O Contrato de Compra e Venda de Coisa Defeituosa
Os
artigos 913.º a 922.º do Código Civil estabelecem o regime relativo à venda de
coisas defeituosas. Importa desde já realçar que o artigo 913.º, no seu número
1, estabelece uma remissão para o regime da venda de bens onerados[1] em tudo
aquilo que não seja alterado pelo previsto nos artigos que se dedicam ao regime
da venda de coisas defeituosas, sempre com as devidas adaptações.
Consideram-se
abrangidas por esta secção do Código Civil, a venda de coisas que:
- Sofram
de “vício que a desvalorize ou
impeça a realização do fim a que é destinada”;
- “Não tiverem as qualidades asseguradas
pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim”[2].
Tal
remete-nos pois para a existência de uma disparidade relativamente àquilo que o
vendedor - aquele que tem a obrigação de entregar a coisa, e o direito de receber
o pagamento de um preço - disponibilizou ao comprador - a parte que tem que pagar
o preço -, aquilo que inicialmente constaria do contrato de compra e venda
celebrado.
O Defeito
Da
transcrição do artigo referido supra
merece total atenção o facto de se sujeitarem ao mesmo regime, da compra e venda
de coisa defeituosa, os vícios da coisa, assim como a falta de qualidade da
mesma. Deste modo, equipara-se o vício - falta de qualidade material da “coisa”
- à falta de qualidade da coisa para o uso específico a que se destina.
Surgem
então duas conceções caracterizadoras do defeito: uma subjetiva e outra
objetiva.
No que
diz respeito à conceção subjetiva quanto ao defeito da coisa, esta
assenta na definição de defeito pela não correspondência das funcionalidades da
coisa relativamente àquilo que foi contratado pelas partes, ou seja, tendo em
vista o fim que foi tido em vista pelas partes. Esta conceção pressupõe desde
logo que as partes tenham “pré-estabelecido”, no contrato, os fins a que se
destinaria a coisa, assim como as suas qualidades - obrigações, respetivamente,
do comprador e do vendedor.
Ora, caso
tal previsão não aconteça, parte-se então para a conceção objetiva do
defeito da coisa; para tal, há que atender ao artigo 913.º número 2, na medida
em que este refere que se determina a aptidão da coisa pela “função normal das coisas da mesma categoria”.
Deste modo, tendo em conta critérios objetivos de valoração da coisa, das
qualidades asseguradas pela mesma, assim como através do recurso ao princípio
da boa-fé da justiça comutativa atual[3],
é possível estabelecer se determinada coisa é, ou não, defeituosa, e se merece
ou não a proteção do regime dos artigos 913.º e seguintes do Código Civil.
O regime
de proteção do comprador, ou consumidor[4],
visa proteger a equivalência, o equilíbrio existente, entre as prestações no
contrato, de modo a assegurar uma das características essenciais do mesmo: a
perfeição do contrato.
Deste
modo, não se incluirão então como coisas defeituosas, para efeitos do regime em
análise, figuras como a desconformidade da quantidade acordada e a entregue[5], assim
como vícios extrínsecos da coisa, decorrentes de efeitos de marketing,
publicidade ou informação enganosa, falta de aviso ou instruções acerca das
condições de funcionamento da coisa, que podem dizer respeito a produtos
perigosos, que requerem um manuseamento cuidado, experimentado, e bem
explicado. Também os vícios ocultos e aparentes da coisa não se aplicam no
regime da compra e venda defeituosa, sendo reconduzidas ao artigo 905.º do
Código Civil, relativo à doutrina geral do erro e do dolo, por força do artigo
913.º do mesmo diploma.
Meios de tutela dos direitos do comprador
No que à
tutela do comprador, que fica afetado no contrato de compra e venda de coisa
defeituosa, diz respeito, existem um número de “remédios” passíveis de ser
analisados e adequados para que o adquirente da coisa faça valer as suas
pretensões. Iremos pois analisar tais meios que se encontram à sua disposição,
de modo a que não seja este prejudicado no decorrer de tal situação, que
desequilibra a perfeição caracterizadora das prestações nos contratos de compra
e venda.
A Anulação do Contrato
Tal solução
resulta da remissão já atrás referida, que o artigo 913.º do Código Civil faz
para o regime de compra e venda de bens onerados, mais concretamente para o
artigo 905.º do Código Civil, que se reporta à doutrina do erro e do dolo. No
caso da compra e venda de coisas defeituosas, cabe ao comprador a possibilidade
de este recorrer ao direito à anulação do contrato, por erro ou dolo, desde que
se preencham os respetivos requisitos que devem ser tidos em conta para a
relevância do erro[6] – uma
análise neste ponto acerca dos requisitos relativos ao erro não será feita, por
extravasar o âmbito da realização do presente trabalho – assim como para a
relevância do dolo[7] e
[8]. Assim sendo, é claramente possível a
anulação do contrato de compra e venda de coisas defeituosas, que só pode ser
arguida por aqueles “em cujo interesse a
lei estabelece”, sendo que o adquirente é uma das pessoas previstas no
artigo 287.º Código Civil, no ano subsequente à cessação do erro ou do dolo[9],
respeitando sempre o previsto no artigo 287.º número 2 do Código Civil [10].
Redução do Preço
Também
fruto da remissão atrás enunciada, surge como possível solução para o
adquirente, no âmbito do contrato de compra e venda de coisas defeituosas, o
instituto da redução do preço da coisa defeituosa, que visa também ele obter o
equilíbrio entre as prestações de cada parte no contrato, desde que ocorra a
situação prevista no artigo 911.º número 1 do Código Civil: desde que exista de
facto um erro ou um dolo que sejam relevantes, e nunca indiferentes, mas que
mesmo que não existissem o adquirente teria, na mesma, comprado os bens, embora
por preço inferior ao estipulado, e “em
harmonia com a desvalorização resultante dos ónus ou limitações”[11]. Tal
instituto é sempre cumulável com o pedido de indemnização baseada no interesse
contratual negativo, que vai ser analisado de seguida[12].
Indemnização do interesse contratual negativo
O último
meio de tutela da posição do comprador para o qual os artigos 913.º e seguintes
do Código Civil fazem remissão é a indemnização do interesse contratual
negativo, remetendo mais uma vez para o regime da compra e venda de bens
onerados.
No caso
desta solução em particular, cumpre referir que a indemnização variará
consoante esteja em causa uma anulação do contrato, ou apenas uma redução do
preço, e dentro de cada uma destas modalidades, variará ainda consoante esteja
em causa o dolo, ou o simples erro - vejam-se os pontos supra explorados[13].
Não
sendo possível analisar a indemnização do interesse contratual negativo
separadamente das figuras da anulação do contrato de compra e venda, assim como
do instituto da redução do preço, não faz sentido a separada análise, como
acima referida, da relação e/ou hierarquização existente entre esta e outros
meios de tutela da posição do adquirente de coisa defeituosa.
Assim
sendo, e iniciando a análise da indemnização quando cumulada com a anulação
do contrato, cumpre distinguir consoante a anulação derive de:
- Dolo – a
indemnização vai abarcar, em simultâneo, os danos emergentes - prejuízos
atuais no património existente à altura da anulação do contrato - e os
lucros cessantes - conjunto de ganhos que poderiam aumentar o património
do adquirente, caso não houvesse dolo e consequente anulação do contrato -,
por força dos artigos 912.º e 564.º número 1 do Código Civil.
- Simples
erro – a indemnização só abrange os danos emergentes, e
só será devida caso o vendedor não consiga ilidir a presunção, que presume
que o erro deste, acerca do vício da coisa, ou da sua falta de qualidade,
é culposo[14].
Assim, apenas caso se prove que o vendedor culposamente conhecia o defeito
da coisa, é que será devida indemnização. Tal resulta do artigo 915.º do Código
Civil. De referir que neste ponto o regime da compra e venda de coisa
defeituosa difere do regime da venda de coisa onerada, conforme o que vem
previsto no artigo 909.º do Código Civil.
Por
outro lado, a indemnização é ainda cumulável com a tutela da posição do
adquirente de redução do preço, analisada supra, sendo que aqui o regime
é idêntico ao relativo ao regime da venda de coisas oneradas. Mantém-se aqui a
distinção assente em casos de dolo e erro, apoiando-se tal nos artigos 908.º e
909.º do Código Civil. Deste modo, é devida indemnização cumulável com a redução
do preço, nos termos do artigo 911.º do Código Civil, em casos de:
- Dolo – baseando-se
no artigo 908.º do Código Civil, para além da obrigação do vendedor de
restituir parte do preço ao comprador, é devida uma indemnização pelos
danos emergentes e pelos lucros cessantes.
- Simples
erro – tendo em conta o estatuído no artigo 909.º do Código
Civil, a indemnização neste caso é limitada aos danos emergentes
resultantes da redução do preço. Cumpre referir que neste caso, como o
contrato continua a produzir efeitos[15], e por força de não
abarcar a indemnização por simples erro os lucros cessantes, regra geral
esta não equivalerá o interesse contratual positivo[16].
Reparação ou Substituição da coisa
Em caso
de venda de coisa defeituosa, assiste ainda ao comprador a possibilidade de
recorrer a outros meios de tutela dos seus direitos, como o são, efetivamente,
a reparação da coisa - esta é exigível ao vendedor - ou, caso tal não seja
possível e estejamos a falar de coisa fungível, na aceção do artigo 207.º do Código
Civil – coisas que se determinam pelo seu género, qualidade e quantidade -, tem
o comprador o direito de exigir a substituição da coisa[17].
A
fungibilidade do bem vendido afere-se, segundo João Calvão da Silva[18], por um
critério económico e social que vá de encontro a uma “equivalência funcional entre a coisa vendida e a coisa substituta”.
Tal
tutela encontra-se plasmada no artigo 914.º do Código Civil, sendo que existe,
na sua parte final, uma ressalva: tal direito do comprador - ou dever do
vendedor, diga-se - só existirá caso se prove que o vendedor desconhecia
culposamente o vício ou a falta de qualidade de que o bem enferma. O ónus neste
caso, de fazer prova, corre por conta do vendedor, à luz do previsto no artigo
342.º n.º 2 do Código Civil, já que é o comprador quem invoca um impedimento ao
seu próprio direito, existindo então uma culpa presumida do vendedor, presunção
esta que lhe cabe a ele ilidir, provando que sem culpa desconhecia o defeito da
coisa[19].
Porém,
cumpre referir a existência de doutrina contrária à existência da última parte
do artigo 914.º do Código Civil, como o é João Calvão da Silva, também apoiada jurisprudencialmente[20], que vem
alegar que o direito que o comprador tem à reparação ou substituição da coisa
mais não passará de um efetivo direito ao cumprimento do contrato, pelo que tal
não deve depender da existência, ou não, de culpa por parte do vendedor. O
comprador pretende a manutenção do contrato de compra e venda, almejando no
entanto a paridade das prestações e contra-prestações – suprimindo um ilícito
que resulta do facto de a prestação que lhe era devida não ter sido cumprida na
totalidade -, pelo que deveria ser obrigação normal e decorrente do próprio
contrato, e não sujeita a condição[21],
que o vendedor tivesse que, embora de forma retardada, cumprir com o originário
interesse de ambas as partes.
Entendimento
que vai de encontro ao referido encontra-se previsto no artigo 921.º do Código Civil,
uma vez que garante que em caso de existência de convenção entre as partes,
aposta no contrato, ou por força dos usos, poderá o vendedor, independentemente
da existência ou não do pressuposto da culpa, estar obrigado a garantir o bom
funcionamento da coisa. Tal garantia funcionará por certo período de tempo - característica
intrínseca deste regime, que usualmente é fixado através de cláusula contratual,
ou caso não seja deve respeitar o prazo de 6 meses a contar da entrega da
coisa, salvo se os usos não estipularem prazo maior[22]
-, em que o vendedor ficará responsabilizado caso exista qualquer defeito que
não resulte de uma utilização anómala da coisa que foi vendida[23]. Cabe ao
comprador demonstrar que existe um defeito que impossibilita a coisa de cumprir
o seu normal funcionamento, por força do artigo 342.º n.º 1 do Código Civil,
que terá ainda a possibilidade de, dentro do prazo de garantia, denunciar tal
defeito e até 30 dias depois de conhecido esse mesmo defeito[24] – artigo
921.º n.º 3 do Código Civil. Quanto ao prazo de caducidade[25]
para fazer valer este regime, consta este do artigo 921.º n.º 4 do Código Civil
– 6 meses desde a data em que a denúncia foi efetuada. Esta garantia coexiste
com a garantia legal que tutela os interesses do comprador[26],
sendo que não poderá esta garantia convencional implicar a renúncia, por parte
do comprador, à garantia legal prevista nos artigos 913.º e seguintes do Código
Civil, assim como para as remissões que este regime comporta.
Exceção do não cumprimento do contrato
Neste
ponto, e embora exista divergência doutrinária quanto à possibilidade de
utilização da exceção do não cumprimento do contrato, cumpre referir que existe
jurisprudência que vai de encontro ao “exceptio
non rite adimpleti contractus”, na medida em que admite que caso o vendedor
não cumpra aquilo a que se vinculou, seja por força do contrato – regime do
artigo 921.º do Código Civil – seja por força da lei – regime dos artigos 913.º
e seguintes do Código Civil -, o comprador poderá não efetuar a sua prestação[27],
recusando-se a cumprir, também ele, o contrato ao qual estava vinculado, devido
à inexistência de paridade entre as prestações de ambas as partes[28].
Resolução do Contrato
Prevista
em termos gerais nos artigos 432.º e seguintes do Código Civil, desde já
importa referir que existem, quanto à resolução do contrato, argumentos a
favor, e argumentos contra, relativamente à sua admissibilidade na aplicação ao
regime da compra e venda de coisas defeituosas. Não sendo uma tutela tão linear
como as analisadas supra, tentaremos expor primeiro os argumentos contra a sua
aplicação, e de seguida os argumentos a favor da sua aplicação.
- Argumentos negativos – resolver um contrato
significa, por outras palavras, destrui-lo; ora, os efeitos da resolução do
contrato são, por força do artigo 433.º do Código Civil, os previstos no artigo
289.º do mesmo diploma, ou seja, equivalentes aos da nulidade e anulabilidade.
Assim sendo, não faria qualquer sentido conceder esta tutela ao comprador,
sendo que este já teve hipótese de se fazer valer de tutela idêntica, como o é
a anulação do contrato. Por outro lado, enquanto todo o regime relativo à venda
de coisa defeituosa se baseia no facto de o defeito do bem ser contemporâneo ou
até anterior à celebração do contrato[29],
a resolução deriva de vicissitudes que decorram de facto posterior à celebração
do mesmo. Assim, parece ser incompatível a utilização desta tutela dos direitos
de uma das partes no regime específico do contrato de compra e venda de coisas
defeituosas.
- Argumento positivo – existe apenas um
argumento a favor da utilização da resolução do contrato quando se esteja a
falar em coisa defeituosa, que parece fazer uma leitura mais completa e
exaustiva de um dos argumentos contra a sua utilização. De facto, existe
doutrina[30] que
entende que tal instituto da resolução do contrato é, em certa medida,
condicente com a manutenção do contrato numa primeira fase; senão veja-se: o
comprador não exerceu o seu direito à anulação do contrato pois quis manter
válido o contrato que inicialmente celebrou, quis ver a prestação do vendedor
cumprida da maneira inicialmente prevista; no entanto, e não raros casos, o
vendedor recusa-se a tal, como a título exemplificativo, quando se recusa à
reparação ou substituição da coisa defeituosa, pelo que o comprador perderá
objetivamente o seu interesse na prestação – verifica-se então o previsto no
artigo 808.º do Código Civil, que permitirá ao comprador resolver o contrato
nos termos dos artigos 432.º e seguintes do Código Civil – através do instituto
da resolução do contrato, desde que tenha condições para entregar a coisa
objeto do contrato, para desse modo receber de novo o preço que pagou pela
mesma[31].
Responsabilidade Civil
A tutela
dos direitos do comprador, no que diz respeito à existência de uma indemnização
resultante do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, é em
regra uma tutela cumulável com as supra analisadas. No entanto, esta pode
existir independentemente de o comprador querer fazer valer, ou não, os seus
direitos, recorrendo a qualquer um dos remédios supra previstos[32].
Poder-se-á tratar de uma indemnização por um
dano moratório, que resultará do atraso, e dos prejuízos que resultam para o
comprador, por facto imputável ao vendedor[33].
Tal
indemnização baseia-se nas regras gerais da responsabilidade civil, atendendo
ao artigo 798.º do Código Civil, que estabelece os pressupostos gerais da
responsabilidade civil contratual. Importa então referir que neste regime é
indispensável a existência do pressuposto da culpa para que haja direito de o
comprador ver os seus direitos tutelados por tal indemnização.
Por fim deve estatuir-se que de modo a que o
comprador veja esta solução satisfeita, tem que obedecer ao prazo de caducidade
previsto no artigo 917.º do Código Civil, analisado em anexo, que se considera
demasiado curto, pois a indemnização respeita à existência de um defeito na
coisa que é objeto do contrato, sendo então a causa de pedir a mesma[34]. Segundo
João Calvão da Silva[35], quando a
obrigação de indemnizar não resultar do regime previsto nos artigos 913.º e
seguintes do Código Civil, relativos à venda de coisa defeituosa, quando a
aceção de defeito da coisa não se encontre na previsão do previsto nos artigos
referidos, o prazo está sujeito ao prazo ordinário da prescrição, previsto no artigo
309.º do Código Civil, de 20 anos. Na eventualidade de existir concurso entre
este regime e o da responsabilidade extracontratual, esta sujeitar-se-á ao
prazo de 3 anos, nos termos do artigo 498.º do Código Civil.
Hierarquização e Relação existente entre os meios de
tutela ao dispor do comprador
Todas as
formas de tutela supra analisadas, de
um modo ou outro, relacionam-se entre si, sendo que de tal relação pode surgir
uma hierarquização entre elas, uma relação de opção, uma relação de
subsidiariedade, assim como uma relação de possível cumulação entre elas.
Assim,
iremos neste ponto abordar tais relações, e tentar de certo modo averiguar a
melhor maneira de o comprador ver os seus direitos tutelados, assim como de ser
ressarcido pelo incumprimento, ou cumprimento defeituoso, da prestação do
vendedor nos contratos de compra e venda de coisa defeituosa.
No que
diz respeito à relação existente entre a anulação do contrato e a redução
do preço, entre ambas rege a subsidiariedade, já que o comprador apenas
poderá anular o contrato caso o erro ou o dolo assumam um caráter de essencialidade
– por outras palavras, caso o comprador soubesse do defeito da coisa, que não
teria celebrado o contrato – já que caso contrário, se o erro ou o dolo se
mostrarem não essenciais, mas apenas relevantes, a melhor maneira de tutelar os
interesses do comprador será através do instituto da redução do preço. “Apenas lhe caberá o direito à redução do
preço” estatui o artigo 911.º do Código Civil, pelo que tal instituto
aplicar-se-á sempre que se demonstre, através das circunstâncias, que o
comprador teria celebrado o contrato por um preço inferior, caso não existissem
erro ou dolo. Será possível no entanto ao comprador realizar o pedido de
redução do preço de forma subsidiária ao pedido de anulação do contrato, para a
eventualidade desta se mostrar inviável – respeita-se assim o princípio da
celeridade processual[36]. O
contrário mostra-se, contudo, inviável - diga-se, a anulação do contrato como
pedido subsidiário da redução do preço.
No que à
relação existente entre a indemnização do interesse contratual negativo
e a anulação do contrato diz respeito, sabemos que a primeira será
cumulável, indiscutivelmente, com a tutela através da anulação do contrato, já
que visa-se restabelecer a posição jurídica do comprador, pelo facto de ter
celebrado um contrato que, afinal, não celebraria caso conhecesse os defeitos
da coisa. Tal indemnização variará consoante a anulação derive de simples erro
ou de dolo, como analisado supra.
Por
outro lado, a relação existente entre a indemnização do interesse contratual
negativo e o instituto da redução do preço, segundo João Calvão da
Silva[37],
baseia-se no previsto no artigo 911.º, assim como nos artigos 908.º e 909.º do Código
Civil. Tal distinção foi já analisada no presente relatório, pelo que restará
aqui reafirmar que a indemnização no interesse contratual negativo neste caso
ficará em situação desigualdade com uma possível indemnização no interesse
contratual positivo, já que não são tidos em conta para efeitos de cálculo da
mesma os lucros cessantes.
Atendendo
agora a uma possível relação existente entre os institutos da anulação do
contrato e de redução do preço com a reparação ou substituição da coisa,
é de realçar que caso não seja possível ao comprador da coisa defeituosa exigir
a reparação ou substituição da coisa, por se não cumprirem os requisitos desse
mesmo pedido, analisados supra, o comprador poderá ainda ter direito a anular o
contrato ou reduzir o preço do mesmo, desde que preenchidos os respetivos
requisitos[38]. Deste
modo, o artigo 914.º do Código Civil garante ao comprador um alargado leque de
opções para que veja os seus direitos realmente satisfeitos, que poderá
inequivocamente recorrer a qualquer um destes meios de tutela dos seus
direitos, desde que preenchidos os respetivos pressupostos para a sua
aplicação, e de forma não arbitrária, e sim ordenada, já que em primeiro lugar
terá o comprador que exigir a reparação do defeito da coisa, sendo que se tal
opção for frustrada poderá exigir a sua substituição, e caso tal não seja possível,
poderá sempre pedir a redução do preço, almejando o reequilíbrio entre as
prestações de ambas as partes, e caso tal não seja aceite por parte do
vendedor, poderá aí sim anular o contrato de compra e venda.
Existe
ainda uma relação entre a responsabilidade civil e a reparação ou
substituição da coisa por parte do vendedor, já que apenas terá lugar a
indemnização se for demonstrado que o vendedor conhecia culposamente o vício ou
a qualidade da coisa que foi objeto do contrato, ou seja, se o defeito é
imputável ao vendedor – relevância do fator culpa para efeitos de indemnização
moratória, nos termos do artigo 804.º do Código Civil. Caso o pressuposto da
culpa não exista, não caberá ao vendedor indemnizar no interesse contratual
positivo o comprador que viu os seus direitos lesados. Mais especificamente
referindo o artigo 921.º do Código Civil, haverá obrigação do vendedor
indemnizar o comprador caso se prove que existiram, de facto, prejuízos para o
comprador, que decorram do cumprimento defeituoso ou atrasado da prestação por
parte do vendedor.
Cumpre
ainda referir a relação existente entre os institutos da reparação da coisa
e da sua substituição entre si, que assenta em subsidiariedade da segunda
em relação à primeira, já que o artigo 914.º do Código Civil estabelece que
apenas na eventualidade de ser necessária a substituição da coisa, e esta tenha
natureza fungível, é que a este instituto se recorrerá, já que em princípio
bastará, caso não seja necessária a substituição da coisa para manter as
prestações de ambas as partes equilibradas, a reparação da coisa defeituosa.
Assim, em primeiro lugar deve tentar reparar-se o defeito, e apenas caso tal
não seja possível se deve optar pela substituição da coisa defeituosa.
Entre a
tutela dos direitos do comprador através da resolução do contrato e os
institutos da reparação ou substituição da coisa parece existir uma
relação que lhes permite conviverem entre si, numa situação de subsidiariedade,
já que nada parece obstar ao facto de que caso o vendedor se recuse a reparar
ou substituir a coisa, o comprador não possa invocar a resolução do contrato de
compra e venda nos termos do artigo 808.º do Código Civil, pois perde de forma
objetiva o interesse na prestação por parte do vendedor[39].
A Responsabilidade
Civil, e muito embora seja possível o seu pedido de forma autónoma de qualquer
outro meio de tutela dos direitos do comprador, sempre assim obedecendo aos
prazos previstos nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil, relaciona-se em
larga medida com todos os outros meios que visam tutelar a posição do comprador
no regime da compra e venda de coisas defeituosas, já que resultará sempre que
exista um prejuízo para o comprador devido ao atraso no cumprimento da
prestação porque a coisa teve que ser reparada ou substituída, ou caso o
cumprimento seja defeituoso e obrigue a um reequilíbrio de prestações - relação
com o instituto da redução do preço -, ou ainda porque o comprador viu
destruído um contrato que queria inicialmente celebrar, e pode ter arcado com
determinados prejuízos e danos que não teriam existido caso o contrato nunca
tivesse sido celebrado, relacionando-se aqui a responsabilidade civil com a
anulação do contrato, com a resolução do contrato, ou com a exceção de não
cumprimento do contrato.
Janeiro de 2014
Por João Nuno Barros
[1] Regime previsto nos artigos
905.º a 912.º do Código Civil.
[2] Código Civil, artigo 913.º,
número 1.
[3] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina - página 45.
[4] Para efeitos da Lei n.º 24/96,
de Defesa do Consumidor.
[5] Diga-se peso, medida e conta.
[6] Vejam-se os artigos 251.º CC e
247.º do Código Civil.
[7] Nos termos dos artigos 253.º e
254.º do Código Civil.
[8] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina - página 35.
[9] Sem prejuízo dos prazos
previstos no artigo 916.º, números 2 e 3 do Código Civil.
[10] Conforme o estatuído no Acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Janeiro de 2005.
[11] Nos termos do artigo 911.º,
número 1 do Código Civil.
[12] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina – página 53.
[13] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina – páginas 37 a 39.
[14] Por força dos artigos 914.º
número 2 e 799.º do Código Civil.
[15] Por outro lado, no instituto da
anulação do contrato, o mesmo extingue-se.
[16] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina – página 39.
[17] Vejam-se, a este respeito, os Acórdãos
do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Novembro de 2004, de 19 de Fevereiro de 2004,
de 8 de Julho de 2003 e de 3 de Abril de 2003, e do Tribunal da Relação do
Porto de 19 de Fevereiro de 2004.
[18] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina
– página 63.
[19] A suportar tal entendimento
veja-se a própria jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão
de 3 de Abril de 1990.
[20] Através do Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2004.
[21] Condição de que, caso não
exista o pressuposto da culpa, não caberá ao vendedor reparar ou substituir a
coisa.
[22] Veja-se o artigo 921.º, número
2 do Código Civil.
[23] Atente-se no Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2004.
[24] Diga-se salvo estipulação em
contrário.
[25] Os prazos são analisados em
anexo.
[26] Diga-se, as tutelas já
analisadas – vejam-se os artigos 913.º e seguintes do Código Civil.
[27] Diga-se, o pagamento do preço,
nos termos da alínea c) do artigo 879.º do Código Civil.
[28] Tal pode ser visto através de
várias decisões judiciais, como por exemplo nos Acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça de 4 de Novembro de 2004 e de 18 de Fevereiro de 1999, ou ainda no
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de Janeiro de 2003.
[29] Leia-se, até à entrega da
coisa, por força do artigo 918.º do Código Civil.
[30] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina – página 73.
[31] A suportar tal entendimento
vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Julho de 2004, Acórdãos
do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2003 e de 29 de Outubro de
2002.
[32] Vejam-se os Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça de 6 de Novembro de 2007, de 27 de Abril de 2006 e de 4 de
Novembro de 2004.
[33] Vejam-se os Acórdãos do Supremo
Tribunal de Justiça de 19 de Fevereiro de 2004 e de 10 de Janeiro de 2008.
[34] Como nos dizem os Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 1992 e de 6 de Novembro de 2007, assim
como do Tribunal da Relação do Porto de 14 de Junho de 2004.
[35] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina – páginas 78 e 79.
[36] Refira-se a este aspeto o
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Abril de 2004.
[37] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina
- página 39.
[38] “Compra e Venda de Coisas
Defeituosas (Conformidade e Segurança)”, João Calvão da Silva, ano de 2008, 5.ª
Edição, Almedina – página 61.
[39] Veja-se a este respeito os Acórdãos
do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2003, de 29 de Outubro de
2002 e do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Julho de 2004.
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