A Internacionalização da Relação Jurídica Tributária
Da Necessidade
A ideia
de que o poder tributário é uma preocupação unicamente nacional, respeitante ao
setor interno de atividade dos próprios Estados, onde o princípio da
territorialidade - que visa o objetivo de cingir a atividade tributária ao
local onde se praticam os factos que dão origem às relações jurídicas
tributárias, utilizando para tal efeito elementos de conexão essencialmente
reais e objetivos, que impediam a internacionalização das relações jurídicas -
assumia vital importância, tem vindo a extinguir-se, dando lugar a uma
necessidade de internacionalização das relações jurídicas tributárias.
Para que
se começasse a entender o poder tributário como fenómeno internacional, uma
série de fatores de elevada preponderância começaram a ser tidos em conta.
Refiram-se, entre outros, o crescimento económico além-fronteiras,
internacionalizando-se a si mesmo o poder tributário, assim como a
desmaterialização dos pressupostos de facto dos impostos, e a crescente
personalização de alguns setores do poder tributário, como o são a título
exemplificativo o setor da tributação do rendimento. Tais fatores influenciaram
tanto as legislações nacionais, como as Convenções Internacionais, na medida em
que começaram a ser utilizados elementos de conexão diversos dos anteriormente
quase exclusivamente utilizados, tal como o são a sede ou a residência dos
contribuintes[1].
Ora, tal
alteração da maneira como se via a delimitação do poder tributário às
estruturas internas de cada Estado, comportou algumas consequências, que por
sua vez dão origem aos desafios decorrentes de tal alteração de paradigma.
Entre tais consequências, ressalta uma especialmente à vista: para cada facto
tributário, começa a existir mais do que um elemento de conexão relevante, o
que não raras vezes significa que mais do que uma jurisdição interna se
arrogará competente para exercer o poder tributário. Assim, começam a existir,
a nível global, os problemas relacionados com a dupla tributação internacional.
A título
exemplificativo, analisemos o que tais alterações implicam no respeitante aos impostos sobre o rendimento. Hoje em dia, em matéria de impostos sobre o
rendimento, os elementos de conexão utilizados para que se afira acerca da
legitimidade do exercício do poder tributário são a residência – do
beneficiário desse mesmo rendimento -, assim como o local da produção do
rendimento. O primeiro elemento de conexão mencionado reconduz, por via de
regra, a uma indefinição acerca da proveniência do rendimento, assentando pois
numa perspetiva e num princípio de universalidade do rendimento, potenciando a
internacionalização das relações jurídicas tributárias a que se encontra
subjacente. O segundo elemento de conexão tem por objetivo a aplicação restrita
do princípio da territorialidade, restringindo a tributação relativa ao
rendimento, na medida em que apenas se reporta aos rendimentos que sejam
produzidos num determinado e específico território[2].
Por
força do que acima foi exposto, claramente surgem desafios para os Estados, na
medida em que terão que combater as situações de dupla tributação, ao mesmo
tempo que potenciam a sua política fiscal externa. Será isso que infra analisaremos.
Dos Desafios
O
principal desafio que se apresenta por força da internacionalização da relação
jurídica tributária, como atrás foi mencionado, advém do facto de que os
Estados têm que criar uma política fiscal externa, potenciando-a, acompanhando
assim uma crescente globalização económica, e salvaguardando simultaneamente a
sua soberania em matéria de poder fiscal.
Tal
política fiscal externa visa dois importantes objetivos: em primeiro lugar,
visa-se a adequação do sistema fiscal à crescente internacionalização das
empresas, com sede efetiva, assim sendo nacionais, de cada Estado, de forma a
impedir que os rendimentos por estas gerados no estrangeiro sejam tratados de
modo desvantajoso, em relação aos rendimentos que foram gerados no próprio
território do Estado – incentivo à internacionalização das empresas nacionais,
garantindo um tratamento equitativo em relação aos rendimentos que sejam de
fonte nacional e internacional[3]. Em
segundo lugar, a criação e potenciação da política externa fiscal de um Estado
tem subjacente a intenção de incentivar o investimento estrangeiro no seu
território, com as inegáveis vantagens que tal situação cria no próprio Estado,
através da premissa de que não devem ser prejudicados os rendimentos de
empresas estrangeiras no que diz respeito à repatriação dos rendimentos que
tais empresas geraram em território do próprio Estado[4].
Ambos estes objetivos, no que ao Estado Português diz respeito, encontram
consagração na Constituição da República Portuguesa, na medida em que o artigo
87.º da Lei Fundamental explicita que é dever do Estado assegurar o
funcionamento eficiente dos mercados, fomentando o equilíbrio empresarial,
contrariando os monopólios económicos e reprimindo abusos de posição dominante.
No que
concerne à concretização da política externa fiscal dos Estados, esta pode ser
realizada através de duas formas de adoção de medidas: medidas internacionais –
importante papel das Convenções contra a Dupla Tributação -, e medidas internas
– internamente, a criação de medidas que façam frente à dupla tributação.
Cumpre pois analisar cada um destes desafios colocados aos Estados, mais
especificamente a Portugal, em separado, a fim de ser possível percecionar a
sua vital importância na adequação fiscal à crescente globalização dos
mercados.
Portugal
goza de uma verdadeira política fiscal externa baseada fortemente em medidas
internacionais, que se concretiza em larga escala na celebração de
Convenções contra a Dupla Tributação[5].
Tais Convenções, celebradas entre um Estado e outro, impedem que suceda o que
foi atrás mencionado, de haver mais do que um Estado a tributar, da mesma forma
e na mesma medida, os mesmos impostos, às mesmas entidades. Portugal, querendo
impulsionar as suas empresas a investir no estrangeiro, e querendo atrair
investimento estrangeiro, tem vindo a seguir as recomendações provenientes da
OCDE, mais precisamente do Comité dos Assuntos Fiscais, que estabelecem uma
prioridade na celebração de Convenções contra a Dupla Tributação com Estados
com um nível de desenvolvimento inferior aos que integram a OCDE, Convenções
essas que se devem basear em diferentes métodos, sendo um deles o método do
crédito de imposto fictício – em que se visa a neutralidade, já que tal método
assenta na ideia de que o Estado de residência não irá deduzir os impostos que
foram efetivamente pagos nos países onde o rendimento foi produzido, mas ao
contrário deduz o que teria sido pago caso no país em desenvolvimento não
existisse isenção ou uma clara beneficiação fiscal – não se vêm frustrados,
deste modo, quaisquer incentivos ao investimento além-fronteiras. Assim,
Portugal adotou a celebração das Convenções já referidas como método
prioritário de internacionalização da sua política fiscal externa,
celebrando-as quer com os países que constituem a União Europeia, com os países
que fazem parte da OCDE, assim como com países histórica e culturalmente
ligados a Portugal, tal como Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo-Verde,
países estes que se encontram em desenvolvimento, pelo que se aplicará o que
acima foi referido quanto ao método do crédito de imposto fictício e os
restantes.
Ao que
às medidas internas diz respeito, tendo em vista a efetivação de uma
política fiscal externa, estas passam pela adoção de disposições internas de
combate à dupla tributação. Também neste aspeto Portugal tem vindo a
desenvolver, nos últimos anos, um leque de medidas que visam os dois principais
objetivos da política fiscal externa. No que diz respeito, mais uma vez, aos
impostos sobre o rendimento, Portugal adotou disposições em sede de IRC e IRS
que permitem “colmatar” a falta de uma Convenção contra a Dupla Tributação celebrada
com um país em específico, eliminando assim a discriminação fiscal negativa de
empresas nacionais que se internacionalizem, e vice-versa – diga-se, empresas
estrangeiras que invistam em Portugal -, valendo para tal as disposições
previstas nos artigos 91.º do Código do IRC, e 81.º do Código do IRS[6]. Mas as
medidas internas não se esgotam nestas duas situações, relativas aos impostos
sobre os rendimentos, que visam os objetivos de internacionalização de empresas
e a atração de investimento estrangeiro. Medidas de incentivo fiscal, no que
concerne à internacionalização das empresas nacionais, têm também um importante
papel, tal como se pode visualizar através da disposição do artigo 41.º do
Estatuto dos Benefícios Fiscais[7], ou da
adoção de medidas como o “Crédito Fiscal Extraordinário para o Investimento”,
que conferem claras vantagens aos projetos de internacionalização de empresas.
Em suma,
a adoção de uma política fiscal externa pode reduzir as situações de dupla
tributação que tendem a acentuar-se com a internacionalização das relações
jurídicas tributárias, situação inevitável e cada vez mais habitual nos dias de
hoje.
A Integração Fiscal Europeia
Definição e formas de ser alcançada
A
integração fiscal europeia não pode ser nunca dissociada do conceito de
harmonização fiscal. Quer-se com a integração fiscal europeia uma
uniformização, ao nível da União Europeia, dos sistemas fiscais dos respetivos
Estados-Membro. Tal situação limita a soberania dos Estados, pelo que deve ser
realizada – a harmonização – em termos adequados e moldados à realidade própria
da União Europeia. A integração fiscal europeia tem sido feita através da
elaboração de Tratados e através de decisões tomadas pelo Tribunal de Justiça
da União Europeia[8]. No que
aos Tratados diz respeito, a sua elaboração tem tentado manter na esfera dos
Estados-Membro a soberania do poder fiscal. Porém, as decisões do TJUE têm
vindo a acentuar uma destruição dos sistemas fiscais nacionais, ao invés de se
afirmarem como verdadeiros instrumentos de apoio à construção de um sistema
fiscal único, e europeu, objetivo dos próprios Estados-Membro.
Cumpre
pois explicar através de que instrumentos a doutrina, conjuntamente com o
Tratado de Roma e a legislação da União Europeia, entende ser possível e
adequado alcançar a integração. Refiram-se, pois, a coordenação política – na
medida em que os Estados-Membro cooperariam politicamente em determinados
setores da sua atividade, e não tanto em matéria legislativa -, a aproximação
de legislações – objetivo de formação de uma base comum de disposições e
princípios, para que os direitos Estaduais se tornem similares, a levar a cabo
por via de Convenções ou Diretivas Comunitárias -, a harmonização tout court – objetivo de erradicar todas
as disparidades que existam entre legislações nacionais, sem que se restrinja a
competência em matéria legislativa dos Estados-Membro, o que é conseguido
através da possibilidade destes terem à sua disposição um conjunto alargado de
instrumentos para legislar a nível interno – e a uniformização – assente nos
regulamentos comunitários, dos quais é exemplo o Código Aduaneiro Comunitário,
que visam complementar as disparidades existentes entre as legislações de cada
Estado-Membro.
Referindo-me
agora à harmonização fiscal que tem vindo a ser efetuada em sede de União
Europeia, esta resulta de um equilíbrio pré-estabelecido entre a necessidade de
limitação das disparidades, em matéria fiscal, dos Estados-Membro, e entre a
necessidade que estes últimos têm em salvaguardar a sua soberania fiscal. Para
ser atingida, deve recorrer-se a uma harmonização jurídica – positiva ou
negativa, consoante resulte, respetivamente, de instrumentos legislativos, ou
de uma função de controlo, a ser levada a cabo pela Comissão Europeia, ou pelo
TJUE – e a uma harmonização política – obtida através de Códigos de Conduta
emanados pela União Europeia, como por exemplo, o Código de Conduta da
Fiscalidades aplicável às empresas. A harmonização fiscal deve ter em conta não
apenas os impostos sobre o consumo[9], onde se
alcançou grande nível de harmonização, mas também os impostos diretos,
contrariamente ao que parece previsto no Tratado sobre o Funcionamento da União
Europeia[10], já que a
harmonização fiscal deve ser vista como um meio que visa a eliminação dos
obstáculos à livre circulação caraterística da União Europeia, relativa a
mercadorias, pessoas, capitais e serviços, e tais obstáculos resultam não
apenas dos impostos indiretos, mas também dos diretos, pelo que também
relativamente a estes deve existir a harmonização fiscal. Tal tem vindo a ser
desenvolvido pelo TJUE, ainda antes de sequer haver uma preocupação
relativamente a tal assunto por parte dos órgãos legislativos da União, através
de exigências claras, provenientes das suas decisões, relativas à não
discriminação em função da nacionalidade[11]
e às liberdades fundamentais. Assim, tem funcionado, o TJUE, como um legislador
supranacional em matéria fiscal, pela via negativa. No que concerne à via
positiva, como instrumentos de harmonização refiram-se as Diretivas do Conselho
relativas a sociedades mães e sociedades afilhadas, a fusões, cisões, troca de
ativos e permuta de ações, entre outras.
Deste
modo, é possível afirmar que a integração fiscal europeia é manifestamente
insuficiente, sendo que tal ponto crítico é o que de seguida será analisado.
Críticas à Harmonização Fiscal Positiva/Geral e à Harmonização
Fiscal Negativa
A
integração fiscal, tal como tem sido levada a cabo pelos órgãos da União
Europeia, não é isenta de críticas. Para além de um parco investimento na
integração fiscal positiva, acumulado com uma confusa integração fiscal
negativa levada a cabo pelo TJUE, podemos referir um tímido e receoso avanço em
matéria de harmonização fiscal.
Dividamos
esta análise então em duas diferentes secções: a que diz respeito à
harmonização fiscal geral/positiva, e a que se refere à harmonização fiscal que
tem sido levada a cabo pelo TJUE.
Começando
por analisar a harmonização fiscal positiva, geral, esta não tem tido o
avanço que inicialmente se projetava, ao contrário dos avanços nas áreas
políticas e económicas[12]. A perda
de instrumentos de política monetária, por parte dos Estados-Membro, que
implicou que os órgãos políticos e legislativos da União, em matéria fiscal,
ficassem bloqueados, em muito contribuiu para tal situação. Isto porque os
Estados-Membro “agarram-se” à sua soberania fiscal, depois de terem, de certo
modo, “perdido” a sua política monetária. Mantém-se então a concorrência fiscal
entre Estados-Membro da União Europeia, o que implica necessariamente que a
harmonização fiscal fique comprometida, e à mercê do mercado – assim, não
existirá equilíbrio e não vão ser supridas as disparidades existentes -, o que
não permitirá alcançar uma verdadeira política fiscal a nível da União. A
harmonização fiscal positiva, ou geral, de modo a ser alcançada com sucesso,
impõe que os órgãos encarregues de legislar, por parte da União Europeia, sejam
dotados de poderes representativos em relação aos contribuintes. Ora, tal não
tem acontecido, já que a transferência do poder tributário para os órgãos da
União, intergovernamentais, está distante de respeitar tal premissa. No
entanto, tal necessidade relacionada com o auto-consentimento da matéria fiscal
aos contribuintes não ganha, em sede de União Europeia, grande expressão, já
que esta última tem apenas como destinatários das suas normas fiscais os
próprios Estados-Membro, e apenas indiretamente os nacionais destes. Assim,
terão que ser os Estados-Membro a continuar a concretizar tais pressupostos de
auto-consentimento dos impostos aos seus contribuintes[13].
Acresce a isto que alguma doutrina, entre a qual se encontra José Casalta
Nabais[14], entende
que a União, em sede de harmonização fiscal positiva, apenas deve atuar quando
existam situações de “direito económico
fiscal”, na medida em que as situações de direito fiscal em si mesmas
continuam a pertencer à esfera de soberania nacional e fiscal de cada Estado.
Isto porque apenas as matérias fiscais que se relacionem diretamente com a
economia e o mercado são suscetíveis de serem alvo de medidas comunitárias, já
que os princípios da soberania fiscal dos Estados, da subsidiariedade e da
atribuição assim o impõem. Uma excessiva “intromissão” comunitária na soberania
de cada Estado conduziria, mais do que a harmonização, a uma desintegração da
União, por força do afastamento económico e político de alguns Estados-Membro,
e do colapso que tal situação acarretaria para a coesão social, que se quer,
dos Estados-Membro da União Europeia.
Cumpre
agora analisar a harmonização fiscal negativa, que tem sido levada a
cabo, em larga escala, pelo TJUE. Este último, com caráter democrático
manifestamente reduzido, quando comparado com os órgãos políticos e com competência
legislativa da União Europeia, tem vindo, em sede de harmonização negativa em
matéria fiscal, a eliminar aspetos fiscais, próprios de cada Estado, que se
encontrem em contraposição ao direito comunitário. Refira-se que este papel que
tem sido levado a cabo pelo TJUE encontra a sua razão no facto de que os órgãos
que deveriam harmonizar fiscalmente em sede da União Europeia, têm vindo a
revelar-se pouco operantes, se não mesmo inativos. Contudo, tal atuação do
TJUE, que tem vindo a contrariar princípios que são a base de toda a construção
da União Europeia, em matéria fiscal, encontra-se distante de ser comparada a
práticas que conduzam ao federalismo europeu, contrariamente ao que sucede com
as decisões dos tribunais superiores dos Estados que tenham estrutura federal.
Pelo contrário, o TJUE em nada tem harmonizado, na sua atuação, a matéria
fiscal na União Europeia, não conseguindo alcançar um equilíbrio de poderes que
se exige entre os Estados-Membro. Tal seria o objetivo da sua atuação, lado a lado
com a atuação de outros órgãos da União já referidos. Ao invés, tem baseado o
TJUE a sua atividade na delimitação e, por vezes, destruição, de disposições
próprias dos Estados-Membro, em matéria fiscal, reservadas que estão à sua
esfera de soberania nacional, alegando para tal que tais disposições internas
violam determinadas liberdades que devem ser asseguradas devido à existência do
mercado interno. Tal “ataque” que o TJUE tem vindo a protagonizar aos sistemas
fiscais dos Estados-Membro tem incidido quer sobre disposições internas dos
próprios Estados, quer sobre as normas constantes de Convenções contra a Dupla
Tributação, sendo que tal se deve à escassa legislação comunitária que opere a
já referida harmonização positiva. De modo a que pudesse ser considerada
positiva esta atuação do TJUE, seria necessário que após tal destruição dos
sistemas fiscais nacionais, existisse uma ação construtiva, levada a cabo pelos
órgãos que tenham competência para tal, da União Europeia, rumo à construção de
um sistema comunitário supranacional uno e equilibrado, que não pode ser
alcançado apenas pela via destruidora de determinadas normas nacionais próprias
dos Estados-Membro, que o TJUE considere incompatíveis com as disposições
comunitárias. Assim, a crescente pressão operada pelo TJUE, de modo a que os
Estados-Membro fortaleçam, eles mesmos, as disposições de harmonização em
matéria fiscal na União Europeia, pode considerar-se um fracasso, já que os
Estados-Membro hoje apresentam sistemas fiscais repletos de “remendos”,
confusos e excessivamente complexos, de modo a tentar dar resposta a uma
harmonização fiscal negativa, levada a cabo através de decisões judiciais do
TJUE sem qualquer coerência ou estabilidade, e em desrespeito pela soberania
fiscal dos próprios Estados da União.
O TJUE
tem-se refugiado, por regra, de modo a tentar abstrair-se da sua própria culpa
no fracasso da sua atuação, em justificações não plausíveis e que não
correspondem à realidade. Ora, um dos efeitos principais de tal atuação do
TJUE, que se vem apresentando como uma espécie de legislador, embora sempre
afastado da realidade prática que é a vida fiscal dos Estados-Membro, conjugada
com a inatividade dos órgãos competentes da União Europeia para legislar em
matéria fiscal, tem sido a perda de receita fiscal por parte de cada um dos
Estados-Membro da União. Contudo, nem por os Estados-Membro se encontrarem numa
posição de inferioridade em relação à que ocupavam anteriormente às alterações
operadas nos seus sistemas fiscais internos por parte do TJUE, este último
permite que sejam os próprios Estados a propor soluções internas para os seus
próprios problemas, que restrinjam, ainda que minimamente, princípios que o
Tribunal da União considere absolutamente invioláveis, como o são o princípio
da não discriminação em função da nacionalidade do contribuinte, ou as
liberdades que se assumem como fundamentais para a defesa do mercado interno da
União Europeia, ainda que tais princípios limitem a esfera de soberania fiscal
dos Estados e diminuam as suas receitas em sede de tributação. Tais limitações
às disposições que o TJUE tem vindo a entender como intransponíveis e
invioláveis não podem ser postas em causa pelos Estados, nem para salvaguarda
da coerência dos sistemas internos em matéria fiscal. Para manter tal
coerência, o TJUE tem concretizado alguns princípios em matéria fiscal,
dando-lhes novos entendimentos que considera suficientes para que tal
equilíbrio e coerência sejam alcançados de modo a não desrespeitar o direito da
União Europeia. Entre estes, refiram-se, a título exemplificativo, uma abertura
ao princípio da territorialidade que os Estados-Membro apliquem de modo a
obterem receita fiscal, a necessidade de defesa efetiva dos atos de liquidação
dos impostos, levada a cabo internamente, por parte dos Estados-Membro, entre
outros. Tais soluções apresentadas pelo TJUE, de modo a que os Estados garantam
parte dos seus interesses nacionais em matéria fiscal, encontram os seus
limites e a sua razão de ser na avaliação que o TJUE realizou da preponderância
entre os interesses nacionais dos Estados e os interesses comunitários da
União, na medida em que apenas certos interesses dos primeiros justificam a
derrogação, a limitação, do sistema comunitário, interesses esses que se
encontram plasmados nas soluções pelo TJUE apresentados. Tais considerações do
TJUE resultam de uma análise casuística assente no princípio da
proporcionalidade[15]. No
entanto, a doutrina, de forma maioritária, tem entendido que tal balanceamento
entre os interesses nacionais e comunitários não justifica, por si só, uma
parcial destruição dos sistemas fiscais nacionais, e por conseguinte, uma
intromissão excessiva na soberania fiscal que os Estados-Membro reservam para
si próprios.
No
entanto, o TJUE atualmente, nos tempos mais recentes, tem vindo a demonstrar
uma maior flexibilidade e abertura na sua forma de atuar enquanto órgão que
leva a cabo a harmonização fiscal negativa. Assim, o TJUE tem “dado o braço a
torcer” aos Estados-Membro quanto ao entendimento de que os fundamentos supra
expostos são plausíveis de atenuar o modo como devem ser entendidos
determinados princípios e preceitos da União Europeia, avaliação sempre
dependente do recurso ao princípio que permite aferir da adequação e
necessidade das próprias medidas, o princípio da proporcionalidade. Ainda assim
verifica-se que tal flexibilização de entendimento conferido ao direito
comunitário, por parte do TJUE, é proporcionalmente maior quando estejam em
causa situações em que as disposições da União sejam postas em causa pelas
Convenções contra a Dupla Tributação, o que manifesta uma não coerente
flexibilização infelizmente caraterística da atuação do TJUE, pois tal grau de
abertura devia existir quando estivessem em causa as soberanias fiscais dos
Estados, que correspondem ao núcleo essencial constitutivo da União Europeia.
Tais
modificações passíveis de serem analisadas à luz da mais recente atuação do
TJUE, embora caminhem para um entendimento mais aceitável e harmonizador do que
irrazoável e destruidor das soberanias fiscais dos Estados, caraterizam-se pela
instabilidade e incerteza decorrentes das decisões que sejam proferidas pelo
Tribunal em sede de harmonização fiscal negativa. Tal situação de
desestabilização no que diz respeito aos entendimentos que têm sido conferidos
a determinadas disposições comunitárias, em confronto com os interesses
nacionais internos de cada Estado, pode apresentar consequências de todo
indesejáveis, colocando em sério risco os sistemas fiscais caraterísticos de
cada um dos Estados-Membro, assim como pode comprometer seriamente a tão
desejada, mas não alcançada, harmonização comunitária em matéria fiscal. Senão
vejamos, de modo a alcançar a segunda, e manter um saudável funcionamento do
mercado interno da União, os Estados-Membro devem apresentar finanças
saudáveis. Ora, de modo a alcançar tal imposição comunitária, é necessário que
sejam os próprios Estados a recolher a sua receita fiscal, através de sistemas
de fiscalidade autónomos, independentes, funcionais e eficientes, sendo que tal
é também uma imposição derivada do direito da União Europeia. No entanto, esse
mesmo direito exige que tais disposições internas, que organizam e colocam em
funcionamento os sistemas fiscais de cada Estado-Membro, devem ser compatíveis
com os preceitos comunitários relativos ao correto funcionamento do mercado
interno. Assim, a soberania fiscal dos Estados, garantida e salvaguardada por
via do direito derivado da União e de outros instrumentos internacionais, é
afetada em resultado das exigências que a própria União impõe, numa amálgama de
interpretações e preceitos que em nada beneficia nenhuma das partes – refira-se
Estados-Membro e União Europeia. Deste modo, a União Europeia e o direito
comunitário têm vindo a desrespeitar o pressuposto da estadualidade dos
Estados-Membro, que constituem o núcleo central e pressuposto essencial da
União, pressuposto esse que garante que são os próprios Estados que devem
manter uma relação de fiscalidade e cidadania com os seus próprios
contribuintes[16], como
referi já anteriormente no presente relatório, o que origina como que uma
usurpação de poderes operada pela própria União em relação aos Estados que a
constituem, através do TJUE, órgão que deveria assegurar o equilíbrio entre o
direito comunitário e os domínios do direito nacional de cada Estado-Membro que
lhe estão a eles próprios reservados.
Em jeito
de conclusão, apenas uma maior atividade em sede de harmonização fiscal
positiva, por parte dos órgãos da União com competência para tal, retirará ao
TJUE o protagonismo que este tem vindo a ter em sede de harmonização fiscal,
pela via negativa, que tem resultado, pelos inúmeros fundamentos previamente
expostos, numa desacertada, confusa e errónea atuação, que tem colocado em risco
tanto os sistemas fiscais Estaduais, que deveriam ser salvaguardados, como a
integração fiscal europeia, desejável mas para já ainda muito longe de ser
alcançada. Uma delimitação acerca das matérias que devem ser transferidas para
o domínio da União Europeia é imperiosa neste momento, de modo a clarificar e
dar um rumo à integração europeia em matéria fiscal, pois apenas será possível
realizar um verdadeiro suporte à política monetária da União Europeia, se
existir uma política coerente e equilibrada a nível fiscal. Tal delimitação, na
opinião do autor José Casalta Nabais, deve ter em conta que apenas uma pequena
parcela de poder tributário deve ser transferida para o domínio do direito comunitário,
mais especificamente a que respeita a disposições que limitem a incidência dos
impostos em si mesmos, e que tudo quanto não esteja nessa parcela englobado,
deve manter-se no poder maioritário que os Estados-Membro reservam para si
mesmos, em matéria fiscal, com o objetivo final de manutenção de uma concorrência
saudável e benéfica para a própria União Europeia em matéria fiscal, sempre
atentando e impedindo distorções que comportem uma alteração negativa para a
concorrência saudável que se deseja, que possa prejudicar as empresas que se
encontram em território da própria União Europeia.
Maio de 2014
Por João Nuno Barros
[1] Cfr, a título exemplificativo, o
artigo 13.º LGT.
[2] Alberto Xavier, “Direito
Tributário Internacional”, ano de 2011, Almedina, 2.ª Reimpressão da 2.ª Edição
atualizada, página 226 e seguintes.
[6] Este último apenas em 2000 ganhou
verdadeira força enquanto disposição de potenciação da política fiscal externa.
[7] Benefícios a nível fiscal para
empresas nacionais que queiram investir além-fronteiras, assim como para
empresas estrangeiras que queiram investir em território Português.
[8] Doravante designado TJUE.
[13] José
Casalta Nabais, “Introdução ao Direito Fiscal das Empresas”, Almedina, ano de
2013, página 91.
[14] José
Casalta Nabais, “O Dever Fundamental de Pagar Impostos – Contributo para a
compreensão constitucional do Estado fiscal contemporâneo”, Almedina, ano de
2012, página 654 e seguintes.
[15] João
Félix Pinto Nogueira “Direito Fiscal Europeu – O Paradigma da
Proporcionalidade”, Coimbra Editora, ano de 2010, página 255 e seguintes.
[16] José
Casalta Nabais, “Introdução ao Direito Fiscal das Empresas”, ano de 2013,
Almedina, página 97.
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