segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Endividamento local - a comparação entre os regimes das Leis 73/2013 e 2/2007






As autarquias portuguesas gozam de dignidade constitucional, sendo consideradas pessoas colectivas de população e território dotadas de órgãos representativos que visam a prossecução dos interesses próprios, comuns e específicos das respectivas populações. Daqui se retira o seu importantíssimo papel: se é verdade que o Estado português se constitui com um ente unitário, não menos verdade é a afirmação de que as autarquias são autónomas.

Verifica-se, por isso, a descentralização. Opera-se, com a existência do poder local, uma aproximação às populações, cujos interesses são prosseguidos de forma mais eficiente – basta pensar nas diferenças existentes na governação de uma grande cidade costeira em contraposição à de uma pitoresca vila interior.

É ponto assente que as atribuições a que os municípios estão adstritos convocam grande esforço financeiro. Se o Estado central transfere competências aos municípios, exigindo-lhes que proporcionem uma miríade de serviços municipais, há de também permitir que as autarquias se financiem, para prosseguir tais incumbências.
No entanto, o descrédito com que as populações olham as finanças municipais (e acima de tudo quem as gere) é um problema grave que provoca tumulto inegável no seio da sociedade civil portuguesa.

E parece, em boa verdade, ainda mais correcta a afirmação de que as autarquias portuguesas padecem de profundos desequilíbrios financeiros, com dívidas assombrosas e quase pornográficas.

É, com propriedade, imperativo que a Lei das Finanças Locais enquadre de forma jurídica adequada o endividamento autárquico logrando manter as dívidas controláveis e estáveis.

Dito isto, propõe-se uma humilde e telegráfica análise ao regime de endividamento previsto na nova Lei das Finanças Locais em comparação com o regime transacto da lei 2/2007.

ENQUADRAMENTO
A autonomia financeira das Autarquias Locais prevê-se no art.º238º da CRP, em homenagem ao princípio da independência orçamental. De facto existe separação entre o orçamento local e o orçamento estadual, além de que o orçamento local é executado na máquina financeira própria, com arrecadação e realização de despesa por meios fiscais locais e com pessoal próprio.

Tem-se, assim, que o Estado apenas interfere na gestão financeira dos municípios e das freguesias de forma meramente inspectiva[1] em acções que só podem ser exercidas segundo as formas e nos casos expressamente previstos na lei.

É na LFL que as autarquias vêm a sua, constitucionalmente consagrada, autonomia financeira concretizada.

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS APLICÁVEIS AO DIREITO FINANCEIRO LOCAL
Conhecer a dimensão principiológica do Direito Financeiro é meia travessia para o entender. As razões de ser de determinados dispositivos só ficam claras quando temos em linha de conta o raciocínio que o legislador levou a cabo, ao confrontar soluções, com princípios orientadores.

Vejamos, infra os princípios mais estreitamente ligados ao Direito financeiro local que, pela sua magna importância, o legislador curou de elencar no art. 3º da LFL[2] (além da análise a que se procede de outros princípios intrínsecos não referidos pelo legislador).

Princípios fundamentais
Princípio da autonomia
O princípio da autonomia plasma, em primeiro lugar, a independência conferida pelo legislador ao reconhecer atribuições e competências às autarquias e, bem assim, o aparato necessário à sua exequibilidade[3]. De facto, é necessário que a autarquia, pela proximidade de que goza com as populações, seja autónoma, dotada de órgão deliberativos e executivos, para melhor acudir aos interesses das gentes residentes na sua área geográfica.

Falamos, assim, de uma autonomia geral da autarquia que engloba os seus poderes de emanar normas regulamentares e praticar uma miríade de actos administrativos.

Além de uma autonomia geral, a autarquia necessita de dinheiros para prosseguir o interesse público. Com efeito, e conforme o art. 6º da nova LFL as autarquias têm património e finanças próprios, assim como uma gestão conduzida por órgãos e pessoal da respectiva autarquia[4].

É, no entanto, também de sublinhar que autonomia não é sinónimo de uma cega independência, já que a autarquia, apesar de arrecadar dinheiros originariamente, depende em larga medida das transferências estaduais além de que existem diversos limites jurídicos à autonomia financeira local como a proibição de défices excessivos e o controlo e a tutela financeiros.

Princípio da transparência
Este princípio plasma a transparência que deve existir na actuação financeira da autarquia. Deste modo, tem a autarquia o dever de partilhar as informações da sua actividade com o Estado central e, bem assim, com os cidadãos[5], dando assim corpo a duas linhas condutoras.

 Em primeiro lugar à exigência que o Estado faz de proceder ao controlo das acções autárquicas, e por outro conferindo democraticidade pela participação dos munícipes.

Importa, a propósito da informação devida às populações, referir o subprincípio da publicidade[6], exigindo-se para determinados actos, a afixação em local visível nos edifícios municipais, assim como a publicação no sítio da internet do respectivo município.

Princípio da solidariedade nacional recíproca
As autarquias, como células que são da grande máquina do Estado, devem cumprir o dever solidário de contribuir para o equilíbrio das contas, assim como o Estado deve procurar uma distribuição óptima dos recursos[7].

Tem, pelo resultado que se procura com a aplicação deste princípio, grande interesse referir a perequação: uma redistribuição, tanto vertical (transferências Estado – autarquias), como horizontal (transferências intermunicipais) dos recursos financeiros.

Princípio da igualdade[8]
O princípio da igualdade, como directiva maior do nosso Estado, aplica-se, também ele, às autarquias.

Pense-se na desigualdade vincada que, naturalmente existe, entre os municípios do litoral e os do interior. Há toda uma série de condições adversas a que estão sujeitos os segundos que importa atenuar, por forma a atingir uma maior igualdade, atenuando a desigualdade.

Veja-se a este propósito o nº 4 do art. 10º[9] que se refere ao equilíbrio horizontal: tentar promover a correcção de desigualdades que existem entre os diferentes entes autárquicos.

Princípio da livre iniciativa económica[10]
Como qualquer outro agente económico, é dada a faculdade às autarquias locais, de terem iniciativa empresarial e de praticarem actos comerciais. Pense-se, por exemplo, numa empresa de fornecimento de água, detida por uma autarquia, em que esta actua no mercado com as prorrogativas de qualquer fornecedor privado.

Princípio da equidade intergeracional
Este princípio, previsto no art. 9º da nova LFL[11] é de suma importância. Apela-se aqui a uma consideração séria, consciente, enquadrada numa perspectiva sistemática de distribuição de custos e benefícios por forma a não onerar excessivamente as gerações futuras.

Pense-se, a propósito, num endividamento autárquico desregrado, cujo pagamento impenderá sobre a geração seguinte, que, não raro, nem chega a poder usufruir do bem que levou à dívida…

DESÍGNIOS ORIENTADORES DO ENDIVIDAMENTO
O legislador consagrou princípios pelos quais o endividamento se deveria reger, nomeadamente o rigor e a eficiência, tanto na Lei 2/2007 como na Lei 73/2013, respectivamente nos arts. 35º e 48º[12].

O endividamento deve ser levado a cabo tendo em vista a melhor solução possível, tendo presente o esforço que futuramente será necessário fazer para proceder à liquidação da dívida (e por isso, respeitando a geração vindoura), mas também sem proceder ao sufoco da actual geração, com prazos de amortização excessivamente reduzidos.

Com efeito, estas exigências têm por fim a:
a) Minimização de custos directos e indirectos numa perspectiva de longo prazo;
b) Garantia de uma distribuição equilibrada de custos pelos vários orçamentos anuais;
c) Prevenção de excessiva concentração temporal de amortização;
d) Não exposição a riscos excessivos.

AS FORMAS DE FINANCIAMENTO DAS AUTARQUIAS
As autarquias dispõem de variadíssimos meios de financiamento para fazer face às suas incumbências legais. Vejamos de que formas arrecadatórias dispõem os municípios e freguesias.

FINANCIAMENTO DOS MUNICÍPIOS
A Lei nº 2/2007 consagrava as formas de arrecadação de receita no seu art. 10º, disposição que encontra correspondência, quase inalterada, no art. 14º na nova Lei 73/2013:
a)     O produto da cobrança do IMI;
b)     O produto da cobrança das derramas[13];
c)      A parcela do produto do IUC que cabe aos municípios;
d)     O produto da cobrança de taxas e preços por serviços prestados pelo município;
e)      O produto na participação nos recursos públicos;
f)        O produto da cobrança de encargos de mais-valias destinados ao município;
g)     O produto de multas e coimas que caibam ao município;
h)      O rendimento de bens próprios e administrados pelo município;
i)        A participação nos lucros societários em que o município tome parte;
j)        O produto de liberalidades em favor do município;
k)      O produto da alienação de bens próprios;
l)        O produto de empréstimos;
m)    Outras receitas estabelecidas por lei ou regulamento.

FINANCIAMENTO DAS FREGUESIAS
Os meios de financiamento das freguesias encontravam previsão legal no art. 17º antiga Lei com correspondência (com alterações, como, aliás, se verá) no art. 23º da nova LFL.
a)     O produto da receita do IMI sobre prédios rústicos e uma participação no valor de 1% no produto da receita do IMI sobre prédios urbanos[14];
b)     O produto da cobrança de taxas por serviços prestados pela freguesia;
c)      O rendimento de mercados e cemitérios da freguesia;
d)     O produto de multas e coimas que caiba à freguesia;
e)      O rendimento de bens próprios;
f)        O produto de liberalidades em favor da freguesia;
g)     O produto da alienação de bens próprios;
h)      O produto de empréstimos de curto prazo[15];
i)        O produto da participação nos recursos públicos[16];
j)        Outras receitas estabelecidas por lei ou regulamento.

AS RECEITAS NÃO EFECTIVAS EM PARTICULAR
É evidente que quando nos referimos às dívidas de uma autarquia, nos referimos a tudo aquilo que ela deve, incluindo dívidas a fornecedores, a funcionários e pagamento de empréstimos.

No entanto, deve dar-se relevância às receitas creditícias, já que estas levam ao envidamento em sentido restrito, posto que a acepção supra referida se prende com uma visão ampla de endividamento[17].

Pois bem, é uma realidade não ignorada pelo legislador que as autarquias têm de recorrer ao crédito como forma de financiamento. Prova disso é a consagração dos empréstimos, incluindo a emissão de obrigações, como forma de receita conforme estatui a alínea l) do artº 14º da nova LFL[18].

Ora, estas receitas devem ser entendidas como receitas não efectivas. Com efeito, e ao contrário da receita que, por exemplo aflui por via de taxas ou rendimentos do património da autarquia, as receitas de crédito possibilitam a entrada pecuniária nos cofres locais presentemente, mas, em contrapartida, aumentam as responsabilidades para com a entidade prestadora do crédito, futuramente.

Vejamos, mais demoradamente, os diferentes tipos de receita creditícia nos pontos subsequentes.

EMPRÉSTIMOS
Para fazer face às exigências financeiras das suas atribuições, uma autarquia pode recorrer a um empréstimo: aflui dinheiro nos cofres locais com a contrapartida de o reembolsar em ulterior momento, com o acréscimo do juro.

Nos termos do nº 1 do art. 49º da nova LFL, mantém-se a mesma discricionariedade legal que se verificava no art. 38º da lei de 2007: quem pode conceder crédito são as entidades que a lei autorizar.

Como é bom de ver, um empréstimo é um meio perigoso de financiamento. Constitui uma tentação, na medida em que há entrada rápida de dinheiros, sendo que a sua reposição se dá num momento mais apartado, situação que leva até a uma realidade principiologicamente e até moralmente atentatória: poderão ser as gerações vindouras a ser oneradas com o pagamento.

Para proceder a um estrangulamento desta realidade, o legislador opera limites aos empréstimos, operando-se uma diferenciação escalonada quanto ao tempo disponível para o reembolso, máxime, a maturidade do empréstimo.

Empréstimos de curto prazo
Estes empréstimos são aqueles cuja maturidade vai até um ano[19]. E surge, logo aqui a primeira imposição legal: apenas se pode recorrer a estes empréstimos para ocorrer a dificuldades de tesouraria[20], segundo o nº 1 do art. 50º da nova lei com correspondência no nº 3 do art. 38º da lei de 2007.

 Por ser um empréstimo de curta maturidade, e até com certo grau de urgência, como aliás se referiu, ele goza de um processo marcadamente célere: a sua aprovação é feita pela assembleia municipal, na sua sessão anual de aprovação do orçamento, para todos os empréstimos a serem contraídos pelo município na vigência do orçamento, segundo o art. 50º, nº2[21].

Empréstimos a médio e longo prazo
Em primeira linha, enquanto a Lei 7/2007 impunha um prazo máximo de maturidade ao empréstimo de médio prazo, de 10 anos (sendo que o de longo prazo se estabelecia como superior a 10 anos, sem limite máximo)[22], o legislador faz desparecer este limite na nova lei, referindo-se aos empréstimos de médio e longo prazo, como aqueles com maturidade superior um ano, conforme dispõe o nº 2 do seu art. 49º.

Além disso, e tal como nos empréstimos de curto prazo, há finalidades taxativamente previstas, para as quais podem acorrer os empréstimos. Assim, podem ser prosseguidos os seguintes objectivos:

Aplicação em investimentos[23]
Cabem aqui as situações em que a autarquia pretende investir, por exemplo, na requalificação de uma avenida ou na construção de um parque industrial. É evidente que o dinheiro emprestado tem de ser aplicado no futuro investimento pretendido e não num outro desiderato.

Recuperação financeira municipal[24]
Na recuperação financeira podem subsumir-se dois conceitos distintos: Por um lado, o saneamento financeiro, que se prende com uma conjuntura de desequilíbrio. A imprecisão que se pode apontar a este conceito é afastada pela enumeração taxativa de situações de desequilíbrio conjuntural enunciadas no nº 1 do art. 58º da LFL[25].

Por outro lado, a recuperação financeira, stricto sensu. Nestes casos já não se tem em vista fazer face a um desequilíbrio de conjuntura, mas antes a um desequilíbrio estrutural. Esta é uma situação, que, como bem se depreende, é gravíssima, estando aqui em causa um “cancro financeiro” de tal modo agudo que pode mesmo conduzir a uma situação de ruptura (nos termos do nº 2 do art. 61º da nova LFL, haverá ruptura quando a dívida total seja superior, em 31 de Dezembro de cada ano, a 3 vezes a média da receita corrente líquida cobrada nos últimos 3 anos).

ABERTURAS DE CRÉDITO
O empréstimo é uma figura substancialmente diferente da abertura de crédito. Em linhas simplistas a abertura de crédito é o instituto usado quando a autarquia, não conhece a quantia que quer usar nem por quanto tempo a pretende usar. Com a abertura da linha creditícia, a autarquia dispõe, assim, de financiamento dependente apenas da sua vontade (limitada, evidentemente), podendo usar o montante nas circunstâncias que melhor sirvam os seus interesses.

Ora, é mister afirmar aqui, que, tendo em conta a pouco invejável fama de “má pagadora” de que gozam a maioria das autarquias portuguesas, parece improvável nos tempos que correm a disponibilização de linhas de crédito por parte de uma instituição bancária a um ente autárquico…

Resta dizer que o regime das aberturas de crédito, previsto na lei 7/2007 no nº 2 do art. 38º e no nº 1 do art. 49º da nova lei tem um trato equiparado por parte do legislador, aplicando-se-lhes as mesmas regras.

EMISSÃO DE OBRIGAÇÕES
Este mecanismo admitido no art. 49º, nº 1 da nova lei e no nº 1 do art. 38º da sua antecedente (considerado por ambas como um empréstimo de médio e longo prazo) é um instituto financeiro sui generis: a autarquia emite títulos de dívida que são adquiridos por investidores, obrigando-se a autarquia ao reembolso acrescido do pagamento de juros.

Prescinde-se, assim da intermediação de uma entidade concessora de crédito (na maioria das vezes uma instituição bancária) para aceder ao crédito directamente de investidores.

A, já longínqua, Lei nº42/98 levou a uma certa permissividade. De facto, foram tempos desregrados em que as Autarquias gastavam bem mais do que podiam, recorrendo a empréstimos sobre empréstimos, entrando num vertiginoso ciclo de dívida crónica. Foi nesse contexto que surgiu a Lei nº2/2007, muito mais controladora do endividamento autárquico, substituída agora pela Lei nº73/2013, que também ela segue aquele desígnio.

O ENDIVIDAMENTO DAS AUTARQUIAS
O endividamento das autarquias é gerador de preocupação crescente no meio político e civil, e alvo de acesos debates. Assim é, pois está em causa um assunto fracturante: por um lado fazer face às exigências da presente geração, sem no entanto asfixiar a futura.

Tendo em conta a sensibilidade da questão, o legislador curou de criar um regime jurídico controlador do equilíbrio orçamental autárquico.

ENDIVIDAMENTO DOS MUNICÍPIOS
ENDIVIDAMENTO LÍQUIDO E ENDIVIDAMENTO DE MÉDIO E LONGO PRAZO
Já em ponto anterior[26] se teve oportunidade de fazer referência à diferença entre a acepção ampla e restrita de endividamento. De facto, a arrumação não é doutrinária, muito menos estética. É, ao invés, da maior importância. Enquanto a acepção ampla se prende com o conceito de endividamento líquido, cabendo aqui todos os passivos municipais, a acepção restrita refere-se ao endividamento de médio e longo prazo, portanto com referência apenas ao passivo gerado por via dos empréstimos de médio e longo prazo.

Repare-se no entanto, que desde a lei de 2007, a sua sucessora, fez esta diferenciação perder importância, já que, como veremos, prefere a expressão dívida total, referindo-se em todos os normativos à globalidade da dívida autárquica.

Limites ao endividamento líquido
Operou-se, desse modo, e em traços largos um limite para o endividamento líquido: no artigo 37º, nº1 da LFL, estatuiu-se que o montante do endividamento líquido de cada município, em 31 de Dezembro, não poderia ultrapassar o montante 125% das receitas provenientes dos impostos municipais, das participações do Município no Fundo de Equilíbrio Financeiro, da participação no IRS, da Derrama e da participação nos resultados das entidades do sector empresarial local, relativas ao ano anterior.

Ora, a Lei nº73/2013, no seu artigo 52º, vem operar uma mudança no critério aferidor limitativo da dívida. Deste modo refere: a dívida total de operações orçamentais do município, não pode ultrapassar, em 31 de Dezembro de cada ano, 1,5 vezes a média da receita corrente líquida cobrada nos três exercícios anteriores.
Daqui retira-se e denota-se, com propriedade, uma mudança em relação ao anterior regime:

Em primeira linha, a anterior lei não levava em linha de conta todas as receitas como termo comparativo para impor o seu limite, referindo, ao invés, as receitas que jogam no seu critério aferidor, taxativamente[27]. Por seu turno, a nova LFL, refere a “receita corrente líquida”. Noutras palavras, leva em linha de conta todas as formas de arrecadação (impostos, preços, taxas, empréstimos) do próprio período financeiro.

Por outro lado, enquanto a Lei de 2007 se refere as receitas arrecadadas no ano anterior, a nova Lei, de 2013, reporta-se aos três exercícios anteriores. Daqui se retira, evidentemente, um aspeto da malha controladora do legislador: impondo a regra dos três anos transactos, a lei parece apelar a um critério de endividamento mais sistemático e sustentável.

Limites ao endividamento de médio e longo prazo
A lei 7/2007 previa no seu art. 39º nº 2 os limites impostos aos empréstimos de médio e longo prazo. Por seu turno, na nova LFL, o legislador optou por não autonomizar esta realidade, não criando norma com paralelo à do anterior regime.

Na verdade a nova lei limita-se a impor um limite à dívida total no seu art. 52º[28], definindo-a no nº 2 como a globalidade dos empréstimos, contractos de locação e dívidas a terceiros.

ENDIVIDAMENTO DAS FREGUESIAS[29]
As freguesias, têm, em relação aos municípios um handicap, que aliás bem se compreende pela sua menor dimensão.

 Apenas podem contrair empréstimos de curto prazo (assim como abrir linha de crédito com prazo máximo de amortização de um ano).

Quanto às dívidas a terceiros (por exemplo, fornecedores, empresas de construção), e segundo o nº 8, a dívida não pode exceder 50% das receitas totais arrecadadas no ano anterior.

CONSEQUÊNCIAS DE DESRESPEITO DOS LIMITES
Uma empresa, atingindo um determinado nível de endividamento gravíssimo, vê-se a ser, não raro, declarada como insolvente. Pois bem, esta consequência nunca poderá ocorrer quando nos referimos a uma autarquia.

O nº 2, alínea a), do art. 2º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas é bem claro ao estabelecer que uma pessoa colectiva de direito público não pode ser objecto de um processo de insolvência. E bem se percebe porquê: o interesse público está em causa.

No entanto existem consequências ao desrespeito dos limites de endividamento autárquico. Vejamos:

Se um município desrespeitar o limite estabelecido pelo nº 1 do art. 52º deve, nos termos da alínea a) do nº 3, reduzir no exercício subsequente, pelo menos 10% do montante em excesso, até ao cumprimento do limite[30].

O Tribunal de Contas pode recusar-se a dar visto a empréstimos, por endividamento excessivo[31].

Pode ocorrer a dissolução do órgão autárquico nos termos da alínea g) do art. 9º da Lei 27/96.

Nos termos dos arts. 57º e seguintes da nova LFL, o município pode ser obrigado a recorrer a um mecanismo de recuperação financeira.

CONCLUSÕES
Apesar da sua localização geográfica, entalado entre dois gigantes, o Atlântico e Espanha, que sempre o puseram à margem do grande círculo de decisões europeias, Portugal sempre foi um país que dispôs de dinheiro, muito dinheiro.

D. João V era chamado de “Rei-Sol português”, tal era a quantidade impressionante de outro que afluiu ao território naquele tempo. A entrada na CEE proporcionou receitas que lançaram as fundações do Cavaquismo, com a construção de milhares de infra-estruturas. Portugal possui, ainda hoje, apesar de muito dele ter vindo a ser desbaratado ao longo dos últimos anos, mais ouro nos seus cofres que o Brasil!

Ora, parece não despiciendo afirmar que o problema de Portugal não é, nem nunca foi, a falta de dinheiro. O problema sempre residiu na sua gestão e aplicação deficiente, desregrada e egoísta.

E esta é uma realidade espelhada nas autarquias portuguesas, como unidades de aproximação que são, com desequilíbrios financeiros congénitos e de dificílima resolução. É por isso natural que o legislador mostre preocupação arreigada quanto ao endividamento autárquico (até porque se vê pressionado pelos imperativos de Bruxelas).

O endividamento das autarquias, que faz correr muita tinta, e gera avultadas agitações políticas e sociais, é um problema gravíssimo, até porque, não raro, é levado a cabo para a construção dos chamados “elefantes brancos”, obras faraónicas, de captação de eleitorado, e não em investimentos com maior efectividade, de dinamização da economia, geradores de proveitos.

Tendo isto em conta, o legislador segue o desígnio da lei predecessora da actual, restringindo o recurso ao crédito e implementando sanções, quando o limite de endividamento não é cumprido, defendendo-se o desenvolvimento sustentável, o equilíbrio financeiro e as gerações futuras.

Parece-me, no entanto, crucial num futuro próximo proceder a uma alteração nuclear: uma maior responsabilização de quem gere os órgãos locais, com pesadas sanções penais, por forma a proceder a uma dissuasão da má gestão que se vem verificando.

Os mecanismos adoptados pela lei 7/2007, e mantidos no seu núcleo duro na nova LFL parecem corresponder à exigência constitucional de autonomia, tanto normativa e administrativa, como financeira. Mas também é verdade que a lei deve tentar estrangular o endividamento para que este se faça de forma responsável.

Se é certo que é imperativo permitir o acesso ao crédito, mais certo é rodeá-lo de cautelas e regimes bem definidos por forma a evitar desequilíbrios cataclísmicos.



Por José Vieira de Castro


Janeiro de 2014



[1] Em cumprimento, aliás, do princípio plasmado na alínea i) do nº2 do art. 3º da nova LFL. 
[2] Elenco também previsto na anterior LFL.
[3] Autonomia que a CRP consagra no nº 1 do seu art. 6º.
[4] Cfr. o nº 1 do art. 238º da CRP.
[5] Cfr. o disposto no art. 7º da nova LFL e nº 5, do art. 4º da anterior LFL.
[6] Cfr. art. 79º da nova LFL e o art. 49º da Lei 7/2007.
[7] Art. 8º da nova LFL e art. 4º, nº 4 da Lei 7/2007.
[8] Apesar de não se encontrar previsto no elenco da LFL, é aplicável, naturalmente como trave mestra do nosso Estado de Direito.
[9] Na anterior LFL no nº3 do art. 7º.
[10] Princípio não elencado, mas intrinsecamente previsto, por exemplo, no art. 75º, nº 6 e art. 79º, nº 2.
[11] Anteriormente previsto no nº 3 do art. 4º.
[12] Os princípios orientadores do endividamento na nova LFL são um decalque perfeito dos princípios constantes da lei anterior.
[13] A derrama, conforme disposição do art. 18º da Lei 73/2013, art. 14º da antiga Lei, será o instituto em que o município delibera arrecadar para si até ao limite máximo de 1,5% sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC).
[14] Opera-se aqui com a nova Lei uma solução generosa comparativamente ao regime legal anterior em que as freguesias apenas tinham direito a “50% do produto da receita do IMI sobre prédios rústicos”.
[15] As freguesias vêm-lhe vedadas empréstimos de médio e longo prazo, apenas acedendo a empréstimos de curto prazo que devem ser amortizados, segundo o art. 50º da nova LFL, “até ao final do exercício económico em que foram contraídos”.
[16] Este método de financiamento não encontrava paralelo na anterior LFL.
[17] Ver FREITAS DA ROCHA, Joaquim, Direito Financeiro Local (Finanças Locais), p. 166.
[18] Cfr. art. 10º, alínea l) da anterior lei.
[19] Cfr. o art. 49º, nº 2 da nova LFL e o art. 38º, nº2 da Lei 7/2007.
[20] Tem-se aqui em vista ao situações em que o problema não é estrutural, mas momentâneo, sendo necessário dinheiro imediatamente,  para fazer face à cobertura despesista.
[21] Com correspondência química no nº 7 do art. 38º da anterior LFL.
[22] Cfr. art. 38, nº 2 da referida lei.
[23] Cfr. art. 38º, nº 4 da Lei 7/2007 e art. 51º, nº1 da Lei 73/2013.
[24] Cfr. o nº1 no art. 51º da nova LFL, subdividido na anterior lei, no seu art. 38º, nº4 em saneamento e reequilíbrio.
[25] Na anterior lei aquelas situações vinham previstas no nº 4 do art. 3º do DL nº 38/2008 (entretanto alterado entretanto pelo DL 120/2012 de 19 de Junho).
[26] Vide ponto 5.
[27] Repare-se, por exemplo, que não são referidas as taxas por serviços prestados pela autarquia.
[28] Limite esse, já discorrido supra.
[29] Regime jurídico previsto no art. 55º da nova LFL, quase inalterado por contraposição com o art. 44º da Lei 7/2007.
[30] A ultrapassagem do limite ao endividamento líquido da anterior lei tinha a mesma consequência, conforme o nº 2 do seu art. 37º.
[31] Cfr. Ac. Tribunal de Contas 112/08.



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