Noção de Contrato-Promessa
No
artigo 410º, nº1 do Código Civil está referido, a propósito do regime àquele
empregue, “à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato…”.
Tal ideia está patente no art.º830º. nº1 parte inicial do CC, que dispõe “ se
alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato”.
Segundo
este texto legal, identificam-se três elementos a saber:
- a
existência de uma convenção;
- pela
qual alguém se obriga;
- a
celebrar certo contrato;
- Existência
de uma convenção: destacam-se duas características desta convenção, a da
autonomia em relação ao negócio definitivo que se pode deduzir, e a da
completude da mesma, em razão da sua suficiência enquanto tal para produzir os
específicos efeitos.
- Existência
de uma obrigação a que alguém se encontra adstrito: para que se trate de um
negócio desse género, deve ainda decorrer uma vinculação para pelo menos, um
dos sujeitos.
Vinculação
à celebração de um contrato: a obrigação emergente é a de celebração de um
contrato definitivo ou prometido por contraposição ao contrato-promessa.[1]
Promessa com eficácia obrigacional
A regra
será a de que o contrato-promessa tem mera eficácia obrigacional, tal se deve
essencialmente a duas razões, a lei “impõe” por via do artigo 413ºCC, a contrario a promessa obrigacional num
vasto leque de situações. Mesmo quando se permite a celebração de promessa com
eficácia real, a escolha das partes vai normalmente no sentido de atribuir
carácter obrigacional à promessa.
Ora, na
promessa obrigacional, estamos perante um contrato que está sujeito à eficácia
relativa: a vinculação que dele emerge apenas se limita às partes, não sendo
possível a oponibilidade de terceiros.
Em face
do incumprimento temporário, uma vez verificados os requisitos impostos por
lei, o promitente não inadimplente tem direito à execução específica, sendo
que, a este mecanismo pode acrescer uma indemnização moratória, desde que se
demonstre a existência de danos decorrentes do atraso na execução.
Perante
o incumprimento definitivo da promessa, funciona o regime do sinal e, caso haja
convenção em contrário, podem exigir-se outras indemnizações.
Contudo,
a tutela do promitente obrigacional não é plena, é exemplo a não proteção de
promitente-comprador contra uma eventual transmissão de propriedade da coisa.
Se o promitente-vendedor, na qualidade de vendedor, alienar a um terceiro algo,
que tenha sido objecto de promessa anterior, o promitente-adquirente apenas
terá o direito a ser indemnizado, não podendo fazer atuar a execução específica
do mesmo em relação ao terceiro.[2]
Efeitos da declaração de insolvência
Por
força da declaração de insolvência, os credores ficam limitados no exercício do
seu poder de ação executiva por força da impossibilidade de instaurar e de
obter o prosseguimento de ações executivas contra o devedor (art.88º, nº1
CIRE), na titularidade de certos direitos reais de garantia dos seus créditos
devido à susceptibilidade de extinção dos privilégios creditórios e garantias
reais (art.97º do CIRE), no recurso a certos meios de extinção de obrigações,
pelos condicionamentos impostos ao exercício do direito de compensação (art.99º
CIRE), no recurso a certas providências de conservação do património do devedor
pelos condicionamentos impostos ao direito der instauração de ações de
impugnação pauliana (art.127º do CIRE) no gozo de certas posições processuais
de vantagem, por força da regra da inatendibilidade, na graduação de créditos,
da preferência resultante da hipoteca judicial ou proveniente da penhora
(art.140º nº3, do CIRE), ficando sujeitos a um conjunto de efeitos particulares
no caso de estarem ainda em curso em que participam com o insolvente (art.102º
e ss do CIRE).[3]
Considerações sobre a problemática do Contrato-Promessa
Na
epígrafe do artigo 106º do CIRE está escrito “promessa de contrato”, contudo
este artigo apenas regula os contratos promessa de compra e venda. Este artigo
no seu nº1 prevê o caso em que este tem eficácia real havendo tradição da coisa
e o insolvente será o promitente-vendedor. Está exposto neste artigo que o
administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do
contrato-promessa, sendo este uma exceção à regra geral mas encontra-se
protegido pela norma do artigo 102º.
O seu nº
2 regulará os restantes casos, que serão aqueles em que houve falha de um dos
requisitos exigidos no nº1, ou seja, o contrato-promessa tem eficácia real mas
não houve tradição da coisa, e mesmo no caso em que tenha havido tradição da
coisa, o insolvente não é promitente-vendedor e os casos em que o contrato-promessa
não tem eficácia real. Ora, ao contrário do exposto no nº1 o administrador pode
recusar o cumprimento, aplicando-se o nº2 do art.106º e o nº5 do art.104º e por
remissão deste, o nº3 do art.102º.
Não
restarão dúvidas quanto à possibilidade de o administrador da insolvência em
recusar o cumprimento quando, independentemente da traditio, o contrato-promessa tem eficácia meramente obrigacional.
É muito claro quanto a isto o disposto no nº1, a contrario, do art.106º, quando conjugado com o nº1 do art.102.
Ora, um
dos casos mais badalados e discutidos no âmbito dos negócios jurídicos (também devido à frequência com que surge na
prática), é o caso em que o contrato-promessa tem eficácia meramente
obrigacional relativamente a edifício ou fração autónoma.
O busílis
da questão, será o de saber se uma vez recusado o cumprimento pelo
administrador da insolvência´, o promitente-comprador, beneficiário de traditio, goza ou não do direito ao
recebimento do sinal em dobro e da qualificação do seu crédito como garantido
por via do direito de retenção.
Aquando
a vigência do CPEREF, a antiga norma que se debruçava sobre esta matéria (o
contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional) previa no seu artigo
164º-A, nº1, a hipótese de indemnização na extinção do contrato, dependendo dos
casos da perda do sinal entregue ou a restituição do sinal em dobro. Esta
norma, mais não era do que a aplicação do artigo 442º nº2 do CC no contexto do
processo de insolvência.
Atualmente
no CIRE é diferente, sendo que a norma que versa o contrato com eficácia
meramente obrigacional, ou seja, o art.106º nº2 não fixa diretamente os termos
da indemnização, este artigo limita-se apenas a remeter para o art.104º nº5,
que por sua vez remete para o art.102 nº3. Contudo a decisão de atribuir ao administrador
de insolvência o direito de recusa de cumprimento do contrato-promessa implica
desde logo a inaplicabilidade do art.442º do CC. Está claramente patente uma
contradição teleológica entre o direito potestativo de recusa de cumprimento do
contrato-promessa e o direito subjetivo propriamente dito à restituição do
sinal em dobro.
De
frisar, que para que haja direito ao sinal em dobro são necessárias três
coisas: a primeira será naturalmente o não cumprimento por parte do devedor;
segundo este mesmo cumprimento é ilícito; por último, o não cumprimento ilícito
seja imputável ao devedor, por ter sido causado com culpa. Uma vez existindo um
direito potestativo de recusa de cumprimento do contrato promessa (que foi
atribuído ao administrador de insolvência pelo art.106, nº2 em ligação com o
art.102º), não existe aqui um dever de cumprir, ora uma vez que não existe tal
dever de cumprir, não haverá ilicitude nem culpa, faltando no caso de o
cumprimento ser efetivamente recusado pelo administrador de insolvência, a
imputabilidade do não cumprimento ao promitente-vendedor e, consequentemente,
um dos factos constitutivos do direito ao promitente-comprador.
É
aplicável por remissão do nº2 do art.106º com as adaptações, o regime da venda
com reserva de propriedade regulado no nº5 do art.104º, que por remissão deste
último se reconduz ao regime geral dos efeitos de recusa de cumprimento do nº3
do art.102º. Ora, a contraparte doo insolvente terá direito à diferença entre o
valor do objeto do contrato-prometido na data da recusa de cumprimento do
contrato-promessa e o montante do preço convencionado atualizado para a data da
declaração de insolvência.
A
questão agora será a de saber o que acontece ao sinal, sendo que a
possibilidade não é contemplada na norma do art.104º nem do art.102º nº3 al c).
Ora, é
certo que o sinal não corresponde exatamente ao cumprimento parcial da
prestação devida por força do contrato-promessa, pois a constituição de sinal é
uma prestação de coisa, já a prestação devida por causa do contrato-promessa é
uma prestação de facto jurídico. Este caso terá de se configurar como uma
lacuna, será razoável se dizer que aqui se aplica o princípio de que a
contraparte tem o direito á diferença de valor entre as prestações mas também
terá o direito à restituição daquilo que prestou. Caso não se integrasse esta
lacuna por aplicação do art.102º nº3, al. c), seria alcançado o mesmo resultado
por aplicação do principio geral do enriquecimento sem causa, que está
consagrado no art.473º do CC, em que a obrigação de restituição tem por objeto
o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista
de um efeito que não se verificou.[4]
Como
forma de conclusão, a contraparte do insolvente tem direito à diferença (caso
esta seja positiva) entre o valor das duas prestações, sendo uma equivalente ao
valor do objeto do contrato-prometido na data da recusa de cumprimento do
contrato-promessa e a outra será equivalente ao montante do preço convencionado
atualizado para a data da declaração de insolvência, acrescido do sinal. Para
MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS esta solução é estranha visto que ela desfavorece
o promitente-comprado, em contradição com a lei geral, que dispôs mecanismos
para a sua tutela.[5] Dizem NUNO
MANUEL PINTO OLIVEIRA e CATARINA SERRA que não se deve estranhar tal decisão,
pois num contrato-promessa que se enquadre na insolvência não existe apenas um
interesse que se contrapõe a outro, existem pois um conjunto de interesses
concorrentes com aqueles, ora uma vez distintos os interesses em presença, os
interesses merecedores de tutela reforçada não podem ser os mesmos que o são em
situações ordinárias ou perante lei geral.[6]
O
crédito é expressamente qualificado como crédito sobre a insolvência, não sendo
um crédito garantido, mas sim um crédito comum, estando excluída qualquer
possibilidade de o promitente-comprador invocar a titularidade de um direito de
retenção sobre a coisa objeto da tradição.
No sentido de que o direito de retenção se
mantém em caso de insolvência, FERNANDO GRAVATO MORAIS escreve, que à luz do
artigo 755º, nº1 f) do CC “ o beneficiário da promessa de transmissão ou
constituição do direito real que obteve tradição da coisa a que se refere o
contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento
imputável à outra parte, nos termos do artigo 422º do CC”, goza do direito de
retenção. Os seus pressupostos são a existência de promessa de transmissão ou
de constituição de direito real; a entrega da coisa objeto do
contrato-promessa; a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito
sobre a outra parte, decorrente do incumprimento do contrato-promessa.
Segundo
este autor, é pacífico que os dois primeiros pressupostos se encontram
inteiramente preenchidos, contudo, quanto ao último, o problema será o de saber
se o incumprimento se poderá imputar à outra parte.
A ideia
de imputabilidade deve ser entendida cum
granis salis em sede de insolvência, e no exacto sentido de “ter dado causa
a”, “ter motivado a”).
A
declaração de insolvência, pode ter na base factos-índice do art.20º, nº1,
alínea a): a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, a
falta do cumprimento que revela a impossibilidade de satisfação pontual da
generalidade das obrigações; a fuga do titular da empresa…, o que permite
deduzir essa imputabilidade.
Sendo o
direito de retenção, um direito real de garantia, permite ao retentor a não
entrega da coisa a quem, em princípio, lhe podia exigir enquanto este não cumprir
a obrigação a que se encontra adstrito, ora não seria isso que está em causa
nesta situação, pois o direito de retenção não confere tal possibilidade, pois
não prejudica a apreensão da coisa que constitui o objeto de tal direito para a
massa insolvente, já que a mesma deve ser entregue ao liquidatário. O que
constitui, uma fragilidade da situação jurídica do retentor.[7]
Se
juntássemos esta situação a perda do direito de retenção, a posição do
promitente-adquirente seria bastante fragilizada.
A
insolvência é caracterizada nestes termos quando “ a situação tiver sido criada
ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou
dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao
inicio do processo de insolvência” (art.186, nº1).
A lei consagra uma presunção jure et de jure de insolvência culposa,
sendo que nas hipóteses no nº3 a presunção é juris tantum.
No ver
deste autor, o conceito de “culpa” aqui usado é muito restrito quando
confrontado com o do preceito civilista, sustentando que no caso de direito de
retenção, o direito da insolvência não altera o regime civilista resultante do
art.759º CC, cuja norma foi submetida á apreciação constitucional, tendo sido
sempre considerada conforme.[8]
Sustenta
MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, o direito de retenção pelo promitente-comprador uma
vez que visa garantir o crédito indemnizatório pelo valor, não tem qualquer
aplicação no âmbito do 102º nº3.[9]
Carácter imperativo do regime dos arts. 102º a 118º
Na norma
do art.119º, que tem como epígrafe “normas imperativas”, vem declarar a
inadmissibilidade das convenções de exclusão ou de limitação da disciplina dos
efeitos sobre os negócios em curso, vindo também a proibir o funcionamento da
insolvência como condição resolutiva dos negócios ou como facto gerador de um
direito de indemnização, resolução ou denúncia (nº2 do art.119º).
Contudo,
tendo em conta a natureza e o conteúdo das prestações contratuais a insolvência
pode consubstanciar uma justa causa de resolução ou de denúncia.
A título
exemplificativo: membros de um ACE não podem convencionar que a insolvência é
causa de exclusão de um membro insolvente; porém se as prestações contratuais
pressupuserem a capacidade financeira sólida ou acima de qualquer suspeita dos
membros, pode tornar-se inviável a continuidade de um insolvente no ACE, neste
caso a insolvência servirá como justa causa de exclusão.[10]
Jurisprudência
Acórdão
do Tribunal da Relação do Porto de 19-03-2012, P 147/11.8TBVLC-B.P1, Relator:
Anabela Calafate: “I – Se o contrato-promessa não estiver definitivamente
incumprido à data da declaração da insolvência da promitente-vendedora, o
promitente-comprador não teria direito ao dobro do sinal que pagou mas gozaria
do direito de retenção. II – Se o incumprimento definitivo ocorrer antes da
declaração da insolvência, o promitente-comprador tem direito ao dobro do sinal
e goza do direito de retenção como lhe é reconhecido pelos art.442º nº2 e 755º
nº1 al. f) do Código Civil.”.
Acórdão
do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18-10-2011, P.259/09.8TBNLS-E.C1,
Relator: Moreira de Carmo: “1. No regime do Código Civil, o incumprimento do
contrato-promessa de compra e venda e a sanção do mecanismo de sinal – art.442º
nº2 do CC – estão ligados à imputabilidade do incumprimento. Se tal
imputabilidade for do promitente-vendedor este restituir o sinal recebido em
dobro; 2. A recusa do administrador de insolvência em executar o contrato não
exprime incumprimento mas “reconfiguração da relação”, tendo em vista a
especificidade do processo de insolvência, não sendo aplicável a norma do art.
442º, nº2 do CC, pelo que não tem o promitente-comprador direito ao dobro do
sinal, até por força do regime imperativo do art.119º do CIRE. 3. O promitente-comprador
de coisa imóvel que obteve a traditio, não goza, no atual direito da
insolvência, dos direitos reconhecidos pelo CC, no caso de ser imputável ao
promitente-vendedor o incumprimento definitivo do contrato-promessa, não sendo
aplicável na insolvência o art.442, nº2 do CC, e por isso, também não dispõe o
promitente-comprador do direito de retenção, nos termos do art.755º nº1 f) do
CC. 4. No caos de omissão total no corpo das alegações dos fundamentos ou
razões de discordância com o decidido sobre determinada questão, questão que,
todavia, vem a constar nas conclusões do recurso, é de entender que o art.
685º-A nº1 do CPC, se mostra violado, e consequentemente a mesma não tem de ser
conhecida pelo tribunal de recurso.”[11]
Por Rui Aires Pereira
Maio de 2014
[1] GRAVATO MORAIS, Fernando in “Contratos-Promessa em Geral. Contratos
Promessa em Especial” p.24 e 25.
[2] GRAVATO MORAIS, Fernando in “Contratos-Promessa em Geral. Contratos
Promessa em Especial” p.53 e 54.
[3] NUNO PINTO DE OLIVEIRA e CATARINA
SERRA “Insolvência e Contrato-Promessa”
in ROA ANO 70. p.404.
[4] CATARINA SERRA, “O Regime da Insolvência”
[5] LUÍS MIGUEL PESTANA DE
VASCONCELOS “Contratos-promessa e
falência/ insolvência – Anotação ao Ac. Do TRC de 17.4.2007, p.61-62 ATRAVÉS
de CATARINA SERRA “O Regime Português da
Insolvência”.
[6] NUNO MANUEL PINTO
OLIVEIRA/CATARINA SERRA “Insolvência e contrato-promesa
– os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa com eficácia
obrigacional”
[7] GRAVATO MORAIS, Fernando “Cadernos de Direito Privado nº 29” p. 11
[8] GRAVATO MORAIS, Fernando “Cadernos de Direito Privado nº 29” p. 11
[9] ROSÁRIO EPIFÂNIO, Maria “Manual de Direito da Insolvência” p.149
[10] CATARINA SERRA, “O Regime Português da Insolvência”.
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