quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Os efeitos da declaração de insolvência sobre o contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional





Noção de Contrato-Promessa
No artigo 410º, nº1 do Código Civil está referido, a propósito do regime àquele empregue, “à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato…”. Tal ideia está patente no art.º830º. nº1 parte inicial do CC, que dispõe “ se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato”.

Segundo este texto legal, identificam-se três elementos a saber:
- a existência de uma convenção;
- pela qual alguém se obriga;
- a celebrar certo contrato;
Existência de uma convenção: destacam-se duas características desta convenção, a da autonomia em relação ao negócio definitivo que se pode deduzir, e a da completude da mesma, em razão da sua suficiência enquanto tal para produzir os específicos efeitos.
Existência de uma obrigação a que alguém se encontra adstrito: para que se trate de um negócio desse género, deve ainda decorrer uma vinculação para pelo menos, um dos sujeitos.
Vinculação à celebração de um contrato: a obrigação emergente é a de celebração de um contrato definitivo ou prometido por contraposição ao contrato-promessa.[1]

Promessa com eficácia obrigacional
A regra será a de que o contrato-promessa tem mera eficácia obrigacional, tal se deve essencialmente a duas razões, a lei “impõe” por via do artigo 413ºCC, a contrario a promessa obrigacional num vasto leque de situações. Mesmo quando se permite a celebração de promessa com eficácia real, a escolha das partes vai normalmente no sentido de atribuir carácter obrigacional à promessa.

Ora, na promessa obrigacional, estamos perante um contrato que está sujeito à eficácia relativa: a vinculação que dele emerge apenas se limita às partes, não sendo possível a oponibilidade de terceiros.

Em face do incumprimento temporário, uma vez verificados os requisitos impostos por lei, o promitente não inadimplente tem direito à execução específica, sendo que, a este mecanismo pode acrescer uma indemnização moratória, desde que se demonstre a existência de danos decorrentes do atraso na execução.
Perante o incumprimento definitivo da promessa, funciona o regime do sinal e, caso haja convenção em contrário, podem exigir-se outras indemnizações.

Contudo, a tutela do promitente obrigacional não é plena, é exemplo a não proteção de promitente-comprador contra uma eventual transmissão de propriedade da coisa. Se o promitente-vendedor, na qualidade de vendedor, alienar a um terceiro algo, que tenha sido objecto de promessa anterior, o promitente-adquirente apenas terá o direito a ser indemnizado, não podendo fazer atuar a execução específica do mesmo em relação ao terceiro.[2]

Efeitos da declaração de insolvência
Por força da declaração de insolvência, os credores ficam limitados no exercício do seu poder de ação executiva por força da impossibilidade de instaurar e de obter o prosseguimento de ações executivas contra o devedor (art.88º, nº1 CIRE), na titularidade de certos direitos reais de garantia dos seus créditos devido à susceptibilidade de extinção dos privilégios creditórios e garantias reais (art.97º do CIRE), no recurso a certos meios de extinção de obrigações, pelos condicionamentos impostos ao exercício do direito de compensação (art.99º CIRE), no recurso a certas providências de conservação do património do devedor pelos condicionamentos impostos ao direito der instauração de ações de impugnação pauliana (art.127º do CIRE) no gozo de certas posições processuais de vantagem, por força da regra da inatendibilidade, na graduação de créditos, da preferência resultante da hipoteca judicial ou proveniente da penhora (art.140º nº3, do CIRE), ficando sujeitos a um conjunto de efeitos particulares no caso de estarem ainda em curso em que participam com o insolvente (art.102º e ss do CIRE).[3]

Considerações sobre a problemática do Contrato-Promessa
Na epígrafe do artigo 106º do CIRE está escrito “promessa de contrato”, contudo este artigo apenas regula os contratos promessa de compra e venda. Este artigo no seu nº1 prevê o caso em que este tem eficácia real havendo tradição da coisa e o insolvente será o promitente-vendedor. Está exposto neste artigo que o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa, sendo este uma exceção à regra geral mas encontra-se protegido pela norma do artigo 102º.

O seu nº 2 regulará os restantes casos, que serão aqueles em que houve falha de um dos requisitos exigidos no nº1, ou seja, o contrato-promessa tem eficácia real mas não houve tradição da coisa, e mesmo no caso em que tenha havido tradição da coisa, o insolvente não é promitente-vendedor e os casos em que o contrato-promessa não tem eficácia real. Ora, ao contrário do exposto no nº1 o administrador pode recusar o cumprimento, aplicando-se o nº2 do art.106º e o nº5 do art.104º e por remissão deste, o nº3 do art.102º.

Não restarão dúvidas quanto à possibilidade de o administrador da insolvência em recusar o cumprimento quando, independentemente da traditio, o contrato-promessa tem eficácia meramente obrigacional. É muito claro quanto a isto o disposto no nº1, a contrario, do art.106º, quando conjugado com o nº1 do art.102.

Ora, um dos casos mais badalados e discutidos no âmbito dos negócios jurídicos  (também devido à frequência com que surge na prática), é o caso em que o contrato-promessa tem eficácia meramente obrigacional relativamente a edifício ou fração autónoma.

O busílis da questão, será o de saber se uma vez recusado o cumprimento pelo administrador da insolvência´, o promitente-comprador, beneficiário de traditio, goza ou não do direito ao recebimento do sinal em dobro e da qualificação do seu crédito como garantido por via do direito de retenção.

Aquando a vigência do CPEREF, a antiga norma que se debruçava sobre esta matéria (o contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional) previa no seu artigo 164º-A, nº1, a hipótese de indemnização na extinção do contrato, dependendo dos casos da perda do sinal entregue ou a restituição do sinal em dobro. Esta norma, mais não era do que a aplicação do artigo 442º nº2 do CC no contexto do processo de insolvência.

Atualmente no CIRE é diferente, sendo que a norma que versa o contrato com eficácia meramente obrigacional, ou seja, o art.106º nº2 não fixa diretamente os termos da indemnização, este artigo limita-se apenas a remeter para o art.104º nº5, que por sua vez remete para o art.102 nº3. Contudo a decisão de atribuir ao administrador de insolvência o direito de recusa de cumprimento do contrato-promessa implica desde logo a inaplicabilidade do art.442º do CC. Está claramente patente uma contradição teleológica entre o direito potestativo de recusa de cumprimento do contrato-promessa e o direito subjetivo propriamente dito à restituição do sinal em dobro.

De frisar, que para que haja direito ao sinal em dobro são necessárias três coisas: a primeira será naturalmente o não cumprimento por parte do devedor; segundo este mesmo cumprimento é ilícito; por último, o não cumprimento ilícito seja imputável ao devedor, por ter sido causado com culpa. Uma vez existindo um direito potestativo de recusa de cumprimento do contrato promessa (que foi atribuído ao administrador de insolvência pelo art.106, nº2 em ligação com o art.102º), não existe aqui um dever de cumprir, ora uma vez que não existe tal dever de cumprir, não haverá ilicitude nem culpa, faltando no caso de o cumprimento ser efetivamente recusado pelo administrador de insolvência, a imputabilidade do não cumprimento ao promitente-vendedor e, consequentemente, um dos factos constitutivos do direito ao promitente-comprador.

É aplicável por remissão do nº2 do art.106º com as adaptações, o regime da venda com reserva de propriedade regulado no nº5 do art.104º, que por remissão deste último se reconduz ao regime geral dos efeitos de recusa de cumprimento do nº3 do art.102º. Ora, a contraparte doo insolvente terá direito à diferença entre o valor do objeto do contrato-prometido na data da recusa de cumprimento do contrato-promessa e o montante do preço convencionado atualizado para a data da declaração de insolvência.

A questão agora será a de saber o que acontece ao sinal, sendo que a possibilidade não é contemplada na norma do art.104º nem do art.102º nº3 al c).

Ora, é certo que o sinal não corresponde exatamente ao cumprimento parcial da prestação devida por força do contrato-promessa, pois a constituição de sinal é uma prestação de coisa, já a prestação devida por causa do contrato-promessa é uma prestação de facto jurídico. Este caso terá de se configurar como uma lacuna, será razoável se dizer que aqui se aplica o princípio de que a contraparte tem o direito á diferença de valor entre as prestações mas também terá o direito à restituição daquilo que prestou. Caso não se integrasse esta lacuna por aplicação do art.102º nº3, al. c), seria alcançado o mesmo resultado por aplicação do principio geral do enriquecimento sem causa, que está consagrado no art.473º do CC, em que a obrigação de restituição tem por objeto o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.[4]

Como forma de conclusão, a contraparte do insolvente tem direito à diferença (caso esta seja positiva) entre o valor das duas prestações, sendo uma equivalente ao valor do objeto do contrato-prometido na data da recusa de cumprimento do contrato-promessa e a outra será equivalente ao montante do preço convencionado atualizado para a data da declaração de insolvência, acrescido do sinal. Para MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS esta solução é estranha visto que ela desfavorece o promitente-comprado, em contradição com a lei geral, que dispôs mecanismos para a sua tutela.[5] Dizem NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA e CATARINA SERRA que não se deve estranhar tal decisão, pois num contrato-promessa que se enquadre na insolvência não existe apenas um interesse que se contrapõe a outro, existem pois um conjunto de interesses concorrentes com aqueles, ora uma vez distintos os interesses em presença, os interesses merecedores de tutela reforçada não podem ser os mesmos que o são em situações ordinárias ou perante lei geral.[6]

O crédito é expressamente qualificado como crédito sobre a insolvência, não sendo um crédito garantido, mas sim um crédito comum, estando excluída qualquer possibilidade de o promitente-comprador invocar a titularidade de um direito de retenção sobre a coisa objeto da tradição.

 No sentido de que o direito de retenção se mantém em caso de insolvência, FERNANDO GRAVATO MORAIS escreve, que à luz do artigo 755º, nº1 f) do CC “ o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição do direito real que obteve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 422º do CC”, goza do direito de retenção. Os seus pressupostos são a existência de promessa de transmissão ou de constituição de direito real; a entrega da coisa objeto do contrato-promessa; a titularidade, por parte do beneficiário, de um crédito sobre a outra parte, decorrente do incumprimento do contrato-promessa.

Segundo este autor, é pacífico que os dois primeiros pressupostos se encontram inteiramente preenchidos, contudo, quanto ao último, o problema será o de saber se o incumprimento se poderá imputar à outra parte.
A ideia de imputabilidade deve ser entendida cum granis salis em sede de insolvência, e no exacto sentido de “ter dado causa a”, “ter motivado a”).

A declaração de insolvência, pode ter na base factos-índice do art.20º, nº1, alínea a): a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, a falta do cumprimento que revela a impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das obrigações; a fuga do titular da empresa…, o que permite deduzir essa imputabilidade.

Sendo o direito de retenção, um direito real de garantia, permite ao retentor a não entrega da coisa a quem, em princípio, lhe podia exigir enquanto este não cumprir a obrigação a que se encontra adstrito, ora não seria isso que está em causa nesta situação, pois o direito de retenção não confere tal possibilidade, pois não prejudica a apreensão da coisa que constitui o objeto de tal direito para a massa insolvente, já que a mesma deve ser entregue ao liquidatário. O que constitui, uma fragilidade da situação jurídica do retentor.[7]

Se juntássemos esta situação a perda do direito de retenção, a posição do promitente-adquirente seria bastante fragilizada.

A insolvência é caracterizada nestes termos quando “ a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao inicio do processo de insolvência” (art.186, nº1).

 A lei consagra uma presunção jure et de jure de insolvência culposa, sendo que nas hipóteses no nº3 a presunção é juris tantum.

No ver deste autor, o conceito de “culpa” aqui usado é muito restrito quando confrontado com o do preceito civilista, sustentando que no caso de direito de retenção, o direito da insolvência não altera o regime civilista resultante do art.759º CC, cuja norma foi submetida á apreciação constitucional, tendo sido sempre considerada conforme.[8]

Sustenta MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, o direito de retenção pelo promitente-comprador uma vez que visa garantir o crédito indemnizatório pelo valor, não tem qualquer aplicação no âmbito do 102º nº3.[9]

Carácter imperativo do regime dos arts. 102º a 118º
Na norma do art.119º, que tem como epígrafe “normas imperativas”, vem declarar a inadmissibilidade das convenções de exclusão ou de limitação da disciplina dos efeitos sobre os negócios em curso, vindo também a proibir o funcionamento da insolvência como condição resolutiva dos negócios ou como facto gerador de um direito de indemnização, resolução ou denúncia (nº2 do art.119º).

Contudo, tendo em conta a natureza e o conteúdo das prestações contratuais a insolvência pode consubstanciar uma justa causa de resolução ou de denúncia.

A título exemplificativo: membros de um ACE não podem convencionar que a insolvência é causa de exclusão de um membro insolvente; porém se as prestações contratuais pressupuserem a capacidade financeira sólida ou acima de qualquer suspeita dos membros, pode tornar-se inviável a continuidade de um insolvente no ACE, neste caso a insolvência servirá como justa causa de exclusão.[10]

Jurisprudência
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-03-2012, P 147/11.8TBVLC-B.P1, Relator: Anabela Calafate: “I – Se o contrato-promessa não estiver definitivamente incumprido à data da declaração da insolvência da promitente-vendedora, o promitente-comprador não teria direito ao dobro do sinal que pagou mas gozaria do direito de retenção. II – Se o incumprimento definitivo ocorrer antes da declaração da insolvência, o promitente-comprador tem direito ao dobro do sinal e goza do direito de retenção como lhe é reconhecido pelos art.442º nº2 e 755º nº1 al. f)  do Código Civil.”.

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18-10-2011, P.259/09.8TBNLS-E.C1, Relator: Moreira de Carmo: “1. No regime do Código Civil, o incumprimento do contrato-promessa de compra e venda e a sanção do mecanismo de sinal – art.442º nº2 do CC – estão ligados à imputabilidade do incumprimento. Se tal imputabilidade for do promitente-vendedor este restituir o sinal recebido em dobro; 2. A recusa do administrador de insolvência em executar o contrato não exprime incumprimento mas “reconfiguração da relação”, tendo em vista a especificidade do processo de insolvência, não sendo aplicável a norma do art. 442º, nº2 do CC, pelo que não tem o promitente-comprador direito ao dobro do sinal, até por força do regime imperativo do art.119º do CIRE. 3. O promitente-comprador de coisa imóvel que obteve a traditio, não goza, no atual direito da insolvência, dos direitos reconhecidos pelo CC, no caso de ser imputável ao promitente-vendedor o incumprimento definitivo do contrato-promessa, não sendo aplicável na insolvência o art.442, nº2 do CC, e por isso, também não dispõe o promitente-comprador do direito de retenção, nos termos do art.755º nº1 f) do CC. 4. No caos de omissão total no corpo das alegações dos fundamentos ou razões de discordância com o decidido sobre determinada questão, questão que, todavia, vem a constar nas conclusões do recurso, é de entender que o art. 685º-A nº1 do CPC, se mostra violado, e consequentemente a mesma não tem de ser conhecida pelo tribunal de recurso.”[11]


Por Rui Aires Pereira


Maio de 2014



[1] GRAVATO MORAIS, Fernando in “Contratos-Promessa em Geral. Contratos Promessa em Especial” p.24 e 25.
[2] GRAVATO MORAIS, Fernando in “Contratos-Promessa em Geral. Contratos Promessa em Especial” p.53 e 54.
[3] NUNO PINTO DE OLIVEIRA e CATARINA SERRA “Insolvência e Contrato-Promessa” in ROA ANO 70. p.404.
[4] CATARINA SERRA, “O Regime da Insolvência”
[5] LUÍS MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS “Contratos-promessa e falência/ insolvência – Anotação ao Ac. Do TRC de 17.4.2007, p.61-62 ATRAVÉS de CATARINA SERRA “O Regime Português da Insolvência”.
[6] NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA/CATARINA SERRA “Insolvência e contrato-promesa – os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa com eficácia obrigacional”
[7] GRAVATO MORAIS, Fernando “Cadernos de Direito Privado nº 29” p. 11

[8] GRAVATO MORAIS, Fernando “Cadernos de Direito Privado nº 29” p. 11
[9] ROSÁRIO EPIFÂNIO, Maria “Manual de Direito da Insolvência” p.149
[10] CATARINA SERRA, “O Regime Português da Insolvência”.
[11] Através de M.MARTINS, Luís “Processo de Insolvência” p.302 e disponível em www.dgsi.pt



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