terça-feira, 11 de novembro de 2014

Análise ao Acórdão Transportes Urbanos y Servicios Generales SAL do TJUE





Com data de 26 de Janeiro de 2010, o Tribunal de Justiça (Grande Secção) emitiu a sua sentença para o Processo C-118/2008 que opunha a Transportes Urbanos y Servicios Generales SAL contra a Administración del Estado.

Este processo tinha por objeto uma decisão prejudicial, por parte do Supremo Tribunal Espanhol, acerca da violação por um Estado-membro dos direitos conferidos aos particulares pelo direito comunitário e ainda a obrigação de reparar o prejuízo, ato contrário á Constituição de um Estado-Membro e ato contrário ao direito da União Europeia.

Factos e Tramitação
No presente caso, coloca-se em questão o facto de submeter uma ação fundada em responsabilidade do Estado a diferentes modalidades processuais, no caso de essa ação ter por base a violação legislativa de um norma comunitária ou de uma disposição constitucional, sendo conforme com os princípios comunitários da equivalência e da efetividade.

Assim, a questão em análise foi remetida pela Seção de Contencioso Administrativo do Tribunal Supremo Espanhol, no decorrer de um litígio que opõe a Sociedade Transportes Generales SAL à Administration del Estado, tendo sido julgado improcedente a ação fundada em responsabilidade proposta contra o Estado espanhol por violação legislativa do direito comunitário.

Porém, o litígio teve origem numa lei espanhola, que limitava o direito de um sujeito passivo deduzir o IVA, relativo á compra de bens ou de serviços financeiros através de subvenções e obrigava a apresentar declarações periódicas, nas quais devia calcular os montantes de IVA repercutidos e suportados, procedendo ao mesmo tempo ao pagamento do saldo (autoliquidações), podendo no entanto, pedir retificação das autoliquidações e exigir o reembolso dos pagamentos não devidos, dentro do prazo de quatro anos.

Ora, a referida Lei Espanhola foi declara incompatível com os artigos 17º e 19º da Sexta Diretiva 77/388/CEE[1] e, assim sendo, a Transportes Generales SAL que tinha efetuado autoliquidações, ao abrigo da lei espanhola, respeitantes aos exercícios de 1999 e 2000 e cujo direito já tinha prescrito no momento da prolação do acórdão Comissão/Espanha, veio apresentar um pedido destinado a obter a indeminização do prejuízo sofrido, bem como o reembolso dos montantes a que poderia ter direito nos presentes anos de exercício.

Visto isto, o Conselho de Ministros Espanhol indeferiu o pedido, com base em dois acórdãos do Tribunal Supremo, dos quais resulta que “as ações fundadas em responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário estão sujeitas a uma regra de esgotamento prévio das vias de recurso, administrativas e judiciais, contra o ato administrativo lesivo, adotado em aplicação de uma lei nacional pretensamente contrária ao direito comunitário, e baseando-se ainda, na falta de impugnação no prazo fixado de quatro anos.

Após isto, a recorrente interpôs recurso da decisão do Conselho de Ministros no Tribunal Supremo, que indeferiu o seu pedido de indeminização, e reenviou para o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a título prejudicial, a seguinte questão:
 “É contrário aos princípios da equivalência e da efetividade o facto de o Tribunal Supremo do Reino de Espanha, nos acórdãos de 29 de Janeiro de 2004 e de 24 de Maio de 2005, aplicar a ações fundadas em responsabilidade do patrimonial do Estado legislador, baseadas em atos administrativos adotados ao abrigo de uma lei declarada inconstitucional, uma disciplina diferente da que reserva a ações baseadas em atos adotados ao abrigo de uma norma declarada contrária ao direito comunitário?” .

Análise
Admissibilidade da questão prejudicial
Contrariamente aquilo que o Governo espanhol sustenta, a respeito da questão prejudicial e que efetivamente não colhe razão, não existe nenhum limite quanto á natureza das normas nacionais que podem ser indiretamente postas em causa no âmbito de um reenvio prejudicial destinado a obter a interpretação do direito comunitário podendo estas serem, perfeitamente, de origem jurisdicional.

Enfim, cabe unicamente ao juiz nacional, e que conhece o processo, apreciar a necessidade de uma decisão prejudicial, tal como as suas questões ao TJUE, sendo que caso esteja em causa interpretação do direito comunitário o Tribunal é obrigado a pronunciar-se.

Assim, como o Tribunal Supremo considera necessária a decisão prejudicial, para poder proferir a sua decisão está é, obviamente, admissível.

Principio da efetividade
O princípio da efetividade do Direito da União Europeia “postula que as autoridades nacionais devem garantir o efeito útil das disposições europeias”[2] sendo, portanto, um principio corolário do princípio da lealdade.

Visto isto, e no presente caso, o facto de submeter a ação fundada em responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário ao esgotamento prévio das vias de recurso, administrativas e judiciais, contra o ato administrativo na origem prejuízo, adotado com fundamento na lei contrário ao direito comunitário, não infringe o principio da efetividade da proteção jurisdicional, pois a jurisprudência em causa do Tribunal Supremo é sustentada pelo facto de que a pessoa lesada poderia ter obtido a reparação da totalidade do prejuízo invocado se tivesse contestado em tempo útil a validade do ato que está na origem do prejuízo.

Portanto, a Transportes Generales SAL poderia ter pedido, como a legislação espanhola lhe permitia, no prazo de quatro anos a retificação das suas autoliquidações relativo as aos exercícios de 1999 e 2000 e o reembolso dos pagamentos indevidos de IVA efetuados, e que acabou por não o fazer. Perante isto, a recorrente principal condiciona a admissibilidade da ação fundada em responsabilidade do Estado legislador por violação do direito comunitário à impugnação prévia do ato administrativo na origem do prejuízo levando, com fundamento na lei contrária ao direito comunitário, o Tribunal Supremo limitar-se a submeter ação fundada em responsabilidade ao exercício de repetição do indevido a que a recorrente no processo principal dispunha.

Em suma, o prazo de quatro anos previsto na legislação espanhola respeita o princípio a efetividade.

Princípio da equivalência
Este princípio “postula que as autoridades nacionais devem assegurar que as pretensões decorrentes do direito da União Europeia resultam tão protegidas quanto as pretensões decorrentes do direito nacional – o que amplia consideravelmente os poderes do juiz, pois se o direito nacional não oferece recurso efetivo ao particular, o juiz o deve criar”[3].

Desta forma, coloca-se a questão se as diferentes modalidades processuais, a que o direito espanhol submete a ação fundada em responsabilidade do Estado legislador, caso esta viole o direito comunitário ou resulte de inobservância da constituição, não infringem o princípio da equivalência.

É certo, que o requisito do esgotamento prévio das vias de recurso contra o ato lesivo da Administração adotado em aplicação da lei apenas se encontra previsto para as ações fundadas em responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário, e não para as ações baseadas em violação legislativa da constituição.

No entanto, para que se aplique o princípio da equivalência, é necessário que as duas ações sejam parecidas sendo, assim, necessário compará-las do ponto de vista do seu objeto, da sua causa de pedir e dos seus elementos essenciais. Ora, visto que as duas ações partilham o mesmo objeto (indeminização do prejuízo) e da mesma causa de pedir (ilicitude do comportamento lesivo), deve-se determinar se a ação fundada em responsabilidade do Estado por violação legislativa do direito comunitário difere, nos seus elementos essenciais, da ação fundada em responsabilidade do Estado por inobservância da Constituição pela lei, a ponto de justificar o diferente tratamento processual que é aplicado pela lei espanhola.

Assim, para justificar esta diferença de tratamento processual entre as duas ações, o órgão jurisdicional de reenvio considera que para o litigante, é mais difícil pôr em causa a constitucionalidade de uma lei do que a sua compatibilidade com o direito comunitário.

É verdade, na jurisprudência que os efeitos de um acórdão prejudicial de interpretação são, em princípio, retroativos tendo em conta a natureza declarativa: a interpretação de uma norma comunitária dada pelo Tribunal de Justiça clarifica, precisa o significado e o alcance da referida norma tal como esta deveria ter sido entendida e aplicada a partir da sua entrada em vigor, pelo que essa interpretação retroage à data da entrada em vigor da norma interpretada, e ao ser interpretada desse modo, deve ser aplicada mesmo em relações jurídicas nascidas e constituídas antes de ter sido proferido o acórdão do Tribunal de Justiça.

Concomitantemente, mas por seu lado, relativamente aos efeitos dos acórdãos do Tribunal Constitucional que declaram uma lei como inconstitucional implica a nulidade da mesma, ou seja, o seu desaparecimento externo.
Consequentemente, não existe diferença clara entre os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma lei nacional pelo Tribunal Constitucional Espanhol e os acórdãos prejudiciais de interpretação do Tribunal de Justiça.

Paradoxalmente, o Tribunal Supremo considera ainda que a impugnação do ato lesivo seria mais frágil quando este tivesse sido adotado em aplicação de uma lei contrária ao direito comunitário, do que quando tivesse sido adotado com fundamento numa lei inconstitucional, está ligada a uma presunção de constitucionalidade de que a lei espanhola goza.

Em suma, na realidade, é apenas perante a Administração que a proteção contra a lei incompatível com o direito comunitário é incontestavelmente mais forte do que a proteção contra a lei inconstitucional.

Contudo, e de forma, a não ser violado o princípio da equivalência, essa diferença não é tal que justifique que a ação fundada em responsabilidade do Estado por violação legislativa do direito comunitário dependa do esgotamento prévio de todas as vias de recurso, contra o ato administrativo adotado com fundamento na lei, quando o mesmo não é imposto no caso de uma ação fundada em responsabilidade legislativa da constituição pela lei.

Conclusão
Por fim, conclui-o o Tribunal de Justiça da União Europeia (Grande Secção) que:
“O direito da União opõe-se a uma regra de um Estado-Membro, por força da qual uma ação fundada em responsabilidade do Estado por violação desse direito por uma lei nacional, declarada por um acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia proferido no âmbito do artigo 226.° CE, só pode proceder se o demandante tiver esgotado previamente todas as vias de recurso internas destinadas a contestar a validade do ato administrativo lesivo, adotado com fundamento nessa lei, quando a mesma regra não é aplicável a uma ação fundada em responsabilidade do Estado por violação da Constituição pela mesma lei, declarada pelo órgão jurisdicional competente.”.

Na minha opinião a conclusão do TJUE para este caso em particular é a mais acertada, pois, para além de tudo referido anteriormente deveremos ter ainda em atenção o princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito Nacional, “que implica a não aplicação do direito nacional incompatível com o Direito da União, a supressão ou reparação das consequências de um ato nacional contrário ao Direito da União, e a obrigação de os Estados-Membros fazerem respeitar o Direito da União”[4].



Por Pedro Pinheiro


Janeiro de 2012



[1] Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme  
[2] Silveira, Alessandra, Princípios de Direito da União Europeia, Doutrina e Jurisprudência, 2ª Edição (Atualizada e Ampliada), Quid Juris, 2011, pág. 104  
[3] Silveira, Alessandra, Princípios de Direito da União Europeia, Doutrina e Jurisprudência, 2ª Edição (Atualizada e Ampliada), Quid Juris, 2011, pág. 104 e 105  
[4] Silveira, Alessandra, Princípios de Direito da União Europeia, Doutrina e Jurisprudência, 2ª Edição (Atualizada e Ampliada), Quid Juris, 2011, pág. 104  



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