domingo, 2 de novembro de 2014

A internacionalização das relações tributárias e a integração fiscal europeia - Repercussões e desafios à soberania fiscal dos Estados



A Internacionalização da Relação Jurídica Tributária

Da Necessidade
A ideia de que o poder tributário é uma preocupação unicamente nacional, respeitante ao setor interno de atividade dos próprios Estados, onde o princípio da territorialidade - que visa o objetivo de cingir a atividade tributária ao local onde se praticam os factos que dão origem às relações jurídicas tributárias, utilizando para tal efeito elementos de conexão essencialmente reais e objetivos, que impediam a internacionalização das relações jurídicas - assumia vital importância, tem vindo a extinguir-se, dando lugar a uma necessidade de internacionalização das relações jurídicas tributárias.

Para que se começasse a entender o poder tributário como fenómeno internacional, uma série de fatores de elevada preponderância começaram a ser tidos em conta. Refiram-se, entre outros, o crescimento económico além-fronteiras, internacionalizando-se a si mesmo o poder tributário, assim como a desmaterialização dos pressupostos de facto dos impostos, e a crescente personalização de alguns setores do poder tributário, como o são a título exemplificativo o setor da tributação do rendimento. Tais fatores influenciaram tanto as legislações nacionais, como as Convenções Internacionais, na medida em que começaram a ser utilizados elementos de conexão diversos dos anteriormente quase exclusivamente utilizados, tal como o são a sede ou a residência dos contribuintes[1].

Ora, tal alteração da maneira como se via a delimitação do poder tributário às estruturas internas de cada Estado, comportou algumas consequências, que por sua vez dão origem aos desafios decorrentes de tal alteração de paradigma. Entre tais consequências, ressalta uma especialmente à vista: para cada facto tributário, começa a existir mais do que um elemento de conexão relevante, o que não raras vezes significa que mais do que uma jurisdição interna se arrogará competente para exercer o poder tributário. Assim, começam a existir, a nível global, os problemas relacionados com a dupla tributação internacional.

A título exemplificativo, analisemos o que tais alterações implicam no respeitante aos impostos sobre o rendimento. Hoje em dia, em matéria de impostos sobre o rendimento, os elementos de conexão utilizados para que se afira acerca da legitimidade do exercício do poder tributário são a residência – do beneficiário desse mesmo rendimento -, assim como o local da produção do rendimento. O primeiro elemento de conexão mencionado reconduz, por via de regra, a uma indefinição acerca da proveniência do rendimento, assentando pois numa perspetiva e num princípio de universalidade do rendimento, potenciando a internacionalização das relações jurídicas tributárias a que se encontra subjacente. O segundo elemento de conexão tem por objetivo a aplicação restrita do princípio da territorialidade, restringindo a tributação relativa ao rendimento, na medida em que apenas se reporta aos rendimentos que sejam produzidos num determinado e específico território[2].

Por força do que acima foi exposto, claramente surgem desafios para os Estados, na medida em que terão que combater as situações de dupla tributação, ao mesmo tempo que potenciam a sua política fiscal externa. Será isso que infra analisaremos.

Dos Desafios
O principal desafio que se apresenta por força da internacionalização da relação jurídica tributária, como atrás foi mencionado, advém do facto de que os Estados têm que criar uma política fiscal externa, potenciando-a, acompanhando assim uma crescente globalização económica, e salvaguardando simultaneamente a sua soberania em matéria de poder fiscal.

Tal política fiscal externa visa dois importantes objetivos: em primeiro lugar, visa-se a adequação do sistema fiscal à crescente internacionalização das empresas, com sede efetiva, assim sendo nacionais, de cada Estado, de forma a impedir que os rendimentos por estas gerados no estrangeiro sejam tratados de modo desvantajoso, em relação aos rendimentos que foram gerados no próprio território do Estado – incentivo à internacionalização das empresas nacionais, garantindo um tratamento equitativo em relação aos rendimentos que sejam de fonte nacional e internacional[3]. Em segundo lugar, a criação e potenciação da política externa fiscal de um Estado tem subjacente a intenção de incentivar o investimento estrangeiro no seu território, com as inegáveis vantagens que tal situação cria no próprio Estado, através da premissa de que não devem ser prejudicados os rendimentos de empresas estrangeiras no que diz respeito à repatriação dos rendimentos que tais empresas geraram em território do próprio Estado[4]. Ambos estes objetivos, no que ao Estado Português diz respeito, encontram consagração na Constituição da República Portuguesa, na medida em que o artigo 87.º da Lei Fundamental explicita que é dever do Estado assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, fomentando o equilíbrio empresarial, contrariando os monopólios económicos e reprimindo abusos de posição dominante.

No que concerne à concretização da política externa fiscal dos Estados, esta pode ser realizada através de duas formas de adoção de medidas: medidas internacionais – importante papel das Convenções contra a Dupla Tributação -, e medidas internas – internamente, a criação de medidas que façam frente à dupla tributação. Cumpre pois analisar cada um destes desafios colocados aos Estados, mais especificamente a Portugal, em separado, a fim de ser possível percecionar a sua vital importância na adequação fiscal à crescente globalização dos mercados.

Portugal goza de uma verdadeira política fiscal externa baseada fortemente em medidas internacionais, que se concretiza em larga escala na celebração de Convenções contra a Dupla Tributação[5]. Tais Convenções, celebradas entre um Estado e outro, impedem que suceda o que foi atrás mencionado, de haver mais do que um Estado a tributar, da mesma forma e na mesma medida, os mesmos impostos, às mesmas entidades. Portugal, querendo impulsionar as suas empresas a investir no estrangeiro, e querendo atrair investimento estrangeiro, tem vindo a seguir as recomendações provenientes da OCDE, mais precisamente do Comité dos Assuntos Fiscais, que estabelecem uma prioridade na celebração de Convenções contra a Dupla Tributação com Estados com um nível de desenvolvimento inferior aos que integram a OCDE, Convenções essas que se devem basear em diferentes métodos, sendo um deles o método do crédito de imposto fictício – em que se visa a neutralidade, já que tal método assenta na ideia de que o Estado de residência não irá deduzir os impostos que foram efetivamente pagos nos países onde o rendimento foi produzido, mas ao contrário deduz o que teria sido pago caso no país em desenvolvimento não existisse isenção ou uma clara beneficiação fiscal – não se vêm frustrados, deste modo, quaisquer incentivos ao investimento além-fronteiras. Assim, Portugal adotou a celebração das Convenções já referidas como método prioritário de internacionalização da sua política fiscal externa, celebrando-as quer com os países que constituem a União Europeia, com os países que fazem parte da OCDE, assim como com países histórica e culturalmente ligados a Portugal, tal como Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo-Verde, países estes que se encontram em desenvolvimento, pelo que se aplicará o que acima foi referido quanto ao método do crédito de imposto fictício e os restantes.

Ao que às medidas internas diz respeito, tendo em vista a efetivação de uma política fiscal externa, estas passam pela adoção de disposições internas de combate à dupla tributação. Também neste aspeto Portugal tem vindo a desenvolver, nos últimos anos, um leque de medidas que visam os dois principais objetivos da política fiscal externa. No que diz respeito, mais uma vez, aos impostos sobre o rendimento, Portugal adotou disposições em sede de IRC e IRS que permitem “colmatar” a falta de uma Convenção contra a Dupla Tributação celebrada com um país em específico, eliminando assim a discriminação fiscal negativa de empresas nacionais que se internacionalizem, e vice-versa – diga-se, empresas estrangeiras que invistam em Portugal -, valendo para tal as disposições previstas nos artigos 91.º do Código do IRC, e 81.º do Código do IRS[6]. Mas as medidas internas não se esgotam nestas duas situações, relativas aos impostos sobre os rendimentos, que visam os objetivos de internacionalização de empresas e a atração de investimento estrangeiro. Medidas de incentivo fiscal, no que concerne à internacionalização das empresas nacionais, têm também um importante papel, tal como se pode visualizar através da disposição do artigo 41.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais[7], ou da adoção de medidas como o “Crédito Fiscal Extraordinário para o Investimento”, que conferem claras vantagens aos projetos de internacionalização de empresas.

Em suma, a adoção de uma política fiscal externa pode reduzir as situações de dupla tributação que tendem a acentuar-se com a internacionalização das relações jurídicas tributárias, situação inevitável e cada vez mais habitual nos dias de hoje.

A Integração Fiscal Europeia

Definição e formas de ser alcançada
A integração fiscal europeia não pode ser nunca dissociada do conceito de harmonização fiscal. Quer-se com a integração fiscal europeia uma uniformização, ao nível da União Europeia, dos sistemas fiscais dos respetivos Estados-Membro. Tal situação limita a soberania dos Estados, pelo que deve ser realizada – a harmonização – em termos adequados e moldados à realidade própria da União Europeia. A integração fiscal europeia tem sido feita através da elaboração de Tratados e através de decisões tomadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia[8]. No que aos Tratados diz respeito, a sua elaboração tem tentado manter na esfera dos Estados-Membro a soberania do poder fiscal. Porém, as decisões do TJUE têm vindo a acentuar uma destruição dos sistemas fiscais nacionais, ao invés de se afirmarem como verdadeiros instrumentos de apoio à construção de um sistema fiscal único, e europeu, objetivo dos próprios Estados-Membro.

Cumpre pois explicar através de que instrumentos a doutrina, conjuntamente com o Tratado de Roma e a legislação da União Europeia, entende ser possível e adequado alcançar a integração. Refiram-se, pois, a coordenação política – na medida em que os Estados-Membro cooperariam politicamente em determinados setores da sua atividade, e não tanto em matéria legislativa -, a aproximação de legislações – objetivo de formação de uma base comum de disposições e princípios, para que os direitos Estaduais se tornem similares, a levar a cabo por via de Convenções ou Diretivas Comunitárias -, a harmonização tout court – objetivo de erradicar todas as disparidades que existam entre legislações nacionais, sem que se restrinja a competência em matéria legislativa dos Estados-Membro, o que é conseguido através da possibilidade destes terem à sua disposição um conjunto alargado de instrumentos para legislar a nível interno – e a uniformização – assente nos regulamentos comunitários, dos quais é exemplo o Código Aduaneiro Comunitário, que visam complementar as disparidades existentes entre as legislações de cada Estado-Membro.

Referindo-me agora à harmonização fiscal que tem vindo a ser efetuada em sede de União Europeia, esta resulta de um equilíbrio pré-estabelecido entre a necessidade de limitação das disparidades, em matéria fiscal, dos Estados-Membro, e entre a necessidade que estes últimos têm em salvaguardar a sua soberania fiscal. Para ser atingida, deve recorrer-se a uma harmonização jurídica – positiva ou negativa, consoante resulte, respetivamente, de instrumentos legislativos, ou de uma função de controlo, a ser levada a cabo pela Comissão Europeia, ou pelo TJUE – e a uma harmonização política – obtida através de Códigos de Conduta emanados pela União Europeia, como por exemplo, o Código de Conduta da Fiscalidades aplicável às empresas. A harmonização fiscal deve ter em conta não apenas os impostos sobre o consumo[9], onde se alcançou grande nível de harmonização, mas também os impostos diretos, contrariamente ao que parece previsto no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia[10], já que a harmonização fiscal deve ser vista como um meio que visa a eliminação dos obstáculos à livre circulação caraterística da União Europeia, relativa a mercadorias, pessoas, capitais e serviços, e tais obstáculos resultam não apenas dos impostos indiretos, mas também dos diretos, pelo que também relativamente a estes deve existir a harmonização fiscal. Tal tem vindo a ser desenvolvido pelo TJUE, ainda antes de sequer haver uma preocupação relativamente a tal assunto por parte dos órgãos legislativos da União, através de exigências claras, provenientes das suas decisões, relativas à não discriminação em função da nacionalidade[11] e às liberdades fundamentais. Assim, tem funcionado, o TJUE, como um legislador supranacional em matéria fiscal, pela via negativa. No que concerne à via positiva, como instrumentos de harmonização refiram-se as Diretivas do Conselho relativas a sociedades mães e sociedades afilhadas, a fusões, cisões, troca de ativos e permuta de ações, entre outras.

Deste modo, é possível afirmar que a integração fiscal europeia é manifestamente insuficiente, sendo que tal ponto crítico é o que de seguida será analisado.

Críticas à Harmonização Fiscal Positiva/Geral e à Harmonização Fiscal Negativa
A integração fiscal, tal como tem sido levada a cabo pelos órgãos da União Europeia, não é isenta de críticas. Para além de um parco investimento na integração fiscal positiva, acumulado com uma confusa integração fiscal negativa levada a cabo pelo TJUE, podemos referir um tímido e receoso avanço em matéria de harmonização fiscal.

Dividamos esta análise então em duas diferentes secções: a que diz respeito à harmonização fiscal geral/positiva, e a que se refere à harmonização fiscal que tem sido levada a cabo pelo TJUE.

Começando por analisar a harmonização fiscal positiva, geral, esta não tem tido o avanço que inicialmente se projetava, ao contrário dos avanços nas áreas políticas e económicas[12]. A perda de instrumentos de política monetária, por parte dos Estados-Membro, que implicou que os órgãos políticos e legislativos da União, em matéria fiscal, ficassem bloqueados, em muito contribuiu para tal situação. Isto porque os Estados-Membro “agarram-se” à sua soberania fiscal, depois de terem, de certo modo, “perdido” a sua política monetária. Mantém-se então a concorrência fiscal entre Estados-Membro da União Europeia, o que implica necessariamente que a harmonização fiscal fique comprometida, e à mercê do mercado – assim, não existirá equilíbrio e não vão ser supridas as disparidades existentes -, o que não permitirá alcançar uma verdadeira política fiscal a nível da União. A harmonização fiscal positiva, ou geral, de modo a ser alcançada com sucesso, impõe que os órgãos encarregues de legislar, por parte da União Europeia, sejam dotados de poderes representativos em relação aos contribuintes. Ora, tal não tem acontecido, já que a transferência do poder tributário para os órgãos da União, intergovernamentais, está distante de respeitar tal premissa. No entanto, tal necessidade relacionada com o auto-consentimento da matéria fiscal aos contribuintes não ganha, em sede de União Europeia, grande expressão, já que esta última tem apenas como destinatários das suas normas fiscais os próprios Estados-Membro, e apenas indiretamente os nacionais destes. Assim, terão que ser os Estados-Membro a continuar a concretizar tais pressupostos de auto-consentimento dos impostos aos seus contribuintes[13]. Acresce a isto que alguma doutrina, entre a qual se encontra José Casalta Nabais[14], entende que a União, em sede de harmonização fiscal positiva, apenas deve atuar quando existam situações de “direito económico fiscal”, na medida em que as situações de direito fiscal em si mesmas continuam a pertencer à esfera de soberania nacional e fiscal de cada Estado. Isto porque apenas as matérias fiscais que se relacionem diretamente com a economia e o mercado são suscetíveis de serem alvo de medidas comunitárias, já que os princípios da soberania fiscal dos Estados, da subsidiariedade e da atribuição assim o impõem. Uma excessiva “intromissão” comunitária na soberania de cada Estado conduziria, mais do que a harmonização, a uma desintegração da União, por força do afastamento económico e político de alguns Estados-Membro, e do colapso que tal situação acarretaria para a coesão social, que se quer, dos Estados-Membro da União Europeia.
Cumpre agora analisar a harmonização fiscal negativa, que tem sido levada a cabo, em larga escala, pelo TJUE. Este último, com caráter democrático manifestamente reduzido, quando comparado com os órgãos políticos e com competência legislativa da União Europeia, tem vindo, em sede de harmonização negativa em matéria fiscal, a eliminar aspetos fiscais, próprios de cada Estado, que se encontrem em contraposição ao direito comunitário. Refira-se que este papel que tem sido levado a cabo pelo TJUE encontra a sua razão no facto de que os órgãos que deveriam harmonizar fiscalmente em sede da União Europeia, têm vindo a revelar-se pouco operantes, se não mesmo inativos. Contudo, tal atuação do TJUE, que tem vindo a contrariar princípios que são a base de toda a construção da União Europeia, em matéria fiscal, encontra-se distante de ser comparada a práticas que conduzam ao federalismo europeu, contrariamente ao que sucede com as decisões dos tribunais superiores dos Estados que tenham estrutura federal. Pelo contrário, o TJUE em nada tem harmonizado, na sua atuação, a matéria fiscal na União Europeia, não conseguindo alcançar um equilíbrio de poderes que se exige entre os Estados-Membro. Tal seria o objetivo da sua atuação, lado a lado com a atuação de outros órgãos da União já referidos. Ao invés, tem baseado o TJUE a sua atividade na delimitação e, por vezes, destruição, de disposições próprias dos Estados-Membro, em matéria fiscal, reservadas que estão à sua esfera de soberania nacional, alegando para tal que tais disposições internas violam determinadas liberdades que devem ser asseguradas devido à existência do mercado interno. Tal “ataque” que o TJUE tem vindo a protagonizar aos sistemas fiscais dos Estados-Membro tem incidido quer sobre disposições internas dos próprios Estados, quer sobre as normas constantes de Convenções contra a Dupla Tributação, sendo que tal se deve à escassa legislação comunitária que opere a já referida harmonização positiva. De modo a que pudesse ser considerada positiva esta atuação do TJUE, seria necessário que após tal destruição dos sistemas fiscais nacionais, existisse uma ação construtiva, levada a cabo pelos órgãos que tenham competência para tal, da União Europeia, rumo à construção de um sistema comunitário supranacional uno e equilibrado, que não pode ser alcançado apenas pela via destruidora de determinadas normas nacionais próprias dos Estados-Membro, que o TJUE considere incompatíveis com as disposições comunitárias. Assim, a crescente pressão operada pelo TJUE, de modo a que os Estados-Membro fortaleçam, eles mesmos, as disposições de harmonização em matéria fiscal na União Europeia, pode considerar-se um fracasso, já que os Estados-Membro hoje apresentam sistemas fiscais repletos de “remendos”, confusos e excessivamente complexos, de modo a tentar dar resposta a uma harmonização fiscal negativa, levada a cabo através de decisões judiciais do TJUE sem qualquer coerência ou estabilidade, e em desrespeito pela soberania fiscal dos próprios Estados da União.
O TJUE tem-se refugiado, por regra, de modo a tentar abstrair-se da sua própria culpa no fracasso da sua atuação, em justificações não plausíveis e que não correspondem à realidade. Ora, um dos efeitos principais de tal atuação do TJUE, que se vem apresentando como uma espécie de legislador, embora sempre afastado da realidade prática que é a vida fiscal dos Estados-Membro, conjugada com a inatividade dos órgãos competentes da União Europeia para legislar em matéria fiscal, tem sido a perda de receita fiscal por parte de cada um dos Estados-Membro da União. Contudo, nem por os Estados-Membro se encontrarem numa posição de inferioridade em relação à que ocupavam anteriormente às alterações operadas nos seus sistemas fiscais internos por parte do TJUE, este último permite que sejam os próprios Estados a propor soluções internas para os seus próprios problemas, que restrinjam, ainda que minimamente, princípios que o Tribunal da União considere absolutamente invioláveis, como o são o princípio da não discriminação em função da nacionalidade do contribuinte, ou as liberdades que se assumem como fundamentais para a defesa do mercado interno da União Europeia, ainda que tais princípios limitem a esfera de soberania fiscal dos Estados e diminuam as suas receitas em sede de tributação. Tais limitações às disposições que o TJUE tem vindo a entender como intransponíveis e invioláveis não podem ser postas em causa pelos Estados, nem para salvaguarda da coerência dos sistemas internos em matéria fiscal. Para manter tal coerência, o TJUE tem concretizado alguns princípios em matéria fiscal, dando-lhes novos entendimentos que considera suficientes para que tal equilíbrio e coerência sejam alcançados de modo a não desrespeitar o direito da União Europeia. Entre estes, refiram-se, a título exemplificativo, uma abertura ao princípio da territorialidade que os Estados-Membro apliquem de modo a obterem receita fiscal, a necessidade de defesa efetiva dos atos de liquidação dos impostos, levada a cabo internamente, por parte dos Estados-Membro, entre outros. Tais soluções apresentadas pelo TJUE, de modo a que os Estados garantam parte dos seus interesses nacionais em matéria fiscal, encontram os seus limites e a sua razão de ser na avaliação que o TJUE realizou da preponderância entre os interesses nacionais dos Estados e os interesses comunitários da União, na medida em que apenas certos interesses dos primeiros justificam a derrogação, a limitação, do sistema comunitário, interesses esses que se encontram plasmados nas soluções pelo TJUE apresentados. Tais considerações do TJUE resultam de uma análise casuística assente no princípio da proporcionalidade[15]. No entanto, a doutrina, de forma maioritária, tem entendido que tal balanceamento entre os interesses nacionais e comunitários não justifica, por si só, uma parcial destruição dos sistemas fiscais nacionais, e por conseguinte, uma intromissão excessiva na soberania fiscal que os Estados-Membro reservam para si próprios.

No entanto, o TJUE atualmente, nos tempos mais recentes, tem vindo a demonstrar uma maior flexibilidade e abertura na sua forma de atuar enquanto órgão que leva a cabo a harmonização fiscal negativa. Assim, o TJUE tem “dado o braço a torcer” aos Estados-Membro quanto ao entendimento de que os fundamentos supra expostos são plausíveis de atenuar o modo como devem ser entendidos determinados princípios e preceitos da União Europeia, avaliação sempre dependente do recurso ao princípio que permite aferir da adequação e necessidade das próprias medidas, o princípio da proporcionalidade. Ainda assim verifica-se que tal flexibilização de entendimento conferido ao direito comunitário, por parte do TJUE, é proporcionalmente maior quando estejam em causa situações em que as disposições da União sejam postas em causa pelas Convenções contra a Dupla Tributação, o que manifesta uma não coerente flexibilização infelizmente caraterística da atuação do TJUE, pois tal grau de abertura devia existir quando estivessem em causa as soberanias fiscais dos Estados, que correspondem ao núcleo essencial constitutivo da União Europeia.

Tais modificações passíveis de serem analisadas à luz da mais recente atuação do TJUE, embora caminhem para um entendimento mais aceitável e harmonizador do que irrazoável e destruidor das soberanias fiscais dos Estados, caraterizam-se pela instabilidade e incerteza decorrentes das decisões que sejam proferidas pelo Tribunal em sede de harmonização fiscal negativa. Tal situação de desestabilização no que diz respeito aos entendimentos que têm sido conferidos a determinadas disposições comunitárias, em confronto com os interesses nacionais internos de cada Estado, pode apresentar consequências de todo indesejáveis, colocando em sério risco os sistemas fiscais caraterísticos de cada um dos Estados-Membro, assim como pode comprometer seriamente a tão desejada, mas não alcançada, harmonização comunitária em matéria fiscal. Senão vejamos, de modo a alcançar a segunda, e manter um saudável funcionamento do mercado interno da União, os Estados-Membro devem apresentar finanças saudáveis. Ora, de modo a alcançar tal imposição comunitária, é necessário que sejam os próprios Estados a recolher a sua receita fiscal, através de sistemas de fiscalidade autónomos, independentes, funcionais e eficientes, sendo que tal é também uma imposição derivada do direito da União Europeia. No entanto, esse mesmo direito exige que tais disposições internas, que organizam e colocam em funcionamento os sistemas fiscais de cada Estado-Membro, devem ser compatíveis com os preceitos comunitários relativos ao correto funcionamento do mercado interno. Assim, a soberania fiscal dos Estados, garantida e salvaguardada por via do direito derivado da União e de outros instrumentos internacionais, é afetada em resultado das exigências que a própria União impõe, numa amálgama de interpretações e preceitos que em nada beneficia nenhuma das partes – refira-se Estados-Membro e União Europeia. Deste modo, a União Europeia e o direito comunitário têm vindo a desrespeitar o pressuposto da estadualidade dos Estados-Membro, que constituem o núcleo central e pressuposto essencial da União, pressuposto esse que garante que são os próprios Estados que devem manter uma relação de fiscalidade e cidadania com os seus próprios contribuintes[16], como referi já anteriormente no presente relatório, o que origina como que uma usurpação de poderes operada pela própria União em relação aos Estados que a constituem, através do TJUE, órgão que deveria assegurar o equilíbrio entre o direito comunitário e os domínios do direito nacional de cada Estado-Membro que lhe estão a eles próprios reservados.

Em jeito de conclusão, apenas uma maior atividade em sede de harmonização fiscal positiva, por parte dos órgãos da União com competência para tal, retirará ao TJUE o protagonismo que este tem vindo a ter em sede de harmonização fiscal, pela via negativa, que tem resultado, pelos inúmeros fundamentos previamente expostos, numa desacertada, confusa e errónea atuação, que tem colocado em risco tanto os sistemas fiscais Estaduais, que deveriam ser salvaguardados, como a integração fiscal europeia, desejável mas para já ainda muito longe de ser alcançada. Uma delimitação acerca das matérias que devem ser transferidas para o domínio da União Europeia é imperiosa neste momento, de modo a clarificar e dar um rumo à integração europeia em matéria fiscal, pois apenas será possível realizar um verdadeiro suporte à política monetária da União Europeia, se existir uma política coerente e equilibrada a nível fiscal. Tal delimitação, na opinião do autor José Casalta Nabais, deve ter em conta que apenas uma pequena parcela de poder tributário deve ser transferida para o domínio do direito comunitário, mais especificamente a que respeita a disposições que limitem a incidência dos impostos em si mesmos, e que tudo quanto não esteja nessa parcela englobado, deve manter-se no poder maioritário que os Estados-Membro reservam para si mesmos, em matéria fiscal, com o objetivo final de manutenção de uma concorrência saudável e benéfica para a própria União Europeia em matéria fiscal, sempre atentando e impedindo distorções que comportem uma alteração negativa para a concorrência saudável que se deseja, que possa prejudicar as empresas que se encontram em território da própria União Europeia.



Maio de 2014


Por João Nuno Barros




[1] Cfr, a título exemplificativo, o artigo 13.º LGT.
[2] Alberto Xavier, “Direito Tributário Internacional”, ano de 2011, Almedina, 2.ª Reimpressão da 2.ª Edição atualizada, página 226 e seguintes.
[3]  Veja-se o artigo 100º, alínea e), da Constituição da República Portuguesa.
[4] Atente-se no artigo 87.º da Constituição da República Portuguesa.
[5]  Mais de sessenta celebradas por Portugal.
[6] Este último apenas em 2000 ganhou verdadeira força enquanto disposição de potenciação da política fiscal externa.
[7] Benefícios a nível fiscal para empresas nacionais que queiram investir além-fronteiras, assim como para empresas estrangeiras que queiram investir em território Português.
[8] Doravante designado TJUE.
[9]  Refira-se, a título exemplificativo, o IVA.
[10]  Cfr. os artigos 110.º a 113.º do TFUE.
[11]  Veja-se o artigo 18.º TFUE.
[12]  Refira-se, entre outros, o avanço que levou à adoção da moeda única.
[13]  José Casalta Nabais, “Introdução ao Direito Fiscal das Empresas”, Almedina, ano de 2013, página 91.
[14]  José Casalta Nabais, “O Dever Fundamental de Pagar Impostos – Contributo para a compreensão constitucional do Estado fiscal contemporâneo”, Almedina, ano de 2012, página 654 e seguintes.
[15]  João Félix Pinto Nogueira “Direito Fiscal Europeu – O Paradigma da Proporcionalidade”, Coimbra Editora, ano de 2010, página 255 e seguintes.
[16]  José Casalta Nabais, “Introdução ao Direito Fiscal das Empresas”, ano de 2013, Almedina, página 97.





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