contratualmente devidas, se o trabalhador não se
encontra em condições de as executar, o contrato caduca, pois não há um dever
genérico de o empregador modificar o objecto negocial em função das limitações
do trabalhador”.
Considerando-se
o autor, portanto, inapto para exercer a sua profissão e não estando o réu
obrigado reintegrá-lo, conclui-se que a impossibilidade é, também, absoluta.
Apesar
de o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de 24 de Setembro de 2008,
ter confirmado esta decisão, parece-nos que a mesma suscita demasiadas
questões, desde a tese partilha relativamente aos meios de transmissão do vírus
da imunodeficiência humana, passando pela situação de (suposta) violação de
sigilo profissional do médico de trabalho. Efectivamente, o Centers for Disease Control and Prevention
(CDC) defende que “HIV has been found in
saliva and tears in very low quantities from some AIDS patients. It’s important
to understand that finding a small amount of HIV in a body fluid does not
necessarily mean that HIV can be transmitted by that body fluid. HIV has not
been recovered from the sweat of HIV-infected persons. Contact with saliva,
tears or sweat has never been shown to result in transmission of HIV”. Parece-nos
ser o caso, uma vez que o autor, embora portador do vírus, apresentava uma
carga viral indetectável, não representando, portanto, no que toca à
transmissão por suor, saliva ou lágrimas, um perigo concreto para os colegas ou
terceiros.
Quanto à
possibilidade de contágio através de sangue presente nos alimentos, consiste
numa mera possibilidade e, como pudemos referir no primeiro capítulo deste
trabalho, não estamos perante uma profissão enquadrada no grupo em que há um
risco qualificado de contágio, na esteira daquilo que tem vindo a ser dito pela
OMS, uma vez que há apenas uma possibilidade e não uma elevada probabilidade de
transmissão do vírus. Assim sendo, o mandato antidiscriminatório presente no
artigo 25º nº1 do C.T. exige que o trabalhador seropositivo não seja tratado de
forma diferente por causa do seu estatuto serológico.
O
aparente caso de violação de sigilo profissional, apesar de nunca ter sido
provado, também merece uma palavra. Presumindo que o médico do trabalho teve
conhecimento do estado de seropositividade do trabalhador e o terá comunicado à
entidade patronal, estaríamos perante um acto ilícito, de acordo com o artigo
19º nº3 C.T. A ficha clínica do trabalhador encontra-se sujeita ao regime do
segredo profissional, só podendo ser facultada às autoridades de saúde e aos
médicos da Inspecção-Geral do Trabalho, como dispõe o nº2 do artigo 20º do
Decreto-Lei nº 108/200, que regula a medicina no trabalho. Há uma quebra da
confidencialidade sem qualquer justificação, sem qualquer apoio legal, quebra
essa que é punível: penalmente, a título de Devassa da vida privada (artigo
192º do Código Penal) e de Violação de segredo (artigo 195º do mesmo código);
civilmente, artigo 80º do C.C., por violação do direito à reserva da intimidade
da vida privada; disciplinarmente, artigos 67º e 68º do Código Deontológico da
Ordem dos Médicos.
Por fim,
cumpre-nos mencionar o artigo 53º da C.R.P. que consagra a estabilidade no
emprego. A interpretação deste artigo impõe que o despedimento do trabalhador
em razão da doença seja, em regra, ilícito, salvo casos excepcionais. Nesses
casos sim, poderá haver lugar à caducidade do contrato de trabalho nos termos
do artigo 387º C.T.. Não concordamos, todavia que este caso se enquadre nessas
hipóteses excepcionais, nem que o trabalhador seja considerado inapto para
exercer as suas funções, tratando-se de um seropositivo assintomático. Resta-nos
citar o Parecer 16/CNECV/96, segundo o qual “ Os trabalhadores atingidos pela
SIDA deverão ser tratados numa base idêntica à dos trabalhadores atingidos por
outras doenças graves que afectem o desempenho da sua função. Quando a condição
física destes trabalhadores se deteriorar, convirá proceder, se possível, à
reorganização dos locais e dos horários, a fim de lhes permitir continuar a
trabalhar durante o maior período de tempo possível”. Deverá permitir-se uma
mudança na actividade funcional do trabalhador por se tratar de uma doença
crónica, nos termos do artigo 86º C.T. (desde que tal não implique encargos
desproporcionados) pelo que, aplicando ao caso concreto, o Autor poderia ter
recebido formação para ocupar outro posto de trabalho que não exigisse uma
elevada especialização técnica nem comportasse riscos para as demais pessoas.
Janeiro de 2014
Por João Casulo
[1] Nos
termos da declaração conjunta OMS/BIT sobre SIDA e local de trabalho,
“Principles et élements sur le SIDA et le lieu de travail ténue à Genève du 27
au 29 juin par L’Organisation Mondiale de la Santé en association avec le
Bureau INternation du Travail”.
[2] Ou seja, os seus direitos não
especificamente laborais, os seus direitos enquanto pessoa e cidadão,
terminologia amplamente utilizada, cuja origem é do Professor espanhol Carlos
Palómeque Lopez.
[3] Como
diria Júlio Gomes, “não existe por um lado, o trabalhador, e, por outro, o
cidadão, mas antes a pessoa que é simultaneamente cidadão e trabalhador
subordinado. A cidadania não fica à porta da empresa.” Direito do Trabalho,
página 265..
[4] Não obstante, o Código do Trabalho adoptou
uma visão paritária, consagrando os direitos de personalidade do trabalhador e
do empregador, o que acaba por esconder um pouco o problema da extensão dos
poderes patronais.
[5] Centro de Estudos Judiciários, “Direitos
fundamentais e de personalidade do trabalhador”, página 23.
[6] De
facto, em certas actividades profissionais como as actividades de segurança ou
o transporte de passageiros as
condições físicas e psíquicas do trabalhador podem colocar em risco a vida do
próprio, dos seus companheiros de trabalho ou até mesmo de terceiros, pelo que
se justifica a existência desse controlo pela entidade patronal.
[7] Apontamos
como exemplo o disposto no artigo 108.º da
Lei n.º 102/2009, segundo
o qual o empregador deve promover a realização de exames de saúde ao
trabalhador, quer aquando da sua admissão bem como depois, com determinada
periodicidade ou quando alterações substanciais o justifiquem.
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