As Marcas
Noção, espécies e funções
No que
respeita à noção de marca, importa dizer que esta se trata de um sinal (ou
signo)[1] suscetível
de representação gráfica, utilizado por forma a distinguir os produtos sobre os
quais incide, de outros produtos idênticos ou afins. A marca é, portanto, um
sinal distintivo, aposto no produto do seu titular, com o objetivo de
diferenciar o seu produto dos outros presentes no mercado.
Atento o
artigo 222º do Código de Propriedade Industrial (CPI), poderemos dizer que uma
marca se pode constituir não só em produtos, como em serviços, e que vai
permitir ao consumidor, aquando da aquisição, perceber as suas proveniências e,
ainda, os caracteres essenciais que os distinguem dos demais. Assim, facilmente
se constata que se poderá criar uma marca tanto sobre um bem corpóreo, como
incorpóreo, ou seja, sobre produtos corpóreos, mercadorias ou sobre serviços.
Quanto a este propósito, Miguel Pupo Correio elucida-nos ao referir que “não se pense que a natureza imaterial dos
serviços os torna insusceptíveis de ser marcados.”[2]
A constituição
de uma marca foi a forma encontrada pelas empresas para referenciar os seus
produtos ou serviços, distinguindo-os dos demais congéneres e possibilitando,
no seio das relações comerciais, não só um auxílio aos consumidores quanto às
suas escolhas, mas também favorecendo e protegendo as empresas no jogo da
concorrência. Surge-nos então a problemática de a lei se referir, no artigo
222º aos “produtos ou serviços de uma
empresa”. Ora, como alerta Coutinho de Abreu[3],
as marcas a constituir sobre determinados produtos ou serviços, não têm de ser
de uma empresa, podendo ser de mais do que uma empresa ou mesmo de uma
não-empresa. Isto é o que pode constatar do expresso no artigo 225º do CPI que
concede “o direito ao registo da marca
(…) a quem nisso tenha legítimo interesse, designadamente: a) aos industriais
ou fabricantes (…); b) aos comerciantes (…); c) aos agricultores e produtores
(…); d) aos criadores ou artífices (…); e) aos que prestam serviços (…[4]).”.
Assim,
verificámos que todos estes sujeitos se encontram legitimados para proceder ao
registo de uma marca sobre os seus produtos ou serviços. A extensão a estes
sujeitos dá uma maior segurança ao mercado, possibilitando aos consumidores
perceberem, através desse “sinal” a origem e as características de cada produto
aquando da escolha. Na verdade, são esses sinais distintivos que permitem aos
consumidores referenciar os produtos por um índice de qualidade e prestígio de
uma forma eficaz, retendo na memória a marca desses, sendo que, no caso de terem
ficado satisfeitos, além de posteriormente haver uma propensão a preferi-los
aos da mesma espécie, aquela também se verificará como um fator de publicidade
aos demais consumidores.
Apesar da
função distintiva da marca, na conceção tradicional, se reportar à indicação de
origem ou proveniência dos produtos, a verdade é que, hoje em dia, face à
redação do artigo 222º do CPI, torna-se mais claro que a sua função será a de
identificar o produto ou serviço em si mesmo e não a sua origem. Então, embora
esta deva continuar a ser reconhecida,
será apenas parte da sua função, já que nem sempre se encontra presente[5].
Deparámo-nos ainda com uma preocupação do
legislador, aquando da transmissão de marcas[6],
em permitir aos consumidores associarem os produtos não só à sua proveniência,
como também aos seus caracteres essenciais. De facto no artigo 262º do CPI,
vemos uma tutela concreta das perspetivas do consumidor ao considerar que o
registo das marcas apenas é transmissível “se
tal não for susceptível de induzir o público em erro quanto à proveniência do
produto ou do serviço ou aos caracteres essenciais para a sua apreciação”.
Surge assim a questão de saber se as marcas também têm uma função de garantia
de qualidade direta e autonomamente tutelada pelo direito. Apesar da
preocupação do legislador, a posição de Miguel Pupo Correia vai no sentido de
que “não se pode considerar, também, que
a função da marca seja a de garantia das qualidades do produto. O produtor pode
perfeitamente alterar as características do produto, mantendo-lhe a marca. E
não è obrigado a anunciá-la.”[7].
Coutinho de Abreu também se expressa quanto a esta questão, de uma forma mais fundamentada
e, no nosso entender, mais correta, ao responder que “há que ter em conta a al. b) do nº2 do art. 269º: o registo caduca se,
após a data em que o registo foi efectuado, ‘a marca se tornar susceptível de
induzir o público em erro, nomeadamente acerca da sua natureza, qualidade
e origem geográfica desses produtos ou serviços, no seguimento do uso feito
pelo titular da marca (…)’”[8].
O autor alerta, porém, que a lei não impõe uma perseverança qualitativa em
sentido estrito, sendo que sempre serão permitidas melhorias qualitativas, bem
como pioras não essenciais ou sensíveis dessa qualidade até então empregada.
Conclui, ainda, dizendo que “ilícitas
(conducentes à caducidade) são apenas as diminuições de qualidade susceptíveis
de induzir o público em erro, isto é, as deteriorações qualitativas sensíveis e
ocultas ou não declaradas ao público”[9].
Somo assim de aderir à posição apresentada por este autor ao defender que as
marcas cumprem também uma função de garantia de qualidade autonomizável da
função distintiva.
Percebido
de um modo geral o que se pode considerar por uma marca e os efeitos que esta
visa atingir no mercado, vejamos agora as espécies em que a mesma se pode
constituir.
Desde
logo, atendendo à natureza da atividade da qual surge o produto, podemos falar
de marcas de indústria, de comércio, de agricultura ou de serviços. Porém, no
que ao seu grafismo respeita, teremos marcas nominativas (constituídas por
elementos verbais escritos), marcas figurativas (formadas por elementos de
natureza desenhista ou figurativa), marcas mistas (comportam simultaneamente
elementos nominativos e figurativos), marcas plásticas, formais ou
tridimensionais (constituídas pela forma do produto ou da respetiva embalagem)
e, ainda, as marcas sonoras (compostas por sons representáveis graficamente).[10]
A
constituição da marca é, em princípio, livre, podendo o titular do interesse do
registo compô-la ao seu arbítrio, porém, a lei estabelece certas restrições e
princípios a ter em conta que regem a sua composição.
Desde
logo, a marca deve ser independente do produto, ou seja, não deve fazer parte
daquela qualquer elemento integrante do produto, devendo este estar completo,
funcional e esteticamente, antes de a receber. Em segundo lugar, como já antes
exposto, a marca deve ter uma eficácia distintiva, ou seja, deve ser capaz de
distinguir um produto de outros semelhantes, como nos refere o art.223º nº 1
al. a) e o art.238º nº 1 als. b) e c). Quanto a este requisito, saliente-se que
os sinais exclusivamente específicos, descritivos ou genéricos, carecem de
eficácia distintiva. Depois, e em terceiro lugar, atento o disposto no art.239º,
emerge também uma exigência de veracidade das marcas que revistam certas características,
sendo que, por exemplo, deverão ser verídicas as referências que a marca
porventura contenha acerca da natureza, qualidade, utilidade ou proveniência
dos produtos. O quarto requisito resulta das als. a), b) e c) do nº 4 do
art.238º, que preveem uma salvaguarda de direitos de terceiros, da especial consideração
devida a certos sinais e da salvaguarda da ordem pública. Estamos face a uma
exigência de licitude em sentido amplo, na medida em que se pretende tutelar
interesses de ordem pública. Por fim, vem a exigência da verificação do
princípio de novidade ou de exclusividade da marca. Este princípio impõe que a
marca a registar não seja uma “reprodução
ou imitação no todo ou em parte de marca anteriormente registada por outrem,
para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou
confusão o consumidor ou que compreenda o risco de associação com a marca
registada[11]”.
Quanto a este princípio, é de notar que a concessão do registo de uma marca
confundível com outra anteriormente registada até pode ser admissível porém,
apenas nos casos em que houver uma autorização do titular do registo da marca.
A transmissibilidade do direito de marca
Sistemas de transmissão de marca
Como
podemos constatar do regime dos artigos 262º e seguintes do CPI, o direito de
marca é passível de ser transmitido, já que, como nos refere Maria Miguel
Carvalho, “a concessão de um direito subjectivo absoluto relativamente a este
sinal permite que o seu titular o negoceie[12]”.
O conceito de transmissão da marca pode ser compreendido numa conceção mais
ampla ou mais estrita. Furtando as palavras de Luís M. Couto Gonçalves, “a transmissão da marca, em sentido amplo,
designa, por regra o efeito comum a um conjunto de actos jurídicos, de tipo
contratual ou não contratual, a título oneroso ou gratuito, pelos quais se
transfere a propriedade da marca[13]”.
Assim, podemos verificar que a transmissão da marca em sentido amplo poderá
decorrer tanto de um contrato de compra e venda, como de uma doação, permuta ou
mesmo por via testamentária.
Por seu
turno, “em sentido estrito, o conceito de
transmissão liga-se, na prática, usualmente, ao efeito do contrato de compra e
venda da marca[14]”,
o que consiste na cessão da titularidade do direito do cedente para o
cessionário através de um contrato de compra e venda, ficando de fora todas as
demais formas de cessão da marca.
Por
forma a entendermos o regime atual da transmissão de marca, há que salientar
que no seu percurso legislativo, foram surgindo ao longo dos tempos diferentes
sistemas da sua transmissão, acolhidos de uma forma distinta pelos vários
ordenamentos jurídicos conforme os interesses que esses pretendiam tutelar, se,
por um lado, os dos consumidores, ou, por outro, os dos titulares do direito da
marca. Pois, se de facto se compreende que esses titulares pretendam transmitir
livremente as suas marcas explorando o valor das mesmas até ao seu limite, não
se poderá olvidar que essa transmissão pode, em determinadas circunstâncias,
conduzir os consumidores a situações de erro.
Um dos
referidos sistemas, trata a transmissão da marca de uma forma vinculada e surge
logo com as primeiras normas industriais. Com efeito, neste sistema, a cessão
do direito de marca só será possível se juntamente com esta se transmitir também
o estabelecimento ou o goodwill[15]
a que esteja conexa. Então, este direito apenas será transmissível para o
cessionário se conjuntamente com ele se transmitir a estrutura organizativa,
composta por bens e direitos destinados ao exercício dessa atividade, ou,
ainda, os elementos de natureza imaterial diretamente ligados ao
desenvolvimento do negócio que valorizam a reputação do estabelecimento[16].
A
transmissão da marca juntamente com o goodwill
é o sistema que vigora no direito norte-americano, no qual, de acordo com Maria
Miguel Carvalho “a marca não pode ser
cedida sem o goodwill que a mesma simboliza, sob pena de o negócio ser inválido
e de poder conduzir ao cancelamento da marca cedida se for usada para deturpar
a origem do produto marcado.” Refere a autora ainda que, “além disso, a transmissão da marca sem o
goodwill correspondente pode levar ao «abandono» da marca cedida”[17].
Ora,
apesar desta exigência legal nos sistemas de cessão vinculada da marca, devemos
salientar que a sua aplicação pelos tribunais se verificou mais ténue, levando
a decisões que reputaram válidas algumas transmissões de marcas sem que
ocorresse estritamente a transmissão da empresa ou estabelecimento. Assim, e
conforme atenta Maria Miguel Carvalho, a aplicação deste sistema “passou por uma interpretação muito flexível
da transmissão da empresa, sendo considerada suficiente a transmissão de um
ramo desta[18]”.
Na verdade, a evolução que se verificou nestes sistemas de transmissão
vinculada, foi o afastamento desta conceção e uma aproximação aos sistemas de
transmissão autónoma. Apesar de no direito norte-americano ainda vigorar o
sistema da cessão da marca vinculada à transmissão do goodwill, a interpretação
dessa regra, com o passar dos anos, tem vindo a ser mais expandida, tanto mais
que, nos dias de hoje, só se o uso da marca pelo adquirente for suscetível de
confundir o público é que será declarada a invalidade da transmissão. Temos ainda
o exemplo italiano, país que também consagrava o princípio da transmissão
vinculada e que, em 1992, com o “Decreto Legislativo 4 dicembre 1992, n. 480”
veio estabelecer a possibilidade da cessão da titularidade da marca independentemente
da transmissão da empresa, porém, com um novo limite, o da proibição de engano
dos consumidores. É este princípio, consagrado a favor dos consumidores com o
intuito de os proteger de serem induzidos em erro, que vem trazer uma mudança
no seio dos sistemas de transmissão de marcas.
Podemos
constatar, assim, como refere Maria Miguel Carvalho, “o declínio do sistema de transmissão vinculada da marca a favor de um
sistema livre de transmissibilidade e, em menor número, de sistemas mistos”[19].
Ora, o
sistema hoje generalizado é o da transmissibilidade das marcas
independentemente da transmissão das respetivas empresas. Este princípio da
livre transmissibilidade da marca já era acolhido pela legislação portuguesa
anterior à entrada em vigor do CPI de 1940, no CPI de 1940[20]
e, também, no de 1995[21] em que a
lei consagrava este sistema. Contudo, deve-se alertar que este não é um sistema
livre em sentido estrito já que se verificam algumas limitações que visam
tutelar a posição dos consumidores.
Ora,
tais limitações foram também acolhidas pelos vários ordenamentos que preveem o
sistema de livre transmissão, tendo criado instrumentos com o fim de afastar
situações enganosas, o que demonstra uma aproximação entre os dois sistemas,
que veio dar origem a um outro designado por sistema misto ou híbrido. Segundo
este sistema, não se exige que com a marca se transfira o estabelecimento,
podendo esta transmitir-se isoladamente, contudo, este impõe determinados
limites e requisitos que têm de estar cumpridos visando, desse modo, o
afastamento de situações enganosas para os consumidores. Isto é o que resulta
do nº 1 do art. 262º quando refere que o registo das marcas só será
transmissível “se tal não for suscetível
de induzir o público em erro quanto à proveniência do produto ou do serviço ou
aos caracteres essenciais para a sua apreciação”..
Temos,
então, na nossa ordem jurídica a adoção de um sistema de cessão misto que, como
refere Luís M. Couto Gonçalves, “se, por
um lado, não impõe uma cessão vinculada da marca ao estabelecimento, também não
permite uma livre cessão da marca sem limitações, pois condiciona-a à
observância do princípio da verdade da marca.[22]”
Como já antes vimos aquando das restrições e princípios a ter em conta para a
constituição de uma marca, este princípio da veracidade exige que sejam
verídicas as referências que a marca contenha acerca da natureza, qualidade,
utilidade ou proveniência do produto. Ou seja, o legislador impõe o requisito
da não suscetibilidade do erro, seja esse erro reportado à proveniência dos
produtos ou serviços, seja esse erro reportado aos seus caracteres essenciais.
Podemos
assim concluir que o nosso CPI prevê um sistema misto que não estabelece uma
dependência da transmissão da empresa para que se possa transmitir a marca, porém,
para que esta se possa transmitir livremente, nunca poderá induzir o público em
erro.
Harmonização da legislação sobre marcas na União Europeia
Dada a
diferença de regimes que se verificava na União Europeia, foi adotada pelo
Conselho de Ministros a Directiva 89/104/CEE, de 21 de dezembro de 1988, com o
objetivo de estabelecer um tratamento uniforme nos seus Estados-membros quanto
à aquisição e conservação do direito sobre uma marca registada. A Directiva
vinha, então, determinar os sinais suscetíveis de constituir uma marca, os
motivos de recusa ou nulidade do seu registo, os direitos que tal registo
comporta bem como os respetivos limites e, ainda, o regime das licenças de uso
de marca e caducidade do registo. Quanto à transposição desta Directiva para o
ordenamento jurídico português, apenas se veio a verificar com o CPI de 1995.
Importa
ainda destacar o Regulamento nº 40/94 do Conselho, de 20 de dezembro de 1993,
que veio instituir o regime da marca comunitária, regime este com carácter
unitário, em que as marcas gozam de proteção uniforme e os seus efeitos se
produzem em todo o território da União. Com este Regulamento, as marcas passam
a ser consideradas, para todo o território da U.E., como marcas nacionais
registadas nos territórios dos Estados-membros em que o seu titular estiver
domiciliado ou estabelecido. Por fim, será de referir que o seu registo é
efetuado através de um único pedido e um só processo, da competência do
Instituto de Harmonização do Mercado Interno.
Modalidades de Transmissão
O Código
da Propriedade da Industrial consagra a possibilidade de transmissão
desvinculada da marca (art. 262.º, nº1). Não se trata de uma transmissão
inteiramente livre pois, a transmissão independentemente do estabelecimento só
terá lugar “ se tal não for susceptível de induzir o público em erro quanto à
proveniência do produto ou do serviço ou aos caracteres essenciais para a sua
apreciação”.
O
ordenamento português adoptou um sistema de cessão híbrido, por um lado, não
impõe uma cessão vinculada da marca ao estabelecimento também não permite uma
livre cessão da marca sem limitações, condicionando-a à observância do princípio
da verdade da marca.[23]
Há um
requisito para a validade da transmissão, a não susceptibilidade de erro, seja
ele reportado à proveniência dos produtos ou serviços, seja o erro reportado
aos caracteres dos produtos essenciais ou serviços.
Acerca
do erro sobre a proveniência, significa isto que há necessidade de o consumidor
não ser enganado quanto ao facto de ter ocorrido uma mudança de
estabelecimento. “(…), quando a marca, pela sua própria composição, exprime uma
relação ou ligação do produto” (p.ex. a
marca contém a indicação do nome do estabelecimento e reprodução do seu emblema
ou a firma do respectivo proprietário), “ não será possível a sua transmissão
isolada”[24].
A
segunda modalidade de erro traduz a necessidade de o público não ser enganado quanto
aos caracteres essenciais para a apreciação dos produtos ou serviços.
A
transmissão pode ser total ou parcial em relação aos produtos ou serviços
registados (arts.31º, n.º1 e 262º, n.º2 do CPI).
Transmissão de marca registada e transmissão de pedido de
registo de marca
O
objecto da transmissão de marca pode ser a marca registada ou o pedido de
registo de marca (arts. 31º, nºs 1 e 2; 262º, nºs 1 e 3; CPI e arts. 17º e
24ºRMC.
No
último caso referido, o pedido de registo confere uma simples expectativa de
direito, ou seja, só se o direito vier a ser concedido é que estaremos perante
um direito pleno.[25]
Transmissão total e transmissão parcial
A
transmissão pode referir-se a todos ou a parte dos produtos ou serviços para os
quais a marca está registada (arts.31º, nº1, e 262º, nº2, CPI e art.17º,nº1,
RMC).
A cessão
parcial pode ser problemática, pensemos no caso de o cessionário continuar a
ter direito sobre a marca relativamente a produtos ou serviços idênticos ou
afins daqueles para os quais a marca foi cedida, uma vez que o risco de
confusão e de engano para os consumidores é considerável.[26]
Caso o
cedente continue a usar a mesma marca para distinguir produtos ou serviços
idênticos ou afins aos do cessionário, a função distintiva da marca na maior
parte dos casos será posta em causa.
De outra
forma, na medida em que o público possa ser enganado relativamente à qualidade
dos produtos ou serviços oferecidos por cada um, a marca pode converter-se num
sinal enganoso. Por isso, alguns autores defendem que a transmissão parcial
somente deverá ser admitida para produtos ou serviços não semelhantes.
Contudo,
há uma parte da doutrina que sustenta que a possibilidade de ser criado um
risco de confusão não deverá ser motivo para impedir a cessão, por existirem
meios legais próprios para actuar se existir a susceptibilidade de indução em
erro, quer por ser frequente que as partes recorram aos “acordos de delimitação
de uso” a fim de evitar o risco de engano dos consumidores.[27]
De
frisar que a transmissão de marca por acto inter-vivos deve ser feita por
escrito (art.29º nº3 CPI) e deve ser registada no INPI para produzir efeitos em
relação a terceiros (art. 31º nº1 CPI). A transmissão pode também incidir sobre
o pedido de registo (art.211º nº2 in fine).
No caso de transmissão da marca, transmite-se a propriedade sobre um bem
material, no caso da transmissão do pedido, transmite-se uma posição jurídica
no processo de obtenção do registo de um bem imaterial.[28]
Transmissão onerosa e transmissão gratuita
A
transmissão da marca pode efectuar-se a título gratuito ou oneroso (art.31º
n.º1 do CPI).
Transmissão de marca registada não previamente usada
A
transmissão de uma marca registada, mas que ainda não foi usada pode originar
problemas, nomeadamente no que respeitar à teoria das funções jurídicas da
marca. Refere sobre este tema Luís M. Couto Gonçalves “(…) a aquisição da marca
não usada se justifica, essencialmente, nos casos em que está a ser usada pelo
transmitente em relação a outros produtos ou serviços, isso significa que não
pode estar liminarmente afastado o risco de erro sobre a proveniência”[29], impondo
a adopção de medidas pelas partes que evitem a susceptibilidade de engano.
Requisitos para a transmissão de marca
Requisito
substancial: insusceptibilidade de indução do consumidor em erro.
O CPI e
o RMC impõem como único requisito substancial, para a transmissibilidade das
marcas a proibição de engano do consumidor (art.262º nº1, in fine, e art.17º, n.º4, RMC). Tratando-se de um requisito de
validade pelo que se não for respeitado o contrato de transmissão, é nulo não
se transmitindo a titularidade da marca, sendo diferente quanto ao âmbito de
aplicação.
No
artigo 262º, nº1 do CPI, está estabelecido que o engano pode ter por objecto
quer a proveniência dos produtos ou serviços marcados, quer os caracteres
essenciais para a apreciação desses por parte do consumidor. Já no artigo 17º
nº4, RMC o elenco referente ao objecto de engano é exemplificativo e são
referidas expressamente outras hipóteses, tal como a natureza, a qualidade ou
proveniência geográfica dos produtos ou serviços para os quais foi registada.
Atendendo
à ratio legis destas normas será
preferível um elenco exemplificativo, contudo o CPI não o faz, incluindo um
conceito indeterminado (“caracteres essenciais para a sua apreciação”) que
permite abarcar tanto a natureza, a qualidade, a proveniência geográfica ou
outros aspectos que sejam relevantes na decisão económica dos consumidores.
No
entanto, a causa de engano para a aplicação destas normas surge mais clara no
RMC, referindo expressamente como causa a transmissão (“devido a essa
transmissão”). Está prevista também no RMC a hipótese de sanação do impedimento
pela limitação do registo aos produtos ou serviços para os quais a marca não
seja enganosa, em coerência com as disposições relativas ao impedimento
absoluto de registo aos produtos ou serviços para os quais a marca não seja
enganosa.
No
ordenamento português tal não sucede relativamente à transmissão da marca,
porém alguma doutrina entende que, atendendo aos argumentos sistemáticos (a
propósito do registo de sinal originário ou supervenientemente enganoso está
prevista, de forma expressa, a recusa, a nulidade ou a caducidade parcial) e
teleológico ( a razão de ser do requisito substancial exigido para a
transmissão da marca), o art. 262º, n.º1 do CPI, deverá ser interpretado de
forma a avaliar que a transmissão só não será válida em relação aos produtos ou
serviços para os quais é susceptível de induzir em erro.[30]
Atendendo
à causa do engano, podemos dizer que os casos normalmente têm a ver com a
susceptibilidade de indução em erro quanto à proveniência e com outros
caracteres essenciais para a apreciação dos produtos ou serviços.
Quanto à
proveniência é habitual se dar a título exemplificativo os casos em que a marca
contém uma indicação relativa à proveniência empresarial do produto/serviço
marcado, sendo a marca transmitida independentemente daquela empresa.
Relativamente
à insusceptibilidade de indução em erro quanto aos caracteres essenciais para a
apreciação do produto ou serviço marcado está em causa evitar que após à
transmissão da marca, o cessionário proceda a alterações depreciativas,
relevantes e não divulgadas ao público, nos produtos ou serviços marcados.
Para
saber os caracteres essenciais para a apreciação dos produtos ou serviços
marcados é preciso fazer uma interpretação casuística, mas como linha
orientadora é importante ter sempre em conta os aspectos que sejam susceptíveis
de influenciar a decisão económica de compra do consumidor.
Parte da
doutrina, entende que o cessionário deve manter os caracteres essenciais
durante um de tempo razoável após a cessão. Entre nós, a posição de Luís M.
Couto Gonçalves sustenta que relativamente à repercussão quanto à teoria das
funções jurídicas da marca, apoia este que esta norma não é a expressão da
protecção jurídica directa e autónoma de uma função de garantia e qualidade,
representando um afloramento do princípio da verdade.
No
entanto para Maria M. Carvalho, tal obrigação a existir só poderia resultar do
facto de o cessionário ter adquirido a marca. Assim, “o engano adveniente
destes casos será motivado não pela transmissão da marca, mas pelo uso que for
feito da marca supervenientemente ao seu registo, pelo que revelaria, quando
muito, para efeitos de eventual caducidade do registo por deceptividade
superveniente se se verificassem os respectivos pressupostos”.[31]
Requisitos Formais
Para
além do requisito substancial, a transmissão está sujeita a requisitos formais,
respeitando estes a forma e publicidade do negócio.
Forma escrita
A cessão
da marca, deve ser provada por escrito como consta do artigo 3º, nº6 do CPI.
Contudo, se houver inobservância de forma escrita não acarreta, necessariamente
a nulidade do negócio. Refere a este assunto J.P. Remédio Marques que esta
exigência “traduz uma formalidade ad
probationem, em que a finalidade tida em vista na formulação de certa
exigência de forma na externação das declarações negociais foi apenas a de
obter prova segura da realização do acto
jurídico”.[32]
No RMC
no art.17, n.º3 diz “ sem prejuízo do disposto no nº2, a cessão da marca
comunitária deve ser feita por escrito e requer a assinatura das partes
contratantes, salvo se resultar de sentença”, cominando a sua inobservância com
a nulidade da cessão. Esta exigência é aplicável independentemente de a lei
nacional que regula a transmissão da marca não impor uma forma para este
negócio, ora, teoricamente podem ocorrer resultados paradoxais, consoante o
contrato de transmissão celebrado entre as mesmas partes, respeite a marcas
comunitárias ou nacionais.
Averbamento ou inscrição no registo
Por ser
oponível a terceiros, a cessão tem de ser averbada no processo ( e no título
caso exista) pelo INPI (arts. 30º, nº1, al a), e nº6 CPI) ou, no caso de marca
comunitária, inscrita no registo junto do IHMI (art 17º, nºs 5 e 6 RMC).
Tal
averbamento, ou inscrição no registo, junto com a publicidade efectuado no BPI
(art. 30º nº7, CPI) ou na parte C do BMC (art. 17º nº5, RMC e Regras 84, nº3,
al. g), e 85, nº2, RE), consoante a marca for nacional ou comunitária,
justifica-se isto pelo facto de a transmissão decorrer do acordo das partes,
podendo não ser conhecida de terceiros, impõe-se tal pela segurança jurídica, a
necessidade de a publicitar.
O
averbamento da transmissão de maca nacional pode ser requerido tanto pelo
cessionário como pelo cedente (art, 30º, nº4, CPI), se for requerido pelo
cedente, é exigida a assinatura do cessionário no documento que comprova a
cessão da marca ou a apresentação de uma declaração de que aceita a transmissão
(art.31º, nº6, CPI). O pedido de averbamento é feito mediante o preenchimento
do chamado formulário M4, que se encontra disponível no sítio do INPI: www.inpi.pt, acompanhado do documento
comprovativo da transmissão e, se for o caso, das autorizações, obrigando assim
ao pagamento de uma taxa que varia entre os 100€ e os 125€.
No que
toca ao pedido de inscrição de transmissão de marca comunitária será preferível
o preenchimento de um formulário disponibilizado pelo IHMI sendo também assinado
por ambas as partes ( Regras 31, nº1 d), nº5, e 83, nº1 d) do RE). Desde 25 de
Julho de 2005, a inscrição no registo da transmissão de marca comunitária não
obriga ao pagamento de qualquer taxa.
Modo de Controlo da verificação do requisito substancial
A
entidade competente para a tramitação dos pedidos de averbamento ou inscrição
de cessão é a Direcção de Marcas e Patentes do INPI e a Divisão de Admissão de
Marcas e de Questões Jurídicas, para a marca nacional e comunitária
respectivamente.
Ao exigi-ser
a documentação referida, o averbamento/inscrição só será analisado se forem
apresentadas provas suficientes da cessão da marca. Contudo o modo de controlo
da verificação do requisito substancial é diferente consoante se trate de marca
comunitária ou nacional.
Caso
seja comunitária, o IHMI não analisa a cessão propriamente dita, contudo, se
dos documentos que estabelecem a transmissão resultar manifestamente que,
devido a essa transmissão, a marca comunitária poderá induzir o público em
erro, em princípio, o registo será recusado (art. 17º, nº4, RMC).
Se
estivermos perante transmissão de marca nacional compete ao INPI proceder ao estudo do processo de averbamento
da cessão de forma verificar se os requisitos de que esta depende se verificam,
sem que seja estabelecida legalmente a exigência de o fazer apenas nos casos em
que tal decorra manifestamente dos documentos apresentados.
A
susceptibilidade de indução em erro pode ser detectada no momento do pedido do
averbamento da transmissão, contudo tal só acontece em poucos casos,
nomeadamente em situações em que a marca contém uma referência, p.ex. , ao
local de proveniência do produto, sendo que o cessionário não exerce nesse
local a actividade de que resulta o produto marcado.
Poderá
surgir a questão se nos casos em que não resulte de modo evidente dos pedidos
documentos apresentados com o pedido de averbamento da cessão da marca que, por
causa desta, haverá susceptibilidade de induzir o público em erro, nesse caso,
o INPI deve proceder a uma investigação detalhada no sentido de determinar se
se cumpre o requisito de validade de transmissão da marca.
Ora,
tendo em conta que o INPI é um instituo público, este fica sujeito às
disposições do CPA, e o processo de averbamento da transmissão de uma marca
registada, apesar de ser um procedimento administrativo especial, também este
fica subordinado aos princípios gerais da actividade administrativa constantes
do CPA, mas também o fica em relação às normas que nesse Código “concretizam
preceitos constitucionais”, quer ainda no âmbito da actividade de gestão
pública, às próprias regras de direito substantivo sobre a organização e
actividade administrativas aí inscritas (CPA, artigo 2º, nºs 5, 6 e 7).
Estabelece
o CPA o principio do inquisitório relativamente ao procedimento administrativo
comum (artigo 56º CPA), segundo o qual “os órgão administrativos, mesmo que o
procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, podem proceder às
diligências que considerem convenientes para a instrução, ainda que sobre matérias
não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados (…)”.
Contudo,
na opinião de MARIA MIGUEL CARVALHO, numa situação ideal, seria defensável a
mais ampla intervenção possível do INPI antes do averbamento, todavia se se
exigisse a actuação do INPI mesmo nos casos onde não decorra de forma manifesta
do documento comprovativo da transmissão da marca que a mesma é susceptível de
induzir em erro, paralizando rapidamente a actividade daquele instituto, com
todos os inconvenientes daí resultantes. Por outro lado, o facto de poderem
escapar ao controlo do INPI, não impede que a transmissão seja nula, por violar
disposição legal imperativa (arts. 262 nº1, CPI e 294 CC).[33]
Efeitos da transmissão
A
transmissão da marca ocorre como efeito imediato do contrato de cessão, sendo
que a inscrição da cessão no registo tem efeitos meramente declarativos e
funciona como requisito de oponibilidade a terceiros (art.17º RMC e os nºs 2 e
3 do art. 30º CPI). Ora, como consequência da transmissão, o cessionário passa
a ter todos os direitos e obrigações decorrentes do registo (ou do pedido do
registo) da marca, existentes à data da cessão.
Por André Lages e Rui Aires Pereira
Maio de 2014
[1] Expressão utilizada por autores
como Coutinho de Abreu, COUTINHO de ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 364
[2] MIGUEL PUPO CORREIA, “Direito
Comercial”, p. 347
[3] COUTINHO de ABREU, “Curso de
Direito Comercial”, p. 365
[4] O legislador ao utilizar a
expressão “designadamente” dá a entender que estes sujeitos são apenas alguns
exemplos, possibilitando, sim, o registo de uma marca a todos que nisso tenham
legítimo interesse.
[5] Isto porque, como nos exemplifica
Coutinho de Abreu quanto a esta função de origem, “ela falha claramente nas marcas colectivas de certificação (cfr.
art.230º do CPI, bem como nos casos em que é legítimo dois ou mais sujeitos não
ligados por quaisquer relações jurídico-económicas usarem a mesma marca para
produtos idênticos ou semelhantes”, COUTINHO DE ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 373
[6] Artigos 262º e seguintes do
Código de Propriedade Industrial
[7] MIGUEL PUPO CORREIA, “Direito
Comercial”, p. 348
[8] COUTINHO DE ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 378
[9] COUTINHO DE ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 378
[10] Aderimos aqui à posição de Miguel
Pupo Correia. Porém, saliente-se que outros autores como Coutinho de Abreu
elencam um maior número de espécies das que aqui consideradas.
[11] Cfr. al. a) do nº1 do art. 239º
[12] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de
Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 477
[13] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Função Distintiva da Marca”, p. 176
[14] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Função Distintiva da Marca”, p. 178
[15] Temos por goodwill, o património da marca em sentido amplo, o valor de
mercado de um negócio que não é diretamente atribuível aos seus ativos ou
passivos, refletindo, sim, a capacidade da entidade produzir um lucro mais
elevado do que aquele que parte da utilização somente dos seus ativos.
[16] Temos por elementos de natureza
imaterial os bens intangíveis, como por exemplo, o bom nome, a clientela, a boa
reputação nos meios empresariais, entre outros.
[17] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de
Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 477,
nota 8
[18] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de
Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 479
[19] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de
Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 481
[20] Artigo 118º nº 1
[21] Artigo 211º nº 2
[22] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Função Distintiva da Marca”, p. 179
[23]LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Manual de Direito Industrial” p.293.
[24] FERRER CORREIA, “Lições de Direito Comercial” p.348
nota 1. através de LUÍS M. COUTO
GONÇALVES, “Manual de Direito Industrial”
[25] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de
Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 483
[26] FERNÁNDEZ-NÓVOA, “Tratado
sobre Derecho de Marcas” p. 538 através
de MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão
e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito
Industrial”
[27] AUTERI, Paolo in
“Cessioni e licenza di marchio” p.102 e ss. através de MARIA MIGUEL
CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de
Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito
Industrial”
[28] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Função Distintiva da Marca”, p. 193
[29] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, in “Manual de Direito Industrial” p351.
[30]MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de
Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 487
[31] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de
Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p.488
[32] J.P REMÉDIO MARQUES in “Licenças (voluntárias e obrigatórias) de
direitos de propriedade industrial” p.19 e ss. através de MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de
Direito de Autor e de Direito Industrial”
[33] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de
Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 493.
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