quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A Transmissão do Direito de Marca





As Marcas
Noção, espécies e funções
No que respeita à noção de marca, importa dizer que esta se trata de um sinal (ou signo)[1] suscetível de representação gráfica, utilizado por forma a distinguir os produtos sobre os quais incide, de outros produtos idênticos ou afins. A marca é, portanto, um sinal distintivo, aposto no produto do seu titular, com o objetivo de diferenciar o seu produto dos outros presentes no mercado.

Atento o artigo 222º do Código de Propriedade Industrial (CPI), poderemos dizer que uma marca se pode constituir não só em produtos, como em serviços, e que vai permitir ao consumidor, aquando da aquisição, perceber as suas proveniências e, ainda, os caracteres essenciais que os distinguem dos demais. Assim, facilmente se constata que se poderá criar uma marca tanto sobre um bem corpóreo, como incorpóreo, ou seja, sobre produtos corpóreos, mercadorias ou sobre serviços. Quanto a este propósito, Miguel Pupo Correio elucida-nos ao referir que “não se pense que a natureza imaterial dos serviços os torna insusceptíveis de ser marcados.”[2]

A constituição de uma marca foi a forma encontrada pelas empresas para referenciar os seus produtos ou serviços, distinguindo-os dos demais congéneres e possibilitando, no seio das relações comerciais, não só um auxílio aos consumidores quanto às suas escolhas, mas também favorecendo e protegendo as empresas no jogo da concorrência. Surge-nos então a problemática de a lei se referir, no artigo 222º aos “produtos ou serviços de uma empresa”. Ora, como alerta Coutinho de Abreu[3], as marcas a constituir sobre determinados produtos ou serviços, não têm de ser de uma empresa, podendo ser de mais do que uma empresa ou mesmo de uma não-empresa. Isto é o que pode constatar do expresso no artigo 225º do CPI que concede “o direito ao registo da marca (…) a quem nisso tenha legítimo interesse, designadamente: a) aos industriais ou fabricantes (…); b) aos comerciantes (…); c) aos agricultores e produtores (…); d) aos criadores ou artífices (…); e) aos que prestam serviços (…[4]).”.

Assim, verificámos que todos estes sujeitos se encontram legitimados para proceder ao registo de uma marca sobre os seus produtos ou serviços. A extensão a estes sujeitos dá uma maior segurança ao mercado, possibilitando aos consumidores perceberem, através desse “sinal” a origem e as características de cada produto aquando da escolha. Na verdade, são esses sinais distintivos que permitem aos consumidores referenciar os produtos por um índice de qualidade e prestígio de uma forma eficaz, retendo na memória a marca desses, sendo que, no caso de terem ficado satisfeitos, além de posteriormente haver uma propensão a preferi-los aos da mesma espécie, aquela também se verificará como um fator de publicidade aos demais consumidores.

Apesar da função distintiva da marca, na conceção tradicional, se reportar à indicação de origem ou proveniência dos produtos, a verdade é que, hoje em dia, face à redação do artigo 222º do CPI, torna-se mais claro que a sua função será a de identificar o produto ou serviço em si mesmo e não a sua origem. Então, embora esta deva continuar a ser reconhecida, será apenas parte da sua função, já que nem sempre se encontra presente[5].

 Deparámo-nos ainda com uma preocupação do legislador, aquando da transmissão de marcas[6], em permitir aos consumidores associarem os produtos não só à sua proveniência, como também aos seus caracteres essenciais. De facto no artigo 262º do CPI, vemos uma tutela concreta das perspetivas do consumidor ao considerar que o registo das marcas apenas é transmissível “se tal não for susceptível de induzir o público em erro quanto à proveniência do produto ou do serviço ou aos caracteres essenciais para a sua apreciação”. Surge assim a questão de saber se as marcas também têm uma função de garantia de qualidade direta e autonomamente tutelada pelo direito. Apesar da preocupação do legislador, a posição de Miguel Pupo Correia vai no sentido de que “não se pode considerar, também, que a função da marca seja a de garantia das qualidades do produto. O produtor pode perfeitamente alterar as características do produto, mantendo-lhe a marca. E não è obrigado a anunciá-la.”[7]. Coutinho de Abreu também se expressa quanto a esta questão, de uma forma mais fundamentada e, no nosso entender, mais correta, ao responder que “há que ter em conta a al. b) do nº2 do art. 269º: o registo caduca se, após a data em que o registo foi efectuado, ‘a marca se tornar susceptível de induzir o público em erro, nomeadamente acerca da sua natureza, qualidade e origem geográfica desses produtos ou serviços, no seguimento do uso feito pelo titular da marca (…)’”[8]. O autor alerta, porém, que a lei não impõe uma perseverança qualitativa em sentido estrito, sendo que sempre serão permitidas melhorias qualitativas, bem como pioras não essenciais ou sensíveis dessa qualidade até então empregada. Conclui, ainda, dizendo que “ilícitas (conducentes à caducidade) são apenas as diminuições de qualidade susceptíveis de induzir o público em erro, isto é, as deteriorações qualitativas sensíveis e ocultas ou não declaradas ao público”[9]. Somo assim de aderir à posição apresentada por este autor ao defender que as marcas cumprem também uma função de garantia de qualidade autonomizável da função distintiva.

Percebido de um modo geral o que se pode considerar por uma marca e os efeitos que esta visa atingir no mercado, vejamos agora as espécies em que a mesma se pode constituir.

Desde logo, atendendo à natureza da atividade da qual surge o produto, podemos falar de marcas de indústria, de comércio, de agricultura ou de serviços. Porém, no que ao seu grafismo respeita, teremos marcas nominativas (constituídas por elementos verbais escritos), marcas figurativas (formadas por elementos de natureza desenhista ou figurativa), marcas mistas (comportam simultaneamente elementos nominativos e figurativos), marcas plásticas, formais ou tridimensionais (constituídas pela forma do produto ou da respetiva embalagem) e, ainda, as marcas sonoras (compostas por sons representáveis graficamente).[10]

A constituição da marca é, em princípio, livre, podendo o titular do interesse do registo compô-la ao seu arbítrio, porém, a lei estabelece certas restrições e princípios a ter em conta que regem a sua composição.

Desde logo, a marca deve ser independente do produto, ou seja, não deve fazer parte daquela qualquer elemento integrante do produto, devendo este estar completo, funcional e esteticamente, antes de a receber. Em segundo lugar, como já antes exposto, a marca deve ter uma eficácia distintiva, ou seja, deve ser capaz de distinguir um produto de outros semelhantes, como nos refere o art.223º nº 1 al. a) e o art.238º nº 1 als. b) e c). Quanto a este requisito, saliente-se que os sinais exclusivamente específicos, descritivos ou genéricos, carecem de eficácia distintiva. Depois, e em terceiro lugar, atento o disposto no art.239º, emerge também uma exigência de veracidade das marcas que revistam certas características, sendo que, por exemplo, deverão ser verídicas as referências que a marca porventura contenha acerca da natureza, qualidade, utilidade ou proveniência dos produtos. O quarto requisito resulta das als. a), b) e c) do nº 4 do art.238º, que preveem uma salvaguarda de direitos de terceiros, da especial consideração devida a certos sinais e da salvaguarda da ordem pública. Estamos face a uma exigência de licitude em sentido amplo, na medida em que se pretende tutelar interesses de ordem pública. Por fim, vem a exigência da verificação do princípio de novidade ou de exclusividade da marca. Este princípio impõe que a marca a registar não seja uma “reprodução ou imitação no todo ou em parte de marca anteriormente registada por outrem, para produtos ou serviços idênticos ou afins, que possa induzir em erro ou confusão o consumidor ou que compreenda o risco de associação com a marca registada[11]. Quanto a este princípio, é de notar que a concessão do registo de uma marca confundível com outra anteriormente registada até pode ser admissível porém, apenas nos casos em que houver uma autorização do titular do registo da marca.

A transmissibilidade do direito de marca
Sistemas de transmissão de marca
Como podemos constatar do regime dos artigos 262º e seguintes do CPI, o direito de marca é passível de ser transmitido, já que, como nos refere Maria Miguel Carvalho, “a concessão de um direito subjectivo absoluto relativamente a este sinal permite que o seu titular o negoceie[12]”. O conceito de transmissão da marca pode ser compreendido numa conceção mais ampla ou mais estrita. Furtando as palavras de Luís M. Couto Gonçalves, “a transmissão da marca, em sentido amplo, designa, por regra o efeito comum a um conjunto de actos jurídicos, de tipo contratual ou não contratual, a título oneroso ou gratuito, pelos quais se transfere a propriedade da marca[13]. Assim, podemos verificar que a transmissão da marca em sentido amplo poderá decorrer tanto de um contrato de compra e venda, como de uma doação, permuta ou mesmo por via testamentária.

Por seu turno, “em sentido estrito, o conceito de transmissão liga-se, na prática, usualmente, ao efeito do contrato de compra e venda da marca[14], o que consiste na cessão da titularidade do direito do cedente para o cessionário através de um contrato de compra e venda, ficando de fora todas as demais formas de cessão da marca.

Por forma a entendermos o regime atual da transmissão de marca, há que salientar que no seu percurso legislativo, foram surgindo ao longo dos tempos diferentes sistemas da sua transmissão, acolhidos de uma forma distinta pelos vários ordenamentos jurídicos conforme os interesses que esses pretendiam tutelar, se, por um lado, os dos consumidores, ou, por outro, os dos titulares do direito da marca. Pois, se de facto se compreende que esses titulares pretendam transmitir livremente as suas marcas explorando o valor das mesmas até ao seu limite, não se poderá olvidar que essa transmissão pode, em determinadas circunstâncias, conduzir os consumidores a situações de erro.

Um dos referidos sistemas, trata a transmissão da marca de uma forma vinculada e surge logo com as primeiras normas industriais. Com efeito, neste sistema, a cessão do direito de marca só será possível se juntamente com esta se transmitir também o estabelecimento ou o goodwill[15] a que esteja conexa. Então, este direito apenas será transmissível para o cessionário se conjuntamente com ele se transmitir a estrutura organizativa, composta por bens e direitos destinados ao exercício dessa atividade, ou, ainda, os elementos de natureza imaterial diretamente ligados ao desenvolvimento do negócio que valorizam a reputação do estabelecimento[16].

A transmissão da marca juntamente com o goodwill é o sistema que vigora no direito norte-americano, no qual, de acordo com Maria Miguel Carvalho “a marca não pode ser cedida sem o goodwill que a mesma simboliza, sob pena de o negócio ser inválido e de poder conduzir ao cancelamento da marca cedida se for usada para deturpar a origem do produto marcado.” Refere a autora ainda que, “além disso, a transmissão da marca sem o goodwill correspondente pode levar ao «abandono» da marca cedida”[17].

Ora, apesar desta exigência legal nos sistemas de cessão vinculada da marca, devemos salientar que a sua aplicação pelos tribunais se verificou mais ténue, levando a decisões que reputaram válidas algumas transmissões de marcas sem que ocorresse estritamente a transmissão da empresa ou estabelecimento. Assim, e conforme atenta Maria Miguel Carvalho, a aplicação deste sistema “passou por uma interpretação muito flexível da transmissão da empresa, sendo considerada suficiente a transmissão de um ramo desta[18]. Na verdade, a evolução que se verificou nestes sistemas de transmissão vinculada, foi o afastamento desta conceção e uma aproximação aos sistemas de transmissão autónoma. Apesar de no direito norte-americano ainda vigorar o sistema da cessão da marca vinculada à transmissão do goodwill, a interpretação dessa regra, com o passar dos anos, tem vindo a ser mais expandida, tanto mais que, nos dias de hoje, só se o uso da marca pelo adquirente for suscetível de confundir o público é que será declarada a invalidade da transmissão. Temos ainda o exemplo italiano, país que também consagrava o princípio da transmissão vinculada e que, em 1992, com o “Decreto Legislativo 4 dicembre 1992, n. 480” veio estabelecer a possibilidade da cessão da titularidade da marca independentemente da transmissão da empresa, porém, com um novo limite, o da proibição de engano dos consumidores. É este princípio, consagrado a favor dos consumidores com o intuito de os proteger de serem induzidos em erro, que vem trazer uma mudança no seio dos sistemas de transmissão de marcas.

Podemos constatar, assim, como refere Maria Miguel Carvalho, “o declínio do sistema de transmissão vinculada da marca a favor de um sistema livre de transmissibilidade e, em menor número, de sistemas mistos”[19].

Ora, o sistema hoje generalizado é o da transmissibilidade das marcas independentemente da transmissão das respetivas empresas. Este princípio da livre transmissibilidade da marca já era acolhido pela legislação portuguesa anterior à entrada em vigor do CPI de 1940, no CPI de 1940[20] e, também, no de 1995[21] em que a lei consagrava este sistema. Contudo, deve-se alertar que este não é um sistema livre em sentido estrito já que se verificam algumas limitações que visam tutelar a posição dos consumidores.

Ora, tais limitações foram também acolhidas pelos vários ordenamentos que preveem o sistema de livre transmissão, tendo criado instrumentos com o fim de afastar situações enganosas, o que demonstra uma aproximação entre os dois sistemas, que veio dar origem a um outro designado por sistema misto ou híbrido. Segundo este sistema, não se exige que com a marca se transfira o estabelecimento, podendo esta transmitir-se isoladamente, contudo, este impõe determinados limites e requisitos que têm de estar cumpridos visando, desse modo, o afastamento de situações enganosas para os consumidores. Isto é o que resulta do nº 1 do art. 262º quando refere que o registo das marcas só será transmissível “se tal não for suscetível de induzir o público em erro quanto à proveniência do produto ou do serviço ou aos caracteres essenciais para a sua apreciação”..

Temos, então, na nossa ordem jurídica a adoção de um sistema de cessão misto que, como refere Luís M. Couto Gonçalves, “se, por um lado, não impõe uma cessão vinculada da marca ao estabelecimento, também não permite uma livre cessão da marca sem limitações, pois condiciona-a à observância do princípio da verdade da marca.[22] Como já antes vimos aquando das restrições e princípios a ter em conta para a constituição de uma marca, este princípio da veracidade exige que sejam verídicas as referências que a marca contenha acerca da natureza, qualidade, utilidade ou proveniência do produto. Ou seja, o legislador impõe o requisito da não suscetibilidade do erro, seja esse erro reportado à proveniência dos produtos ou serviços, seja esse erro reportado aos seus caracteres essenciais.         

Podemos assim concluir que o nosso CPI prevê um sistema misto que não estabelece uma dependência da transmissão da empresa para que se possa transmitir a marca, porém, para que esta se possa transmitir livremente, nunca poderá induzir o público em erro.
           
Harmonização da legislação sobre marcas na União Europeia
Dada a diferença de regimes que se verificava na União Europeia, foi adotada pelo Conselho de Ministros a Directiva 89/104/CEE, de 21 de dezembro de 1988, com o objetivo de estabelecer um tratamento uniforme nos seus Estados-membros quanto à aquisição e conservação do direito sobre uma marca registada. A Directiva vinha, então, determinar os sinais suscetíveis de constituir uma marca, os motivos de recusa ou nulidade do seu registo, os direitos que tal registo comporta bem como os respetivos limites e, ainda, o regime das licenças de uso de marca e caducidade do registo. Quanto à transposição desta Directiva para o ordenamento jurídico português, apenas se veio a verificar com o CPI de 1995.

Importa ainda destacar o Regulamento nº 40/94 do Conselho, de 20 de dezembro de 1993, que veio instituir o regime da marca comunitária, regime este com carácter unitário, em que as marcas gozam de proteção uniforme e os seus efeitos se produzem em todo o território da União. Com este Regulamento, as marcas passam a ser consideradas, para todo o território da U.E., como marcas nacionais registadas nos territórios dos Estados-membros em que o seu titular estiver domiciliado ou estabelecido. Por fim, será de referir que o seu registo é efetuado através de um único pedido e um só processo, da competência do Instituto de Harmonização do Mercado Interno.

Modalidades de Transmissão
O Código da Propriedade da Industrial consagra a possibilidade de transmissão desvinculada da marca (art. 262.º, nº1). Não se trata de uma transmissão inteiramente livre pois, a transmissão independentemente do estabelecimento só terá lugar “ se tal não for susceptível de induzir o público em erro quanto à proveniência do produto ou do serviço ou aos caracteres essenciais para a sua apreciação”.

O ordenamento português adoptou um sistema de cessão híbrido, por um lado, não impõe uma cessão vinculada da marca ao estabelecimento também não permite uma livre cessão da marca sem limitações, condicionando-a à observância do princípio da verdade da marca.[23]

Há um requisito para a validade da transmissão, a não susceptibilidade de erro, seja ele reportado à proveniência dos produtos ou serviços, seja o erro reportado aos caracteres dos produtos essenciais ou serviços.

Acerca do erro sobre a proveniência, significa isto que há necessidade de o consumidor não ser enganado quanto ao facto de ter ocorrido uma mudança de estabelecimento. “(…), quando a marca, pela sua própria composição, exprime uma relação ou ligação do produto” (p.ex. a marca contém a indicação do nome do estabelecimento e reprodução do seu emblema ou a firma do respectivo proprietário), “ não será possível a sua transmissão isolada”[24].

A segunda modalidade de erro traduz a necessidade de o público não ser enganado quanto aos caracteres essenciais para a apreciação dos produtos ou serviços.

A transmissão pode ser total ou parcial em relação aos produtos ou serviços registados (arts.31º, n.º1 e 262º, n.º2 do CPI).

Transmissão de marca registada e transmissão de pedido de registo de marca
O objecto da transmissão de marca pode ser a marca registada ou o pedido de registo de marca (arts. 31º, nºs 1 e 2; 262º, nºs 1 e 3; CPI e arts. 17º e 24ºRMC.

No último caso referido, o pedido de registo confere uma simples expectativa de direito, ou seja, só se o direito vier a ser concedido é que estaremos perante um direito pleno.[25]

Transmissão total e transmissão parcial
A transmissão pode referir-se a todos ou a parte dos produtos ou serviços para os quais a marca está registada (arts.31º, nº1, e 262º, nº2, CPI e art.17º,nº1, RMC).

A cessão parcial pode ser problemática, pensemos no caso de o cessionário continuar a ter direito sobre a marca relativamente a produtos ou serviços idênticos ou afins daqueles para os quais a marca foi cedida, uma vez que o risco de confusão e de engano para os consumidores é considerável.[26]

Caso o cedente continue a usar a mesma marca para distinguir produtos ou serviços idênticos ou afins aos do cessionário, a função distintiva da marca na maior parte dos casos será posta em causa.

De outra forma, na medida em que o público possa ser enganado relativamente à qualidade dos produtos ou serviços oferecidos por cada um, a marca pode converter-se num sinal enganoso. Por isso, alguns autores defendem que a transmissão parcial somente deverá ser admitida para produtos ou serviços não semelhantes.
Contudo, há uma parte da doutrina que sustenta que a possibilidade de ser criado um risco de confusão não deverá ser motivo para impedir a cessão, por existirem meios legais próprios para actuar se existir a susceptibilidade de indução em erro, quer por ser frequente que as partes recorram aos “acordos de delimitação de uso” a fim de evitar o risco de engano dos consumidores.[27]

De frisar que a transmissão de marca por acto inter-vivos deve ser feita por escrito (art.29º nº3 CPI) e deve ser registada no INPI para produzir efeitos em relação a terceiros (art. 31º nº1 CPI). A transmissão pode também incidir sobre o pedido de registo (art.211º nº2 in fine). No caso de transmissão da marca, transmite-se a propriedade sobre um bem material, no caso da transmissão do pedido, transmite-se uma posição jurídica no processo de obtenção do registo de um bem imaterial.[28]

Transmissão onerosa e transmissão gratuita
A transmissão da marca pode efectuar-se a título gratuito ou oneroso (art.31º n.º1 do CPI).

Transmissão de marca registada não previamente usada
A transmissão de uma marca registada, mas que ainda não foi usada pode originar problemas, nomeadamente no que respeitar à teoria das funções jurídicas da marca. Refere sobre este tema Luís M. Couto Gonçalves “(…) a aquisição da marca não usada se justifica, essencialmente, nos casos em que está a ser usada pelo transmitente em relação a outros produtos ou serviços, isso significa que não pode estar liminarmente afastado o risco de erro sobre a proveniência”[29], impondo a adopção de medidas pelas partes que evitem a susceptibilidade de engano.

Requisitos para a transmissão de marca
Requisito substancial: insusceptibilidade de indução do consumidor em erro.

O CPI e o RMC impõem como único requisito substancial, para a transmissibilidade das marcas a proibição de engano do consumidor (art.262º nº1, in fine, e art.17º, n.º4, RMC). Tratando-se de um requisito de validade pelo que se não for respeitado o contrato de transmissão, é nulo não se transmitindo a titularidade da marca, sendo diferente quanto ao âmbito de aplicação.

No artigo 262º, nº1 do CPI, está estabelecido que o engano pode ter por objecto quer a proveniência dos produtos ou serviços marcados, quer os caracteres essenciais para a apreciação desses por parte do consumidor. Já no artigo 17º nº4, RMC o elenco referente ao objecto de engano é exemplificativo e são referidas expressamente outras hipóteses, tal como a natureza, a qualidade ou proveniência geográfica dos produtos ou serviços para os quais foi registada.

Atendendo à ratio legis destas normas será preferível um elenco exemplificativo, contudo o CPI não o faz, incluindo um conceito indeterminado (“caracteres essenciais para a sua apreciação”) que permite abarcar tanto a natureza, a qualidade, a proveniência geográfica ou outros aspectos que sejam relevantes na decisão económica dos consumidores.

No entanto, a causa de engano para a aplicação destas normas surge mais clara no RMC, referindo expressamente como causa a transmissão (“devido a essa transmissão”). Está prevista também no RMC a hipótese de sanação do impedimento pela limitação do registo aos produtos ou serviços para os quais a marca não seja enganosa, em coerência com as disposições relativas ao impedimento absoluto de registo aos produtos ou serviços para os quais a marca não seja enganosa.

No ordenamento português tal não sucede relativamente à transmissão da marca, porém alguma doutrina entende que, atendendo aos argumentos sistemáticos (a propósito do registo de sinal originário ou supervenientemente enganoso está prevista, de forma expressa, a recusa, a nulidade ou a caducidade parcial) e teleológico ( a razão de ser do requisito substancial exigido para a transmissão da marca), o art. 262º, n.º1 do CPI, deverá ser interpretado de forma a avaliar que a transmissão só não será válida em relação aos produtos ou serviços para os quais é susceptível de induzir em erro.[30]

Atendendo à causa do engano, podemos dizer que os casos normalmente têm a ver com a susceptibilidade de indução em erro quanto à proveniência e com outros caracteres essenciais para a apreciação dos produtos ou serviços.

Quanto à proveniência é habitual se dar a título exemplificativo os casos em que a marca contém uma indicação relativa à proveniência empresarial do produto/serviço marcado, sendo a marca transmitida independentemente daquela empresa.

Relativamente à insusceptibilidade de indução em erro quanto aos caracteres essenciais para a apreciação do produto ou serviço marcado está em causa evitar que após à transmissão da marca, o cessionário proceda a alterações depreciativas, relevantes e não divulgadas ao público, nos produtos ou serviços marcados.

Para saber os caracteres essenciais para a apreciação dos produtos ou serviços marcados é preciso fazer uma interpretação casuística, mas como linha orientadora é importante ter sempre em conta os aspectos que sejam susceptíveis de influenciar a decisão económica de compra do consumidor.

Parte da doutrina, entende que o cessionário deve manter os caracteres essenciais durante um de tempo razoável após a cessão. Entre nós, a posição de Luís M. Couto Gonçalves sustenta que relativamente à repercussão quanto à teoria das funções jurídicas da marca, apoia este que esta norma não é a expressão da protecção jurídica directa e autónoma de uma função de garantia e qualidade, representando um afloramento do princípio da verdade.

No entanto para Maria M. Carvalho, tal obrigação a existir só poderia resultar do facto de o cessionário ter adquirido a marca. Assim, “o engano adveniente destes casos será motivado não pela transmissão da marca, mas pelo uso que for feito da marca supervenientemente ao seu registo, pelo que revelaria, quando muito, para efeitos de eventual caducidade do registo por deceptividade superveniente se se verificassem os respectivos pressupostos”.[31]

Requisitos Formais
Para além do requisito substancial, a transmissão está sujeita a requisitos formais, respeitando estes a forma e publicidade do negócio.

Forma escrita
A cessão da marca, deve ser provada por escrito como consta do artigo 3º, nº6 do CPI. Contudo, se houver inobservância de forma escrita não acarreta, necessariamente a nulidade do negócio. Refere a este assunto J.P. Remédio Marques que esta exigência “traduz uma formalidade ad probationem, em que a finalidade tida em vista na formulação de certa exigência de forma na externação das declarações negociais foi apenas a de obter prova segura da realização do acto jurídico”.[32]

No RMC no art.17, n.º3 diz “ sem prejuízo do disposto no nº2, a cessão da marca comunitária deve ser feita por escrito e requer a assinatura das partes contratantes, salvo se resultar de sentença”, cominando a sua inobservância com a nulidade da cessão. Esta exigência é aplicável independentemente de a lei nacional que regula a transmissão da marca não impor uma forma para este negócio, ora, teoricamente podem ocorrer resultados paradoxais, consoante o contrato de transmissão celebrado entre as mesmas partes, respeite a marcas comunitárias ou nacionais.

Averbamento ou inscrição no registo
Por ser oponível a terceiros, a cessão tem de ser averbada no processo ( e no título caso exista) pelo INPI (arts. 30º, nº1, al a), e nº6 CPI) ou, no caso de marca comunitária, inscrita no registo junto do IHMI (art 17º, nºs 5 e 6 RMC).

Tal averbamento, ou inscrição no registo, junto com a publicidade efectuado no BPI (art. 30º nº7, CPI) ou na parte C do BMC (art. 17º nº5, RMC e Regras 84, nº3, al. g), e 85, nº2, RE), consoante a marca for nacional ou comunitária, justifica-se isto pelo facto de a transmissão decorrer do acordo das partes, podendo não ser conhecida de terceiros, impõe-se tal pela segurança jurídica, a necessidade de a publicitar.

O averbamento da transmissão de maca nacional pode ser requerido tanto pelo cessionário como pelo cedente (art, 30º, nº4, CPI), se for requerido pelo cedente, é exigida a assinatura do cessionário no documento que comprova a cessão da marca ou a apresentação de uma declaração de que aceita a transmissão (art.31º, nº6, CPI). O pedido de averbamento é feito mediante o preenchimento do chamado formulário M4, que se encontra disponível no sítio do INPI: www.inpi.pt, acompanhado do documento comprovativo da transmissão e, se for o caso, das autorizações, obrigando assim ao pagamento de uma taxa que varia entre os 100€ e os 125€.

No que toca ao pedido de inscrição de transmissão de marca comunitária será preferível o preenchimento de um formulário disponibilizado pelo IHMI sendo também assinado por ambas as partes ( Regras 31, nº1 d), nº5, e 83, nº1 d) do RE). Desde 25 de Julho de 2005, a inscrição no registo da transmissão de marca comunitária não obriga ao pagamento de qualquer taxa.

Modo de Controlo da verificação do requisito substancial
A entidade competente para a tramitação dos pedidos de averbamento ou inscrição de cessão é a Direcção de Marcas e Patentes do INPI e a Divisão de Admissão de Marcas e de Questões Jurídicas, para a marca nacional e comunitária respectivamente.

Ao exigi-ser a documentação referida, o averbamento/inscrição só será analisado se forem apresentadas provas suficientes da cessão da marca. Contudo o modo de controlo da verificação do requisito substancial é diferente consoante se trate de marca comunitária ou nacional.

Caso seja comunitária, o IHMI não analisa a cessão propriamente dita, contudo, se dos documentos que estabelecem a transmissão resultar manifestamente que, devido a essa transmissão, a marca comunitária poderá induzir o público em erro, em princípio, o registo será recusado (art. 17º, nº4, RMC).

Se estivermos perante transmissão de marca nacional compete ao INPI  proceder ao estudo do processo de averbamento da cessão de forma verificar se os requisitos de que esta depende se verificam, sem que seja estabelecida legalmente a exigência de o fazer apenas nos casos em que tal decorra manifestamente dos documentos apresentados.

A susceptibilidade de indução em erro pode ser detectada no momento do pedido do averbamento da transmissão, contudo tal só acontece em poucos casos, nomeadamente em situações em que a marca contém uma referência, p.ex. , ao local de proveniência do produto, sendo que o cessionário não exerce nesse local a actividade de que resulta o produto marcado.

Poderá surgir a questão se nos casos em que não resulte de modo evidente dos pedidos documentos apresentados com o pedido de averbamento da cessão da marca que, por causa desta, haverá susceptibilidade de induzir o público em erro, nesse caso, o INPI deve proceder a uma investigação detalhada no sentido de determinar se se cumpre o requisito de validade de transmissão da marca.

Ora, tendo em conta que o INPI é um instituo público, este fica sujeito às disposições do CPA, e o processo de averbamento da transmissão de uma marca registada, apesar de ser um procedimento administrativo especial, também este fica subordinado aos princípios gerais da actividade administrativa constantes do CPA, mas também o fica em relação às normas que nesse Código “concretizam preceitos constitucionais”, quer ainda no âmbito da actividade de gestão pública, às próprias regras de direito substantivo sobre a organização e actividade administrativas aí inscritas (CPA, artigo 2º, nºs 5, 6 e 7).

Estabelece o CPA o principio do inquisitório relativamente ao procedimento administrativo comum (artigo 56º CPA), segundo o qual “os órgão administrativos, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, podem proceder às diligências que considerem convenientes para a instrução, ainda que sobre matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados (…)”.

Contudo, na opinião de MARIA MIGUEL CARVALHO, numa situação ideal, seria defensável a mais ampla intervenção possível do INPI antes do averbamento, todavia se se exigisse a actuação do INPI mesmo nos casos onde não decorra de forma manifesta do documento comprovativo da transmissão da marca que a mesma é susceptível de induzir em erro, paralizando rapidamente a actividade daquele instituto, com todos os inconvenientes daí resultantes. Por outro lado, o facto de poderem escapar ao controlo do INPI, não impede que a transmissão seja nula, por violar disposição legal imperativa (arts. 262 nº1, CPI e 294 CC).[33]

Efeitos da transmissão
A transmissão da marca ocorre como efeito imediato do contrato de cessão, sendo que a inscrição da cessão no registo tem efeitos meramente declarativos e funciona como requisito de oponibilidade a terceiros (art.17º RMC e os nºs 2 e 3 do art. 30º CPI). Ora, como consequência da transmissão, o cessionário passa a ter todos os direitos e obrigações decorrentes do registo (ou do pedido do registo) da marca, existentes à data da cessão.


Por André Lages e Rui Aires Pereira


Maio de 2014



[1] Expressão utilizada por autores como Coutinho de Abreu, COUTINHO de ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 364
[2] MIGUEL PUPO CORREIA, “Direito Comercial”, p. 347
[3] COUTINHO de ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 365
[4] O legislador ao utilizar a expressão “designadamente” dá a entender que estes sujeitos são apenas alguns exemplos, possibilitando, sim, o registo de uma marca a todos que nisso tenham legítimo interesse.
[5] Isto porque, como nos exemplifica Coutinho de Abreu quanto a esta função de origem, “ela falha claramente nas marcas colectivas de certificação (cfr. art.230º do CPI, bem como nos casos em que é legítimo dois ou mais sujeitos não ligados por quaisquer relações jurídico-económicas usarem a mesma marca para produtos idênticos ou semelhantes”, COUTINHO DE ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 373
[6] Artigos 262º e seguintes do Código de Propriedade Industrial
[7] MIGUEL PUPO CORREIA, “Direito Comercial”, p. 348
[8] COUTINHO DE ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 378
[9] COUTINHO DE ABREU, “Curso de Direito Comercial”, p. 378
[10] Aderimos aqui à posição de Miguel Pupo Correia. Porém, saliente-se que outros autores como Coutinho de Abreu elencam um maior número de espécies das que aqui consideradas.
[11] Cfr. al. a) do nº1 do art. 239º
[12] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 477
[13] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Função Distintiva da Marca”, p. 176
[14] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Função Distintiva da Marca”, p. 178
[15] Temos por goodwill, o património da marca em sentido amplo, o valor de mercado de um negócio que não é diretamente atribuível aos seus ativos ou passivos, refletindo, sim, a capacidade da entidade produzir um lucro mais elevado do que aquele que parte da utilização somente dos seus ativos.
[16] Temos por elementos de natureza imaterial os bens intangíveis, como por exemplo, o bom nome, a clientela, a boa reputação nos meios empresariais, entre outros.
[17] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 477, nota 8
[18] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 479
[19] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 481
[20] Artigo 118º nº 1
[21] Artigo 211º nº 2
[22] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Função Distintiva da Marca”, p. 179
[23]LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Manual de Direito Industrial” p.293.
[24] FERRER CORREIA, “Lições de Direito Comercial” p.348 nota 1. através de LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Manual de Direito Industrial”
[25] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 483
[26] FERNÁNDEZ-NÓVOA, “Tratado sobre Derecho de Marcas” p. 538 através de MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial”
[27] AUTERI, Paolo  in “Cessioni e licenza di marchio” p.102 e ss. através de MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial”
[28] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, “Função Distintiva da Marca”, p. 193
[29] LUÍS M. COUTO GONÇALVES, in “Manual de Direito Industrial” p351.
[30]MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 487
[31] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p.488
[32] J.P REMÉDIO MARQUES in “Licenças (voluntárias e obrigatórias) de direitos de propriedade industrial” p.19 e ss. através de MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial”
[33] MARIA MIGUEL CARVALHO, “Contratos de Transmissão e de Licença de Marca”, in “Contratos de Direito de Autor e de Direito Industrial” p. 493.



Sem comentários:

Enviar um comentário