sábado, 1 de novembro de 2014

VIH/SIDA e o ordenamento juridico-laboral português



O estigma da seropositividade – o mandato antidiscriminatório
Para uma melhor compreensão daquilo que iremos expor ao longo deste artigo, convém definir e distinguir os conceitos de SIDA, VIH e seropositividade. O vírus da imunodeficiência humana (VIH) trata-se de um vírus que enfraquece o sistema humanitário do ser humano, e distingue-se da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA) na medida em que a última resulta da infecção com VIH em fase adiantada, que se caracteriza pelo aparecimento de infecções ou cancros oportunistas relacionados com o VIH. Os seropositivos diferem dos doentes com SIDA porque apenas estão contaminados com o vírus, o qual não se manifesta.

A importância/impacto deste tema no ordenamento jurídico-laboral reflecte-se no simples facto de 90% dos portadores de VIH/SIDA se encontrarem inseridos na faixa etária economicamente produtiva. O elevado número de trabalhadores/candidatos a emprego seropositivos impõe ao Estado e ao próprio empregador a obrigação de proteger a sua esfera jurídica. Todavia, tal protecção não poderá descurar o resguardo simultâneo do bem-estar e da saúde dos restantes trabalhadores e de terceiros (clientes, por exemplo) e, consequentemente, evitar que estes sejam contaminados por trabalhadores portadores do vírus. É necessário tentar harmonizar os interesses de ambos, tentando sempre combater o estigma aliado à seropositividade, resultante do facto de não ter uma terapia eficaz.

Assim sendo, importa saber como é que o vírus se transmite para podermos elaborar medidas de prevenção. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o vírus transmite-se por via sexual, por contacto com o sangue e outros líquidos orgânicos e por via fetal. De acordo com estes dados, parece-nos impossível eliminar a possibilidade de existir risco de contágio em qualquer profissão. De facto, no desempenho de uma qualquer actividade profissional parece haver uma hipótese de infecção por VIH, o que não implica que a ordem jurídica deva excluir os seropositivos da esfera laboral. Tomemos como exemplo um individuo que faz trabalhos de instalação e reparação de canalizações que apresente uma escoriação na mão, devido ao manuseamento de um instrumento de trabalho, o qual é, em seguida, utilizado por outro trabalhador que também apresente um corte na mesma mão.

Neste âmbito, o artigo 25º nº1 do C.T. enuncia um mandato antidiscriminatório, segundo o qual o trabalhador seropositivo assintomático, ou seja, que se encontra infectado pelo vírus mas não está incapacitado para desempenhar as suas funções, deve ser tratado como os demais trabalhadores, e o doente com SIDA deve ser tratado como outro trabalhador doente[1], sendo as suas faltas ao trabalho justificadas ao abrigo da alínea d) do nº2 do artigo 249º C.T., suspendendo-se o contrato em caso de impedimento temporário que se prolongue por mais de um mês, segundo o nº1 do artigo 296º C.T.. Impede-se, assim, através do princípio da não discriminação, que exista uma discriminação baseada no estado de saúde do trabalhador, neutralizando a diferença e evidenciando que, não obstante essa diferença, todos têm igual dignidade.

Todavia, este princípio só terá aplicação para o conjunto de profissões em que não há um elevado risco de contágio pelas formas já indicadas. Mas como é que podemos, então determinar quais as profissões que comportam um elevado risco de contágio? Na esteira daquilo que tem vindo a ser proposto pela OMS, tais profissões serão aquelas em que não existe uma mera possibilidade de contágio, mas sim um risco qualificado de contágio devido ao contacto recorrente com fluidos orgânicos no exercício da sua actividade, como é o caso dos médicos e outros profissionais de saúde. Não se incluirá neste leque de profissões o exemplo supramencionado, sobre o individuo que faz trabalhos de reparação de canalizações, por exemplo. O contacto com fluidos orgânicos não se inscreve no quadro normal da actividade, pelo que as regras de segurança, higiene e saúde no trabalho consideram-se suficientes para prevenir um remoto contágio.

Parece-nos estranho, no entanto, que não exista uma lista de profissões, elaborada por uma comissão de médicos especialistas na matéria, relativamente às quais se poderia aferir que existe um elevado risco de contágio, estabelecendo-se assim limites concretos.

Direitos de personalidade do trabalhador à luz do Código do Trabalho
Feito este breve enquadramento, cumpre-nos agora examinar os direitos de personalidade que o ordenamento jurídico-laboral confere ao trabalhador. Para tal, convém analisar alguns pormenores da relação laboral.

A relação laboral analisa-se numa relação de poder, na qual o trabalhador surge como sujeito juridicamente subordinado à direcção e autoridade do empregador, de acordo com artigos 97º (poder directivo), 99º nº1 (poder regulamentar) e 98º (poder disciplinar) do C.T.. Com efeito, compete ao empregador definir os termos em que o trabalho deve ser prestado, estabelecendo um horário e local de trabalho, controlando o modo de prestação, emitindo ordens e impondo assim disciplina na empresa.  Mas como é que se gere o conflito entre as exigências organizativas e disciplinares do empregador, por um lado, e os direitos do trabalhador, por outro, mais propriamente os seus direitos inespecíficos[2]?

A partir do artigo 11º do C.T. é possível definir o trabalhador como “a pessoa que se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas sob autoridade e direcção destas.” Ao aceitar submeter-se à autoridade do empregador, o trabalhador permite automaticamente uma auto-limitação dos seus direitos de personalidade, a qual, embora revogável (artigo 81º nº2 C.C.) subsiste enquanto dura o contrato de trabalho.

Existe, portanto uma compressão dos direitos do trabalhador enquanto individuo decorrente da subordinação jurídica que o contrato de trabalho/relação laboral pressupõe. Todavia o trabalhador não perde o direito à individualidade, isto é, de que não deixa de ser pessoa só por estar integrado na empresa[3]. O que temos aqui é um problema de conflitos de direitos a reclamar uma concordância prática entre eles, de acordo com o princípio da proporcionalidade na sua tríplice dimensão (adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu), para encontrar um ponto de equilíbrio.

Estes direitos de personalidade do trabalhador foram reconhecidos no âmbito laboral pelo Código do Trabalho nos artigos 14º a 22º. A instituição de um dever de respeito pelos seus direitos da personalidade, hoje em dia, apresenta-se como necessária para que não haja uma restrição excessiva dos direitos. É inegável o facto de a relação laboral consistir numa relação assimétrica, configurando os trabalhadores a parte mais fraca, desde logo por o rendimento do trabalho constituir, também em regra, a sua única fonte de subsistência. Este factor condiciona psicologicamente o (candidato a) trabalhador na revindicação dos seus direitos, necessitando portanto de uma protecção especial[4].

O direito à reserva da intimidade da vida privada – o artigo 16º
Depois desta abordagem geral dos direitos de personalidade do trabalhador, analisemos agora alguns artigos em específico, neste caso, o artigo 16º, que consagra o direito à reserva da intimidade da vida privada.

Este direito, constitucionalmente protegido no artigo 26º nº1 C.R.P., impõe tanto ao empregador como ao trabalhador um dever de respeito pelos direitos de personalidade de ambos, guardando reserva quanto à intimidade da vida privada. Este dever concretiza-se no nº2 do artigo 16º C.T. através da proibição, quer do acesso, quer da divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas. Por imposição quer do n.º 2 do art. 18.º da CRP quer do art. 335.º do Código Civil, a reserva da intimidade da vida privada deve ser a regra, não a excepção, apenas se justificando a sua limitação quando outros direitos constitucionalmente protegidos estejam em conflito.

Recorrendo à teoria das três esferas podemos distinguir, no direito à intimidade da vida privada, entre: uma esfera íntima, abrangendo a vida familiar, saúde, comportamentos sexuais, cuja protecção é, em princípio, absoluta; uma esfera privada, que abarca hábitos de vida e informações que o indivíduo partilha com um número restrito de pessoas (a sua família e amigos) e cujo conhecimento tem interesse em guardar para si, cuja protecção é relativa, podendo ceder em caso de conflito com direitos e interesses superior; uma esfera pública, relativa às situações que são objecto de conhecimento público e que, por isso, podem ser livremente divulgadas.

Esta teoria é aplicável às relações laborais, pelo que através dela é-nos possível afirmar que existe uma protecção absoluta da esfera íntima, protecção essa que se estende à esfera privada, salvo quando exista um direito e interesse superior, que seja necessário salvaguardar. O estado de saúde do trabalhador encontra-se então especialmente salvaguardado, o que significa que o mesmo não poderá ser discriminado por ser seropositivo, a não ser que tal condição perturbe a sua prestação de trabalho, ou seja, a não ser que tal condição tenha uma ligação directa com as suas funções. Mas, neste caso, o que influi não é o facto de ser seropositivo, mas sim de ter uma desvantagem que pode afectar o seu desempenho, tal como uma deficiência física, por exemplo. Daqui deduz-se que “o círculo da reserva da intimidade da vida privada não é uniforme, devendo ser definido consoante a natureza do caso, mormente em função da actividade laboral do trabalhador”[5].

Este direito pode, todavia, comportar algumas excepções. Os artigos 17º e 19º, que iremos abordar de seguida, são exemplo disso, e indicam-nos as situações em que o empregador pode questionar o trabalhador sobre o seu estado de saúde, invadindo assim a sua esfera íntima. Por configurarem uma coarctação do direito à reserva da intimidade da vida privada, estes preceitos devem ser interpretados em consonância com o artigo 18º da C.R.P., relativo à restrição de direitos fundamentais. Observando este artigo da lei fundamental, verificamos que o acesso a estes dados do (candidato a) trabalhador só é permitido quando se revelar adequado à prossecução de outros valores com dignidade constitucional, devendo tal acesso ser indispensável à protecção dos mesmos, não podendo o prejuízo decorrente da restrição ser superior à vantagem obtida.

 Nos pontos seguintes iremos ver em que situações é admissível ao empregador questionar ao (candidato a) trabalhador sobre a possibilidade de se encontrar infectado pelo VIH, através de questões ou de exames médicos. Nestas situações poderá ocorrer a exclusão do candidato ou o afastamento do trabalhador, quer através da mudança de funções, da suspensão do vínculo, ou até mesmo através da cessação do contrato de trabalho. Fora destas situações, caso o empregador eventualmente venha a ter conhecimento da seropositividade do trabalhador, deverá guardar silêncio sobre esse facto, respeitando o disposto neste preceito legal.

A protecção de dados pessoais – o artigo 17º conjugado com a Lei nº 67/98
A tutela da privacidade do trabalhador abarca também a protecção de dados pessoais. No que aos mesmos diz respeito, torna-se necessário conjugar o Código do Trabalho com a Lei nº 67/98, de 26 de Outubro. O tratamento de dados pessoais, ou seja, a recolha ou o registo de “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável “, artigo 3º alínea a) da Lei nº67/98, está sujeito à Lei da Protecção de Dados Pessoais, como resulta do artigo 4º da mesma, bem como do artigo 17º nº4 do Código do Trabalho.

O artigo 7º desta lei reporta-se ao tratamento de dados sensíveis, estabelecendo a proibição do tratamento de “dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos”. Verificamos, assim, a existência de uma proibição relativa ao tratamento dos dados relativos à saúde. No entanto, esta mesma lei prevê algumas excepções, nomeadamente no nº2 do artigo 7º, no caso de existir uma disposição legal que o preveja ou caso exista uma autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados, o que, porém, tem de basear-se em motivos de interesse público importantes ou no consentimento expresso do titular dos dados. Estas excepções vêm com garantias de não discriminação e com medidas de segurança especiais, artigo 15º da mesma lei.

 Ora, parece-nos que o art. 17.º do Código do Trabalho cabe na primeira das excepções enunciadas, ou seja, trata-se de uma disposição legal que levanta a proibição estabelecida no artigo 7º da Lei nº 67/98 relativamente ao tratamento de dados sensíveis, uma vez que permite que sejam exigidas ao candidato a emprego ou ao trabalhador informações relativas à sua vida privada quando tais aspectos sejam necessários e relevantes para avaliar da aptidão no que respeita à execução do contrato de trabalho, bem como informações relativas à saúde ou ao estado de gravidez, quando a natureza da actividade profissional assim o justifique.

Assim, a entidade empregadora poderia exigir a candidato a emprego ou a trabalhador que preste informações relativas à sua saúde caso se verifique alguma das situações mencionadas supra, solicitando à Comissão Nacional de Protecção de dados a devida autorização, segundo o artigo 28º desta lei. A entidade empregadora encontra-se também obrigada a entregar a devida fundamentação por escrito, artigo 17 nº1 C.T., ao trabalhador ou candidato a emprego, respeitando o direito à informação enunciado no artigo 10º nº1 da lei nº 67/98, e a proceder ao tratamento dos dados com respeito e licitamente, artigo 5º da mesma lei. De salientar que, segundo o nº2 do artigo 17º do C.T., como estamos a tratar de informações relativas à saúde, apenas o médico (de trabalho ou assistente) pode ter conhecimento das mesmas, enviando posteriormente uma comunicação à entidade empregadora sobre a (in)aptidão do trabalhador para o desempenho das suas funções. Deve, isso sim, caso não haja nenhuma desconformidade jurídica, comunicar obrigatoriamente qualquer estádio de infecção de VIH detectado ao Centro de Vigilância epidemiológica das doenças transmissíveis, segundo a portaria 258/2005.

Direito à mentira
Tendo em conta o que acabamos de escrever, afigura-se-nos plausível tentar responder à seguinte questão: como é que poderemos avaliar a conduta de um candidato a emprego ou trabalhador que preste falsas declarações sobre dados pessoais? Se observarmos o artigo 106º nº2 do C.T., verificamos que o trabalhador possui o dever de “informar o empregador sobre aspectos relevantes para a prestação da actividade laboral”. Não obstante, a doutrina tem vindo a entender que a resposta a esta questão varia consoante as perguntas tenha sido colocadas, ou não, de forma lícita. Assim, caso não se verificasse alguma das excepções presentes no artigo 17º nº1, estando, portanto, o empregador a questionar ilegitimamente, o (candidato a) trabalhador poderia reagir prestando falsas declarações, uma vez que lhe é reconhecido um direito à mentira. Aplicando ao tema, falta um requisito substancial de admissibilidade do conhecimento do estado de seropositividade, pelo que o trabalhador poderia mentir, tratando-se de um caso de desobediência lícita, alínea a) do nº2 do artigo 351º C.T..Caso a pergunta fosse legítima, a mentira poderia determinar a invalidade do contrato ou justificar o despedimento.
           
Testes e exames médicos – o artigo 19º
O artigo 19º do C.T., por seu lado, regula as situações em que será possível (ou não) exigir ao (candidato a) trabalhador testes e exames médicos. Como estamos a tratar de dados de saúde, referentes à esfera íntima, do trabalhador, é natural que o legislador tenha colocado fortes restrições no que toca ao acesso aos mesmos, tal como no que toca à protecção de dados pessoais, como pudemos verificar. Exige-se uma ligação directa entre a realização de testes e exames médicos exigida aos trabalhadores e as funções que estes desempenham ou irão desempenhar, consoante de um trabalhador efectivo ou de um candidato a emprego.

A regra consiste, então, na proibição desses exames, protegendo a intimidade do trabalhador. Contudo, este preceito legal prevê algumas excepções em que se verifica a possibilidade de sujeição do (candidato a) trabalhador a testes ou exames médicos[6]. Em primeiro lugar, temos as situações previstas em legislação relativa a segurança e saúde no trabalho, situações essas em que é levantada a cancela, dando-se permissão à entidade patronal para exigir os tais exames[7]. Para além destes casos, tal permissão será também dada quando tais exames tenham por finalidade a protecção e segurança do trabalhador ou de terceiros, ou quando a necessidade de realização dos testes ou exames deve resultar de particulares exigências inerentes à actividade.

Referenciamos aqui o Acórdão do Tribunal Constitucional 368/02 , segundo o qual “no âmbito das relações laborais, tem-se por certo que o direito à protecção da saúde, a todos reconhecido no artigo 64º nº1 C.R.P., bem como o dever consignado no mesmo preceito constitucional, não podem deixar de credenciar suficientemente a obrigação para o trabalhador de se sujeitar, desde logo, aos exames médicos necessários e adequados para (…) evitar situações de contágio para os restantes trabalhadores ou para terceiros, propiciadas pelo exercício da actividade profissional do trabalhador” – serão raras as profissões que poderão justificar um teste de VIH, uma vez que, segundo o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), o teste da Sida deve ser exigível às seguintes pessoas: “ Profissionais de saúde, que entrem em contacto directo com órgãos ou líquidos biológicos humanos”. Há um campo restrito de actividades profissionais, como podemos ver, campo esse delimitado por balizas estabelecidas pelo princípio da proporcionalidade, que nos indica em que casos será necessário, adequado e não excessivo sujeitar um trabalhador a exames ou testes de saúde.

O número 1 do artigo 19º C.T. estabelece também a obrigatoriedade de ser fornecida ao (candidato a) trabalhador a devida fundamentação, por escrito, quanto à necessidade de realização dos testes/exames, constituindo contra-ordenação muito grave a violação do aqui disposto, segundo o número 4 do mesmo artigo. Para além disso, convém enunciar que o médico do trabalho, detentor do resultado dos testes, apenas pode comunicar à entidade empregadora se o trabalhador está ou não apto para desempenhar a sua profissão, de acordo com o nº3 do mesmo artigo.

Nestas excepções, em que os exames são obrigatórios, o trabalhador não poderá recusar-se a cumpri-los, sob pena de não ser contratado ou despedido. Aplicando o artigo ao tema que estamos abordar, poderíamos dizer que o trabalhador seropositivo poderá ver o seu contrato caducado, caso seja considerado incapaz para trabalhar quem não poder continuar a trabalhar pelo risco de infecção para terceiros, bem como poderá ser despedido com justa causa no caso de, por exemplo, ocultar o seu estatuto serológico.

Em suma, parece-nos a conjugação deste artigo 19º C.T. com o princípio da proporcionalidade serão adequados para aferir aquelas situações limite em que é absolutamente necessário aceder a alguns dados da esfera íntima do trabalhador, garantindo-se, ao mesmo tempo, a sua privacidade. Deixaríamos, todavia, na medida em que nos é permitido, uma sugestão: um aditamento neste preceito legal relativamente à possibilidade de o (candidato a) trabalhador exigir a realização de um segundo teste, a título de contraprova, uma vez que este género de exames tem uma margem percentual de falibilidade.
           
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Maio de 2007 – O cozinheiro seropositivo
Para finalizar o artigo em mérito vamos debruçar-nos sobre um acórdão que suscitou alguma polémica, tanto no seio da comunidade científica como no público em geral. Referimo-nos ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Maio de 2007 o qual veio inserir as profissões relacionadas com a confecção de refeições na categoria de risco qualificado de contágio, no que toca à transmissão do vírus da imunodeficiência humana.

Para uma melhor compreensão de algumas das problemáticas suscitadas por esta decisão, iremos fazer uma exposição sucinta do caso, bem como de alguma da fundamentação utilizada pelo tribunal:
Em causa estaria um cozinheiro (autor) que havia intentado contra o seu empregador (réu) uma acção pedindo que fosse declarado ilícito o seu despedimento e exigindo a sua reintegração nas suas funções de cozinheiro, bem como a restituição dos vencimentos que deixou de receber desde a data do seu despedimento. Tendo esta mesma acção sido julgada improcedente, o autor decidiu interpor recurso para a Relação.
Do que pudemos apurar da matéria de facto, retiramos que o Autor era cozinheiro num hotel que era propriedade da ré. O autor, portador do vírus VIH, esteve de baixa durante alguns meses, tendo, após isso, o seu médico emitido uma declaração em como poderia regressar à sua actividade, não apresentando qualquer perigo para os seus colegas.

De volta ao activo, foi submetido a novos exames médicos, desta vez pelo médico do trabalho, o qual o considerou inapto para a profissão de cozinheiro, tendo recebido uma carta comunicando a caducidade do contrato de trabalho por inaptidão para o exercício das suas funções. Apesar de o autor nunca ter comunicado ao réu que era portador do vírus, facto que a entidade patronal declarou só ter tomado conhecimento durante o processo e que considera ser uma violação do dever de lealdade e de informação.

A Relação considerou que o cozinheiro, no exercício das suas funções, tinha que manipular alimentos e utilizar objectos cortantes, pelo que a sua condição de seropositivo poderia ser um perigo concreto de transmitir o vírus a terceiros, uma vez que, citando a argumentação utilizada pelo tribunal, “o vírus HIV existe no sangue, na saliva, no suor e nas lágrimas. O vírus HIV pode ser transmitido no caso de haver derrame de sangue, saliva, suor ou lágrimas sobre alimentos servidos em cru consumidos por quem tenha na boca uma ferida na mucosa de qualquer espécie.”.

Quanto à fundamentação de Direito, no que à caducidade do contrato de trabalho diz respeito, dispunha o então artigo 387º do C.T. (actual 343º C.T.) que o contrato de trabalho caduca nos termos gerais, nomeadamente, “em caso de impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho ou de o empregador o receber”.

Na esteira da doutrina de Abílio Neto, Contrato de trabalho, Notas Práticas 16º ed., Set. 2000: “No que toca especificamente ao contrato de trabalho, será superveniente quando a causa determinante só se verificar depois da constituição do vínculo laboral, e não quando já existisse à data em que o mesmo se constitui; será absoluta, quando seja total, isto é, quando o trabalhador ou a entidade empregadora não estejam em condições de, respectivamente, prestar ou receber, sequer parte do trabalho; será definitiva quando, face a uma evolução normal e previsível, não mais seja viável a prestação ou o recebimento do trabalho.”.

Considerou o tribunal que a doença do Autor se traduzia numa incapacidade superveniente e definitiva: “a referida doença só foi adquirida ou pelo menos diagnosticada depois da constituição do vínculo laboral, pelo que é superveniente; É também definitiva porquanto, sendo crónica, no estádio actual do conhecimento da doença, face a uma sua evolução normal e previsível, não se afigura viável que o Autor possa futuramente vir a prestar o seu trabalho”. Quanto ao facto de ser também absoluta, adoptou-se a seguinte posição doutrinal de Pedro Romano Martinez (Dto do Trabalho, II Vol., contrato de trabalho, 2º tomo, 3ª ed. pag. 291), segundo o qual:
“Não se encontrando o trabalhador incapacitado para a realização de todo e qualquer trabalho poder-se-á questionar se, em tal caso, a impossibilidade é absoluta. (…) Importante distinguir se as tarefas que o trabalhador, apesar de incapacitado, pode desempenhar se incluem ou não na sua categoria contratual. Estando o trabalhador impedido de realizar parcialmente a sua actividade, continuará a prestar o que for possível (art. 793, nº 1 C. Civil) e, em tal caso, tendo em conta que a incapacidade é absoluta (art. 4º alínea b) de LCCT) o empregador não pode resolver o contrato invocando perda de interesse (art. 793º, nº 2 C.C.). Diferentemente, na eventualidade de a incapacidade do trabalhador abranger todas as actividades compreendidas na sua categoria, a subsistência da relação laboral pressuporia uma alteração do objecto do contrato. Nada obsta a um acordo no sentido de se proceder a uma reclassificação do trabalhador incapacitado, alterando-se o contrato de trabalho, de molde a permitir a subsistência da relação laboral. Mas como a impossibilidade absoluta se tem de reportar às actividades contratualmente devidas, se o trabalhador não se encontra em condições de as executar, o contrato caduca, pois não há um dever genérico de o empregador modificar o objecto negocial em função das limitações do trabalhador”.

Considerando-se o autor, portanto, inapto para exercer a sua profissão e não estando o réu obrigado reintegrá-lo, conclui-se que a impossibilidade é, também, absoluta.

Apesar de o Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão de 24 de Setembro de 2008, ter confirmado esta decisão, parece-nos que a mesma suscita demasiadas questões, desde a tese partilha relativamente aos meios de transmissão do vírus da imunodeficiência humana, passando pela situação de (suposta) violação de sigilo profissional do médico de trabalho. Efectivamente, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) defende que “HIV has been found in saliva and tears in very low quantities from some AIDS patients. It’s important to understand that finding a small amount of HIV in a body fluid does not necessarily mean that HIV can be transmitted by that body fluid. HIV has not been recovered from the sweat of HIV-infected persons. Contact with saliva, tears or sweat has never been shown to result in transmission of HIV”. Parece-nos ser o caso, uma vez que o autor, embora portador do vírus, apresentava uma carga viral indetectável, não representando, portanto, no que toca à transmissão por suor, saliva ou lágrimas, um perigo concreto para os colegas ou terceiros.

Quanto à possibilidade de contágio através de sangue presente nos alimentos, consiste numa mera possibilidade e, como pudemos referir no primeiro capítulo deste trabalho, não estamos perante uma profissão enquadrada no grupo em que há um risco qualificado de contágio, na esteira daquilo que tem vindo a ser dito pela OMS, uma vez que há apenas uma possibilidade e não uma elevada probabilidade de transmissão do vírus. Assim sendo, o mandato antidiscriminatório presente no artigo 25º nº1 do C.T. exige que o trabalhador seropositivo não seja tratado de forma diferente por causa do seu estatuto serológico.

O aparente caso de violação de sigilo profissional, apesar de nunca ter sido provado, também merece uma palavra. Presumindo que o médico do trabalho teve conhecimento do estado de seropositividade do trabalhador e o terá comunicado à entidade patronal, estaríamos perante um acto ilícito, de acordo com o artigo 19º nº3 C.T. A ficha clínica do trabalhador encontra-se sujeita ao regime do segredo profissional, só podendo ser facultada às autoridades de saúde e aos médicos da Inspecção-Geral do Trabalho, como dispõe o nº2 do artigo 20º do Decreto-Lei nº 108/200, que regula a medicina no trabalho. Há uma quebra da confidencialidade sem qualquer justificação, sem qualquer apoio legal, quebra essa que é punível: penalmente, a título de Devassa da vida privada (artigo 192º do Código Penal) e de Violação de segredo (artigo 195º do mesmo código); civilmente, artigo 80º do C.C., por violação do direito à reserva da intimidade da vida privada; disciplinarmente, artigos 67º e 68º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos.

Por fim, cumpre-nos mencionar o artigo 53º da C.R.P. que consagra a estabilidade no emprego. A interpretação deste artigo impõe que o despedimento do trabalhador em razão da doença seja, em regra, ilícito, salvo casos excepcionais. Nesses casos sim, poderá haver lugar à caducidade do contrato de trabalho nos termos do artigo 387º C.T.. Não concordamos, todavia que este caso se enquadre nessas hipóteses excepcionais, nem que o trabalhador seja considerado inapto para exercer as suas funções, tratando-se de um seropositivo assintomático. Resta-nos citar o Parecer 16/CNECV/96, segundo o qual “ Os trabalhadores atingidos pela SIDA deverão ser tratados numa base idêntica à dos trabalhadores atingidos por outras doenças graves que afectem o desempenho da sua função. Quando a condição física destes trabalhadores se deteriorar, convirá proceder, se possível, à reorganização dos locais e dos horários, a fim de lhes permitir continuar a trabalhar durante o maior período de tempo possível”. Deverá permitir-se uma mudança na actividade funcional do trabalhador por se tratar de uma doença crónica, nos termos do artigo 86º C.T. (desde que tal não implique encargos desproporcionados) pelo que, aplicando ao caso concreto, o Autor poderia ter recebido formação para ocupar outro posto de trabalho que não exigisse uma elevada especialização técnica nem comportasse riscos para as demais pessoas.

Janeiro de 2014



Por João Casulo




[1]    Nos termos da declaração conjunta OMS/BIT sobre SIDA e local de trabalho, “Principles et élements sur le SIDA et le lieu de travail ténue à Genève du 27 au 29 juin par L’Organisation Mondiale de la Santé en association avec le Bureau INternation du Travail”.
[2]   Ou seja, os seus direitos não especificamente laborais, os seus direitos enquanto pessoa e cidadão, terminologia amplamente utilizada, cuja origem é do Professor espanhol Carlos Palómeque Lopez.
[3]   Como diria Júlio Gomes, “não existe por um lado, o trabalhador, e, por outro, o cidadão, mas antes a pessoa que é simultaneamente cidadão e trabalhador subordinado. A cidadania não fica à porta da empresa.” Direito do Trabalho, página 265..

[4]    Não obstante, o Código do Trabalho adoptou uma visão paritária, consagrando os direitos de personalidade do trabalhador e do empregador, o que acaba por esconder um pouco o problema da extensão dos poderes patronais.
[5]    Centro de Estudos Judiciários, “Direitos fundamentais e de personalidade do trabalhador”, página 23.
[6]  De facto, em certas actividades profissionais como as actividades de segurança ou o transporte de passageiros as condições físicas e psíquicas do trabalhador podem colocar em risco a vida do próprio, dos seus companheiros de trabalho ou até mesmo de terceiros, pelo que se justifica a existência desse controlo pela entidade patronal.
[7]   Apontamos como exemplo o disposto no artigo 108.º da Lei n.º 102/2009, segundo o qual o empregador deve promover a realização de exames de saúde ao trabalhador, quer aquando da sua admissão bem como depois, com determinada periodicidade ou quando alterações substanciais o justifiquem.



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