O regime legal aplicável aos efeitos da declaração
de insolvência nos contratos de trabalho: as soluções da Doutrina
Perante a declaração de insolvência de uma empresa, independentemente do
tipo de empresa ou sociedade em questão, os contratos de trabalho em curso vão
sofrer alterações[1]
e são os trabalhadores que, à partida, vão arcar com as piores consequências
pois o desemprego é a situação mais provável havendo ainda a possibilidade de
poderem sair prejudicados ao nível dos créditos que possam ter sobre a entidade
empregadora. Tendo em conta este cenário, e sendo a matéria de proteção do trabalhador uma matéria com muito relevo,
inclusive ao nível constitucional, seria previsível que o legislador no Código
da Insolvência e da Recuperação da Empresa, no Título IV, mas concretamente, no
capítulo IV relativo aos efeitos nos negócios em curso, tivesse incluído uma
norma que incidisse sobre os efeitos no contrato de Trabalho. O legislador não
se pronunciou, a doutrina procurou encontrar o melhor regime para regular esses
efeitos, mas as respostas que surgiram foram, e são, várias.
A primeira hipótese a analisar é apresentado por PEDRO ROMANO MARTINEZ que
nos diz que devemos aplicar o artigo 111º do CIRE[2]. Ou seja, ele entende que
o legislador quando colocou como epígrafe “prestação duradoura de serviço” estava
a incluir nesse artigo os contratos de trabalho (ficando assim colmatada a
falha que referi supra) e nos termos desse artigo os contratos de trabalho não
se suspenderiam com a declaração de insolvência. Segundo o autor, esta
resolução é semelhante à que existia no anterior Código dos Processos Especiais
de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF) em que o artigo 172º regulava
este problema fazendo uma remissão para o artigo 56º da Lei de Cessação do
contrato de Trabalho (LCCT) que previa a não cessação dos contratos de trabalho e o dever de o
administrador da massa falida[3]
continuar a cumprir as obrigações decorrentes dos contratos de trabalha até ao encerramento definitivo do estabelecimento. Para além disso, este autor
defende ainda que apos a declaração, qualquer uma das partes poderá
denunciar o contrato de trabalho tendo o administrador de respeitar um prazo de pré-aviso de
sessenta dias (nos termos do artigo 108º do CIRE, ex vi artigo 111º, nº1 também do CIRE), fazendo essa denúncia surgir um direito a
uma indemnização (artigo 111º, nº2 do CIRE) para o trabalhador mas cuja forma
de cálculo, nos termos do artigo 108º, no 3 do CIRE, o autor entende ser
difícil de concretizar.
O regime defendido por ROMANO MARTINEZ tem sido alvo de várias críticas[4],
e partindo da posição de MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO, são apresentados argumentos
de quatro ordens diferentes[5]
para refutar essa posição. A autora entende que o artigo 111º do CIRE não deve
ser aplicado pois este é direcionado aos contratos de prestação de serviço e
não aos contratos de trabalho. Assim, do ponto de vista dogmático, um contrato
de trabalho não um contrato de prestação de serviços, tanto o Código Civil (CC)
nos artigos 1152º e 1154º como os artigos 11º e 12º do CT, delimitam o que é um
contrato de trabalho do que é um contrato de prestação de serviços não lhe
sendo aplicáveis os mesmo diplomas legais; e sendo este o entendimento jurídico
da distinção não faz sentido que se retire do CIRE um tratamento igual para
estes dois tipos de contrato. Por outro lado, do ponto de vista literal, e de
certo modo no seguimento do argumento anterior, o próprio CIRE faz referência
ao contrato de trabalho nos artigos 113º e no 277º, ou seja, delimita esta
figura não a confundindo; se entendesse que contrato de trabalho se reconduzia
a contrato de prestação de serviços, não teria autonomizado o conceito nestes dois
artigos. Analisando a aplicação do artigo 11º do CIRE, do ponto vista
constitucional, ela falha: permitir que o administrador da insolvência pudesse
denunciar livremente os contratos atenta contra o Princípio da proibição dos despedimentos
sem causa consagrado no artigo 53º da Constituição da Republica Portuguesa
(CRP) - surgiria um problema de constitucionalidade.
Por último, de um ponto de vista teleológico, atendendo à possibilidade de
recuperação da empresa que o CIRE elenca e ao dever de manter a empresa em
funcionamento que impende sobre o administrador de insolvência – artigo
55º,nº1, alínea b) do CIRE – seria incongruente permitir que por aplicação do
artigo 111º do CIRE o administrador denunciasse contratos logo a seguir á
declaração de insolvência. Ainda uma pequena nota para o facto de que o artigo
111º do CIRE vai aplicar-se aos contratos cuja execução seja em interesse do
insolvente o que contraria o sentido dos contratos de trabalho cuja execução,
em princípio, beneficia o trabalhador[6].
Contudo, não é apenas contra a solução defendida por ROMANO MARTINEZ que a
autora citada se opõe. LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, JOÃO LABAREDA e MANUEL CAVALEIRO
BRANDÃO (entre outros autores) defendem a aplicação do artigo 277º do CIRE, uma
norma de conflitos que nos diz que em caso de declaração de insolvência, os
efeitos que afetem o contrato de trabalho devem ser regulados pela lei
aplicável ao contrato. Assim, o regime aplicável ao contrato de trabalho é o
previsto no CT, logo, aos efeitos, é igualmente aplicável o regime que o CT determinar.
Em termos práticos, será aplicável o artigo 347º do CT que nos diz que os
contratos de trabalho não cessam com a declaração de insolvência devendo o
administrador continuar a cumprir as obrigações decorrentes dos contratos até
ao encerramento definitivo do estabelecimento. Como referido, MARIA DO ROSÁRIO PALMA
RAMALHO, também entende que este entendimento não é o correto pois o artigo 277º
é uma norma de conflitos e como tal só deve ser aplicado aos casos em que a
insolvência esteja em contato com mais do que um ordenamento jurídico, não
podendo ser entendida como uma remissão geral de um regime para outro. Também
contra a aplicação deste regime temos MENEZES LEITÃO que nos vem dizer, apresentando
assim mais um caminho de resolução, que o CIRE não dá resposta ao problema, que
estamos perante uma lacuna, e por isso devemos procurar a solução vendo pelo
prisma do contrato de trabalho e aplicando o artigo 347º do CT. A posição
apresentada por MENEZES LEITÃO e seguida por MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO,
mesmo conduzindo a um resultado semelhante ao atingido por aplicação do artigo
277º do CIRE, acabou por ser criticado por MANUEL CAVALEIRO BRANDÃO pois
entendia que fazia tábua rasa do artigo 102º do CIRE e sendo este artigo um princípio
geral, não podíamos verdadeiramente falar de uma lacuna, mas sim procurar um artigo
aplicável no CIRE e por isso, este autor, acabou por defender a aplicação do
artigo 277º do CIRE[7].
Perante estas três posições, deve ser dado destaque às duas últimas, pois
estas conduzem à mesma solução, a aplicação do CT, em concreto do artigo 347º e
advogando o que alguma jurisprudência[8]
já defendeu, entendo que o CIRE não tem resposta para a questão e devemos
procurá-la no CT. Aliás, esta a solução que a nível sistemático é a mais
correta tendo em conta o regime que o antigo CPEREF consagrava.
Assim, tendo em conta o regime legal que vai ser aplicável devemos agora
analisar os efeitos que da declaração nos contratos de trabalho e todas as
outras possibilidades que o Regime do CT consagra.
As vicissitudes do Contrato de Trabalho: a
manutenção ou extinção dos contratos e a possibilidade de novos contratos
Antes de analisarmos concretamente os efeitos que a declaração de
insolvência nos contratos de trabalho, é necessário compreender quais os
efeitos imediatos que vão ocorrer na esfera da entidade empregadora. Com a
declaração de Insolvência, nos termos do artigo 81º, n,1 do CIRE, o insolvente
fica privado dos poderes de administração e disposição dos seus bens passando
essas competências a pertencer ao Administrador de insolvência. O administrador
da insolvência, como já referi, nos termos do artigo 55º, nº1, alínea b) do
CIRE vai administrar o estabelecimento onde o trabalhador exerce o seu
trabalho. Um dos deveres do administrador é evitar o agravamento da situação do
devedor e sempre que possível, realizar todas as ações que possam aumentar os
bens constantes (ou valores monetários) da massa insolvente.
Contudo, em certos casos, a pedido do próprio devedor, este pode manter a
administração da empresa, sendo que nesse caso os seus atos vão ser
acompanhados, fiscalizados e, para alguns tipos de atos, autorizados pelo
administrador da insolvência (artigos 223º a 229º do CIRE).
Independentemente de quem se encontrar a administrar, os contratos de
Trabalho podem vir a sofrer alterações. Do exposto até agora resulta que os
contratos de trabalho não vão cessar automaticamente com a mera declaração de
insolvência – artigo 347º do CT; o destino dado à empresa vai fazer com o
destino dos contratos varie. Os factos que ocorrem depois, o encerramento do
estabelecimento ou empresa ou a alienação/transmissão a um terceiro é que vão
influir nos contratos e gerar regimes diferentes e que têm criado alguns problemas
de aplicação do regime legal em causa; não podemos descartar a hipótese de a empresa/estabelecimento
se manter (cujo rendimento vai ser utilizado para pagar aos credores sendo que
a decisão de manter em funcionamento passa pelo seu escrutínio – artigo 72º do CIRE)
ainda que para tal tenham que se contratar novos trabalhadores ou despedir
alguns Perante isto, temos que analisar todas as hipóteses
que podem afetar os trabalhadores: a empresa/estabelecimento pode encerrar; podem
cessar os contratos dos trabalhadores dispensáveis; pode a empresa/estabelecimento ser
transmitida/alienada; ou pode, pelo contrário, existir a necessidade de contratar novos
trabalhadores.
O encerramento definitivo da Empresa e a extinção
dos Contratos de Trabalho
No caso de encerramento definitivo da Empresa[9], por aplicação do artigo
347º, nº1 do CT, os contratos de trabalham cessam por caducidade, verifica-se “uma
impossibilidade objetiva de manutenção da relação laboral, concretamente uma
impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o empregador receber o
trabalho (art.343º, alínea b) do CT”[10]. O procedimento aplicável
quando se verifica o encerramento é o previsto no artigo 347º, nº3 do CT que é
o do despedimento coletivo nos termos dos artigos 360º e seguintes do CT com as
devidas adaptações, não se aplicando às microempresas (artigo 347º, nº4, do CT).
A situação apresentada é a mais comum, mas, nos termos do artigo 157º do
CIRE, o administrador pode pedir o encerramento antecipado (ou seja, antes da
apreciação do relatório pela assembleia de credores) desde que para isso haja
parecer favorável da comissão de credores, quando exista, e o devedor não se
oponha, ou opondo-se, o tribunal supra essa oposição. Também neste caso teremos
caducidade dos contratos de trabalho sendo aplicável o regime do procedimento
de despedimento coletivo.
Para ambas as situações a Lei diz-nos que devemos aplicar o procedimento
dos despedimentos coletivos com as necessárias adaptações, mas, em norma
alguma, especifica quais são as adaptações. Mesmo a jurisprudência que já
mandou aplicar o regime do despedimento coletivo com as necessárias adaptações, pouco ou nada avançou
do que seriam as adaptações a fazer[11].
Na esteira do defendido por CARVALHO FERNANDES[12],
as alterações vão variar consoante o despedimento que estiver em causa (se após
do parecer da assembleia dos credores ou se antecipado pelo administrador) e
tendo em conta a natureza deste despedimento mais se justifica o afastamento do
regime normal do despedimento coletivo. Por isso, ao nível da fundamentação
exigida pelo artigo 360º, nº1, alínea a) do CT, é apenas necessário que se invoque
a situação de insolvência e a decisão ou deliberação da assembleia que
determina o encerramento do estabelecimento/empresa. Quanto às exigências das
alíneas c) e d) do artigo supracitado, deixam de ter sentido pois em princípio
vão ser despedidos todos os trabalhadores não tendo existido previa seleção por
quadros ou categorias. Quanto à comunicação do método de cálculo da compensação
que faz parte das informações a dar nos termos da alínea f), ainda do mesmo
artigo, o autor entende que esse dever não se ajusta aos poderes do administrador.
O artigo 361º, também do CT, estatui que se deve realizar uma fase negociações do
despedimento de modo a diminuir os danos que este causa aos trabalhadores;
contudo, CARVALHO FERNANDES diz que esta fase deve ser afastada pois a situação
de insolvência e decisão de encerramento vai para além dos poderes do
empregador ou do administrador e negociar uma continuidade da empresa, ainda
que parcial, não é possível[13];
saliente ainda que essas negociações poderiam conduzir a um acréscimo de gastos
para a massa insolvente que é o que se pretende evitar.
Apesar de este ser o entendimento de alguma doutrina em Portugal, o
Tribunal de Justiça de Justiça da União Europeia (TJUE)[14]
já veio dizer que o afastamento de certos elementos do regime do despedimento
coletivo não é aceitável condenando Portugal por respeitar a Diretiva 98/59/CE
do Conselho de 20 de Julho de 1998. De facto, não se deve eliminar a fase de
negociações com os trabalhadores pois, mesmo sem acarretar mais despesas para a
empresa, podem ser discutidas formas de atenuar os efeitos dos despedimentos
nos trabalhadores. Se pensarmos no caso de insolvência de apenas uma sociedade
que faz parte de um grupo de sociedade, alguns trabalhadores podem ser
transferidos para as outras sociedades e aí será necessário explicar porquê
despedir uns trabalhadores e manter outros e explicar os critérios de seleção.
O mesmo pode acontecer no caso de o empregador ter mais do que um estabelecimento,
poderá transferir algum para ou outros estabelecimentos.
Contudo, por regra não será verificável as duas situações supracitadas e
por isso o entendimento geral será o de aplicar o regime do despedimento
coletivo bastante mais simplificado, sem a necessidade de observar todos os
requisitos dos artigos 360º e 361º do CT mas apenas algumas.
Por Catarina Faria
Junho de 2014
[1] Ainda antes da Declaração de Insolvência, o empregador pode ter lançado mão
do chamado regime de Lay-off
nos termos dos artigos 298º e seguintes do Código
do Trabalho (CT) e nessa hipótese, o contrato de trabalho já
sofre alterações
[2] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do
Trabalho, 6ª edição,
Coimbra, Almedina, 2013, pp. 873e 874.
[3] Na Lei referida ainda não era utilizada a
expressão insolvência mas sim falência.
[4] Em sentido contrário de ROMANO MARTINEZ, LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO em Direito da Insolvência, 4ªEdição, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 199 e 200; José João Abrantes em
Efeitos da Insolvência do Empregador no Contrato de Trabalho», in Estudos em
Homenagem ao Prof. Doutor José lebre de Freitas, vol. II, Coimbra, Coimbra
Editora, 2013, p.578; MANUEL CAVALEIRO BRANDÃO em «Algumas notas (interrogações) em torno da
cessação de contratos de trabalho em caso de “encerramento da empresa” e de “insolvência
e recuperação de empresa”», in Prontuário do Direito do Trabalho, nº87, Set. – Dez., Coimbra, Coimbra Editora/CEJ, 2010, pp. 204 e 205; LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, reimpressão, Lisboa, Quid Juris – Sociedade Editora, 2011, pp. 227 e 228.
[5] MARIA DO ROSÁRIO PALAMA RAMALHO, «Aspetos laborais da insolvência. Notas breves sobre as implicações
laborais do regime do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas», Questões Laborais, nº26, ano XII, Coimbra, Coimbra Editora, 2005,
pp.152 a 154.
[6] LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, cit., p.227.
[7] Manuel Cavaleiro Brandão, «Algumas notas (interrogações) em torno da cessação
de contratos de trabalho em caso de “encerramento da empresa” e de “insolvência
e recuperação de empresa”», cit. P. 205.
[8] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães –
TRG – de 03/05/2011, relatado por Rosa Tching.
[9] O encerramento definitivo é decidido em Assembleia de Credores no momento
da apreciação do relatório apresentado pelo Administrador de Insolvência –
156º, nºs 1 e 2 do CIRE.
[10] PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do
Trabalho, cit., p.875.
[11] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de01/02/2010 e de 07/06/2010,
ambos relatados por Soares Oliveira, ainda com referência ao Código de Trabalho
de 2003.
[12] LUÍS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Coletânea de Estudos sobre a Insolvência, cit. pp.236 e 237.
[13] Se o empregador ou o administrador decidissem, per si, dar continuidade à empresa ou estabelecimento estariam
a violar o regime da insolvência pois essa decisão extravasa o seu âmbito de
decisão.
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