Venda de Coisas Defeituosas – traços fundamentais
O regime legal da venda de coisas defeituosas
(excetuando os bens de consumo móveis que são regulados pelo Decreto-Lei n.º
67/2003, de 08 de Abril) encontra-se estabelecido no Código Civil[1] nos artigos 913º a 922º
sendo que este primeiro artigo faz ainda uma remissão para o regime dos bens
onerados[2].
Para entender este regime temos que primeiro
compreender o que é uma coisa[3] defeituosa e o que se
considera como defeito. Desta definição podemos inferir a partir do artigo 913º
e será defeituosa a coisa que “tiver um vício ou se for desconforme àquilo que
foi acordado”[4]
sendo que os vícios ou desconformidades serão, nos termos deste artigo, o vício
que desvalorize a coisa ou que impeça a realização do fim a que a coisa é
destinada, a desconformidade entre as qualidades asseguradas pelo vendedor e as
que a coisa apresenta e a falta das qualidades necessárias à realização do fim
a que a coisa se destina[5]. O fim a que a coisa se
destina, assim como as suas qualidades exatas, podem ser objeto de acordo pelas
partes, no caso em que não o sejam deverá atender-se, nos termos do nº2 do
artigo 913º, “à função normal das coisas da mesma categoria”.
Tendo em conta esta
definição do que será uma coisa defeituosa, o regime dos artigos em análise só
será aplicável se o defeito for essencial pois retira a utilidade normal que
aquela coisa teria se não fosse defeituosa. Assim, é o caráter objetivo dos
defeitos que está em causa e não tanto a ideia de erro do comprador, aí
aplicamos o regime do erro (artigos 247º e seguintes) que conduz à
anulabilidade do negócio por iniciativa do comprador. Num caso de venda de
coisa defeituosa não estamos perante, por regra, um erro do comprador, ele
queria aquela coisa e fez a declaração negocial de acordo com a sua vontade, só
que a coisa entregue não apresentava as qualidades que deveria. Por isso, no
caso de venda de coisa defeituosa, não
é apenas possível a anulação nos termos do artigo 917º mas também é possível a
reparação ou substituição da coisa (artigo 914º), a redução do preço se o
comprador tivesse adquirido aquela coisa com o defeito desde que a preço
inferior (artigo 911º por remissão do artigo 913º), direito a uma indemnização
pelos danos emergentes do contrato (artigo 915º), direito ao cumprimento
coercivo ou à indemnização respetiva (artigo 918º) e há ainda a possibilidade
de existir uma garantia de bom funcionamento (artigo 921º).
Em relação à aplicação deste regime especial[6] da venda de coisa
defeituosa este será aplicável se o comprador fizer a denúncia do defeito nos
termos do artigo 916º. O comprador tem que denunciar o defeito, o vício ou
falta de qualidade, exceto se o vendedor tiver usado de dolo na venda (quando
vendeu sabia dos defeitos da coisa e ocultou esse facto ao comprador)[7]. Neste âmbito releva ainda
a distinção entre defeito oculto, aparente ou conhecido[8] sendo que, para a
denúncia, só o primeiro releva. Merece nota o artigo 919º sobre a venda sobre
amostra que indica que caso o vendedor apresenta uma amostra, ele assegura que
as coisas a entregar ao comprador terão as mesmas qualidades que as da amostra
(exceto se outra coisa resultar dos usos ou se a amostra apresentar apenas
qualidades aproximadas); caso as coisas entregues não tenham as qualidades da
amostra ou as acordadas serão havidas como defeituosas.
Quanto ao prazo para
fazer a denúncia, estes variam consoante a coisa que foi objeto do negócio seja
móvel ou imóvel[9].
Assim, para os móveis o prazo de denúncia é de 30 dias a contar do conhecimento
do defeito e desde que dentro dos 6 meses posteriores à entrega da coisa, para
os bens imóveis o prazo para denunciar é de um ano a contar do conhecimento dos
defeitos e desde que dentro dos 5 anos posteriores à entrega. A partir da
entrega efetiva da coisa é que o comprador poderá analisar e estar em contacto com os defeitos que possa apresentar: o
comprador nunca poderá saber se a casa tem infiltrações se não a habitar
durante o inverno. O momento da entrega releva ainda em relação à venda de
coisas que devam ser transportadas. Ou seja, os prazos para a denúncia (e os
prazos do artigo 921º), nos termos do artigo 922º, só começam a contar a partir
do dia em que o comprador recebe a coisa pois só aí terá contacto material com
ela para poder aferir dos seus defeitos.
O artigo 918º faz uma remissão para as regras
gerais do incumprimento das obrigações no caso de a coisa vendida mas ainda não
entregue se deteriorar[10]. No que diz respeito a
animais defeituosos, ao artigo 920º ressalva as leis especiais e os usos
aplicáveis a essas situações.
Ao nível dos direitos que assistem ao comprador que
comprou uma coisa defeituosa, o primeiro direito que lhe assiste é a
possibilidade de anulação do contrato por simples erro nos termos do artigo
905º por remissão do artigo 913º. Contudo, esta ação de anulação não pode ser
interposta ad aeternum, o artigo 917º estabelece que a ação caduca se
nos 6 meses posteriores à denúncia o comprador não intentar a ação de anulação;
caso não tenha existido denúncia, o comprador deve intentar a ação nos prazos
estabelecidos para a denúncia, valendo a proposição da ação como uma denúncia.
A ressalva final ao artigo 287º, nº2 indica que no caso de o negócio não estar
ainda cumprido – por exemplo, não foi ainda pago o preço – a caducidade não se
verifica. Este prazo de caducidade, por razões de unidade do próprio sistema,
também se irá aplicar a todas as ações que tenham por base os outros direitos
que assistem ao comprador (como o direito à substituição ou à reparação).
Ligada a esta ação de anulação por simples erro está o direito à indemnização
por simples erro nos termos do artigo 915º que remete para o artigo 909º que
não será devida no caso de o vendedor desconhecer, sem culpa, que a coisa que
entregou padecia de defeitos.
Estes são os trações gerais que caracterizam o regime legal da venda de
coisas defeituosas sendo que sendo que os artigos 914º e 921º são analisadas no
ponto seguinte.
Os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2010 e 24/04/2012 –
análise dos artigos 914º e 921º do Código Civil
Como em qualquer regime legal de um negócio, só na
prática é que podemos averiguar a aplicabilidade deste no contacto com a
realidade. Uma das questões que surgem refere-se ao direito do comprador à
reparação e substituição que o artigo 914º consagra conjugado com a garantia de
bom funcionamento do artigo 921º. Assim, nos acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça de 02/03/2010 e de 24/04/2012 temos casos de compradores que se depararam
com defeitos nos bens adquiridos e que, entre outras pretensões, querem que os
bens sejam reparados por meio regime da venda de bens defeituosos e dos artigos
aqui mencionados.
No acórdão de 02/03/2010 estamos perante um
adquirente que comprou um automóvel e que pretende a anulação do contrato de
compra e venda e a restituição do preço pago pois este apresentava defeitos que
levaram à sua avaria. Pedia ainda uma indemnização para ser ressarcido do valor
que tinha gasto na reparação do veículo sendo que o problema que se colocou e
que levou a questão até ao Supremo Tribunal de Justiça era o de saber qual o
âmbito da indemnização a que o comprador tinha direito e para tal era
necessário atender à natureza jurídica da obrigação de reparação de coisas defeituosas.
No acórdão de 24/04/2012
estamos perante uma compra e venda de um imóvel que veio a apresentar diversos
defeitos que tornaram a habitação quase inabitável. Em razão disso, o comprador
intentou uma ação para obter o certificado que comprovava que a instalação
elétrica estava devidamente realizada (para realizar a contratação do
fornecimento de eletricidade e que não tinha sido entregue), pedia que os
defeitos fossem reparados (já tinha inclusive feito a denúncia sem que os
alienantes reparassem) ou então a suportarem os custos das reparações que o
comprador mande efetuar, pedindo ainda uma indemnização pelos danos sofridos.
No decorrer do processo o comprador do imóvel conseguiu, com alguns custos,
obter o certificado dado que os alienantes não o entregaram. O problema que se
colocava era saber se os vendedores tinham ou não a obrigação de realizar as
reparações, ou pelo menos custeá-las, e de
indemnizar dado que eles não sabiam que a moradia viria a apresentar aqueles
defeitos sendo que o comprador lhes opunha uma garantia de bom funcionamento
dada pelos alienantes.
Perante estes casos é necessário fazer uma análise
dos artigos 914º e 921º, que, em ambos os casos, foi feita pelos juízes, para
assim compreendermos as soluções para as questões colocadas nos acórdãos.
O Regime do artigo 914º - A reparação ou substituição da Coisa
Um dos mecanismos de que o adquirente de coisa
defeituosa se pode valer é o direito de exigir ao vendedor a reparação ou
substituição da coisa, se esta for fungível[11]. Este direito não existe
se o vendedor desconhecia, sem culpa, que a coisa padecia de vícios ou falta de
qualidades. Esta figura é o correlativo do artigo 907º sobre a expurgação de
ónus da coisa só que neste último estamos perante vícios de direito e no caso
do artigo 914º estamos perante vícios da coisa.
O acórdão de 02/03/2010 cita João Calvão da Silva
para salientar que a reparação ou substituição da coisa nada mais é do que o
cumprimento exato da obrigação assumida pelo vendedor de entregar a coisa correta,
sem vícios, a que o comprador sempre teve direito. Já o acórdão de 24/04/2012,
a ação subjacente ao artigo 914º faz com que seja “(…) possível ao contraente
lesado com o cumprimento defeituoso sanar o equilíbrio contratual e minorar os
efeitos danosos que a violação contratual positiva ocasionou na sua esfera
jurídica (…)o comprador lesado pretende inculcar a disposição de manter o
vínculo contratual, advertindo ou sinalizando que o essencial do que foi
convencionado ou acordado terá sido prestado de forma ajustada e correta, mas
que a defeituosa prestação deverá ser sanada ou reparada á custa do cumpridor
faltoso”.
Nos dois casos
apresentados pelos acórdãos demonstrava-se necessário atender ao regime da
obrigação de reparação; como já se notou, quando os vendedores, sem culpa, não
conhecem os defeitos no momento da venda não lhes é exigível a reparação.
Quanto à prova do desconhecimento dos vícios, cabe ao
vendedor que os não conhecia nem deveria conhecer no momento da venda, ou seja,
o ónus probatório recai sobre si para assim afastar o direito que assiste ao
comprador ou então, por outro lado, no caso de conhecer o vício, deverá provar
que o comprador já os conhecia – defeito aparente ou conhecido - e que mesmo
assim adquiriu a coisa ou então que o vício foi causado por má utilização da
coisa ou foi causado por terceiro. No caso do Acórdão de 24/04/2012 é relevante
o facto de os alienantes terem adquirido a moradia e só depois é que venderam
ao comprador, sem nunca a terem habitado, logo, não poderiam saber dos defeitos
do imóvel. Assim, vemos nos dois casos este direito de reparação ser afastado
mesmo tendo os adquirentes realizado a denúncia e provado a existência dos
vícios, contudo, não é afastado o direito de anular o negócio pelo facto de os
alienantes desconhecerem o defeito sem culpa como acontece no Acórdão de
02/03/210 pois o que o adquirente peticiona a anulação do negócio
Apesar de por este meio não se conseguir chegar à
reparação, estes dois casos tínhamos garantias de bom funcionamento prestadas
pelos vendedores que fazem com que a resposta final não seja a desfavorável às
pretensões dos compradores.
O Regime especial do artigo 921º - a Garantia de bom funcionamento
Na venda de bens é usual os vendedores prestarem
uma garantia de bom funcionamento, ou seja, para além da garantia normal que
será de 6 meses nos bens móveis e de 5 anos para os bens imóveis, o vendedor
compromete-se a reparar ou a substituir o bem (ou componentes dele) durante um
certo período - principalmente nos móveis, por regra, os vendedores assumem a
garantia para além dos 6 meses. Esta garantia é um “mais” à garantia legal de
reparação e substituição da coisa que acaba por atrair mais possíveis
adquirentes dado que reforça a sua posição. Contudo, o que releva neste artigo,
comparado com o artigo 914º, é o facto de o vendedor assumir responsabilidade
pela reparação ou substituição mesmo quando o defeito não ocorreu por culpa
sua, ou seja, assume para além da culpa, trata-se, portanto, de uma responsabilidade
objetiva.
Esta garantia é prestada, por regra, no momento da realização do contrato,
as partes acordam ou então há uma aceitação tácita por parte do comprador, de
que o prazo da garantia será aquele. Se nada for dito no contrato a garantia
tem-se estipulada por 6 meses após a entrega da coisa (artigo 921º, nº2).
Tal como o adquirente no acórdão 24/04/2012 diz, o
artigo 921º não estabeleceu uma forma própria ou obrigatória para acordar a
garantia e por isso no caso daquele acórdão encontrámos esta garantia de bom
funcionamento na Ficha Técnica da Habitação entregue pelo alienante nos
Serviços da Câmara Municipal. Neste mesmo acórdão, numa das suas conclusões,
diz-nos que a garantia funciona como forma de “(…) inculcar um dever objetivo
de responsabilização do vendedor da coisa garantida; ao garantir o bom
funcionamento e assegurar a qualidade da coisa vendida, o garante responde,
objetivamente, pelos defeitos que venham a emergir de um normal e corrente
funcionamento da coisa”. Como decorre deste excerto do acórdão, esta garantia
de bom funcionamento não cobre todos os defeitos mas apenas aqueles que surgem
com o normal funcionamento da coisa; assim, será o alienante que terá que
provar que a coisa foi mal utilizada.
Na prática[12], o adquirente terá apenas
que denunciar o defeito ao alienante dentro do prazo da garantia, se nada for
dito em contrário, nos 30 dias seguintes à descoberta do defeito[13] e provar que a coisa
padece de um vício ou falta de qualidade não precisando indicar qual a possível
causa da avaria. Portanto, para afastar o garante, o vendedor terá de provar
que o é posterior à venda ou então que o defeito se deveu a má ou negligente
utilização ou a um ato doloso para provocar o defeito por parte do adquirente
ou então que se deveu a qualquer ato negligente, doloso ou mau uso por parte de
um terceiro.
A ação que se funde neste artigo também tem um
prazo de caducidade[14], ela caducará se tiver
existido denúncia nos 6 meses seguintes a esta; não existindo denúncia, a ação
caduca assim que terminar o tempo de garantia em que se podia fazer a denúncia.
Relativamente à questão
no acórdão de 02/03/2010 e tendo em conta o que foi exposto, o vendedor do
automóvel tinha prestado uma garantia de bom funcionamento e embora tivesse
alegado que a avaria se devia ao facto de terem sido trocados componentes do
veículo não conseguiu provar esse facto nem que esse facto levou à avaria do
veículo, não afastou o garante logo não afastou a obrigação de reparar a coisa. Impendendo essa obrigação sobre o
vendedor, como o automóvel já tinha sido reparado, tinha que suportar os custos
da reparação já pagos pelo comprador.
No acórdão de 24/04/2012, um dos alienantes tinha prestado também uma
garantia de bom funcionamento na ficha técnica de habitação por isso, mesmo não
se aplicando o artigo 914º devido à exceção final, a garantia nos termos do
artigo 921º funciona pois os alienantes não conseguiram afastá-la provando que
os defeitos se deviam a intervenções na moradia por parte do comprador logo
terão que custear as reparações da moradia[15].
Por Catarina Faria
Janeiro de 2014
[1] Todos os
artigos citados, ao longo do trabalho, são do Código Civil, incluindo os
artigos das notas de rodapé.
[2] Artigos
905º a 912º.
[3] Coisa no
sentido do artigo 202º.
[4] MARTINEZ,
Pedro Romano, Contratos em Especial, 2ª Edição, Lisboa, Universidade
Católica Editora, 1996, p.125.
[5] 5LIMA, Fernando Andrede Pires De e VARELA, João
de Matos Antunes, Código Civil Anotado, Volume II, 4ª Edição revista e
atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p.205.
[6] LIMA,
Fernando Andrede Pires De e VARELA, João de Matos Antunes, Código Civil
Anotado, cit., p.205.
[7] No caso
de o vendedor usar dolo, o comprador deve intentar a ação de anulação no prazo
de um ano a contar do momento em que teve conhecimento do defeito – artigo
287º, nº1, independentemente de ter feito ou não a denúncia
[8] O
defeito oculto é aquele que o comprador não pode diligentemente apreender logo
é legítimo que não o note; o defeito aparente é quele que qualquer comprador
minimamente diligente deveria ter notado, o defeito conhecido é aquele que é
dado a conhecer ao comprador pelo vendedor, por um terceiro ou que ele tenha
notado - MARTINEZ, Pedro Romano, Contratos em Especial, cit., p.128.
[9] Artigos
204º e 205º.
[10] Neste
contexto são de interesse as regras relativas ao risco nos termos dos artigos
796º e 797º.
[11] Artigo
207º.
[12] Ponto
IV do Sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2010
[13] Artigo
921º, nº3.
[14] Artigo
921º, nº4.
Sem comentários:
Enviar um comentário