quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Venda de Coisas Defeituosas: o Direito à reparação ou substituição e a Garantia de bom funcionamento - Análise dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2010 e 24/04/2012





Venda de Coisas Defeituosas – traços fundamentais
O regime legal da venda de coisas defeituosas (excetuando os bens de consumo móveis que são regulados pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril) encontra-se estabelecido no Código Civil[1] nos artigos 913º a 922º sendo que este primeiro artigo faz ainda uma remissão para o regime dos bens onerados[2].

Para entender este regime temos que primeiro compreender o que é uma coisa[3] defeituosa e o que se considera como defeito. Desta definição podemos inferir a partir do artigo 913º e será defeituosa a coisa que “tiver um vício ou se for desconforme àquilo que foi acordado”[4] sendo que os vícios ou desconformidades serão, nos termos deste artigo, o vício que desvalorize a coisa ou que impeça a realização do fim a que a coisa é destinada, a desconformidade entre as qualidades asseguradas pelo vendedor e as que a coisa apresenta e a falta das qualidades necessárias à realização do fim a que a coisa se destina[5]. O fim a que a coisa se destina, assim como as suas qualidades exatas, podem ser objeto de acordo pelas partes, no caso em que não o sejam deverá atender-se, nos termos do nº2 do artigo 913º, “à função normal das coisas da mesma categoria”.

Tendo em conta esta definição do que será uma coisa defeituosa, o regime dos artigos em análise só será aplicável se o defeito for essencial pois retira a utilidade normal que aquela coisa teria se não fosse defeituosa. Assim, é o caráter objetivo dos defeitos que está em causa e não tanto a ideia de erro do comprador, aí aplicamos o regime do erro (artigos 247º e seguintes) que conduz à anulabilidade do negócio por iniciativa do comprador. Num caso de venda de coisa defeituosa não estamos perante, por regra, um erro do comprador, ele queria aquela coisa e fez a declaração negocial de acordo com a sua vontade, só que a coisa entregue não apresentava as qualidades que deveria. Por isso, no caso de venda de coisa defeituosa, não é apenas possível a anulação nos termos do artigo 917º mas também é possível a reparação ou substituição da coisa (artigo 914º), a redução do preço se o comprador tivesse adquirido aquela coisa com o defeito desde que a preço inferior (artigo 911º por remissão do artigo 913º), direito a uma indemnização pelos danos emergentes do contrato (artigo 915º), direito ao cumprimento coercivo ou à indemnização respetiva (artigo 918º) e há ainda a possibilidade de existir uma garantia de bom funcionamento (artigo 921º).

Em relação à aplicação deste regime especial[6] da venda de coisa defeituosa este será aplicável se o comprador fizer a denúncia do defeito nos termos do artigo 916º. O comprador tem que denunciar o defeito, o vício ou falta de qualidade, exceto se o vendedor tiver usado de dolo na venda (quando vendeu sabia dos defeitos da coisa e ocultou esse facto ao comprador)[7]. Neste âmbito releva ainda a distinção entre defeito oculto, aparente ou conhecido[8] sendo que, para a denúncia, só o primeiro releva. Merece nota o artigo 919º sobre a venda sobre amostra que indica que caso o vendedor apresenta uma amostra, ele assegura que as coisas a entregar ao comprador terão as mesmas qualidades que as da amostra (exceto se outra coisa resultar dos usos ou se a amostra apresentar apenas qualidades aproximadas); caso as coisas entregues não tenham as qualidades da amostra ou as acordadas serão havidas como defeituosas.

Quanto ao prazo para fazer a denúncia, estes variam consoante a coisa que foi objeto do negócio seja móvel ou imóvel[9]. Assim, para os móveis o prazo de denúncia é de 30 dias a contar do conhecimento do defeito e desde que dentro dos 6 meses posteriores à entrega da coisa, para os bens imóveis o prazo para denunciar é de um ano a contar do conhecimento dos defeitos e desde que dentro dos 5 anos posteriores à entrega. A partir da entrega efetiva da coisa é que o comprador poderá analisar e estar em contacto com os defeitos que possa apresentar: o comprador nunca poderá saber se a casa tem infiltrações se não a habitar durante o inverno. O momento da entrega releva ainda em relação à venda de coisas que devam ser transportadas. Ou seja, os prazos para a denúncia (e os prazos do artigo 921º), nos termos do artigo 922º, só começam a contar a partir do dia em que o comprador recebe a coisa pois só aí terá contacto material com ela para poder aferir dos seus defeitos.

O artigo 918º faz uma remissão para as regras gerais do incumprimento das obrigações no caso de a coisa vendida mas ainda não entregue se deteriorar[10]. No que diz respeito a animais defeituosos, ao artigo 920º ressalva as leis especiais e os usos aplicáveis a essas situações.

Ao nível dos direitos que assistem ao comprador que comprou uma coisa defeituosa, o primeiro direito que lhe assiste é a possibilidade de anulação do contrato por simples erro nos termos do artigo 905º por remissão do artigo 913º. Contudo, esta ação de anulação não pode ser interposta ad aeternum, o artigo 917º estabelece que a ação caduca se nos 6 meses posteriores à denúncia o comprador não intentar a ação de anulação; caso não tenha existido denúncia, o comprador deve intentar a ação nos prazos estabelecidos para a denúncia, valendo a proposição da ação como uma denúncia. A ressalva final ao artigo 287º, nº2 indica que no caso de o negócio não estar ainda cumprido – por exemplo, não foi ainda pago o preço – a caducidade não se verifica. Este prazo de caducidade, por razões de unidade do próprio sistema, também se irá aplicar a todas as ações que tenham por base os outros direitos que assistem ao comprador (como o direito à substituição ou à reparação). Ligada a esta ação de anulação por simples erro está o direito à indemnização por simples erro nos termos do artigo 915º que remete para o artigo 909º que não será devida no caso de o vendedor desconhecer, sem culpa, que a coisa que entregou padecia de defeitos.

Estes são os trações gerais que caracterizam o regime legal da venda de coisas defeituosas sendo que sendo que os artigos 914º e 921º são analisadas no ponto seguinte.
  
Os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2010 e 24/04/2012 – análise dos artigos 914º e 921º do Código Civil
Como em qualquer regime legal de um negócio, só na prática é que podemos averiguar a aplicabilidade deste no contacto com a realidade. Uma das questões que surgem refere-se ao direito do comprador à reparação e substituição que o artigo 914º consagra conjugado com a garantia de bom funcionamento do artigo 921º. Assim, nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2010 e de 24/04/2012 temos casos de compradores que se depararam com defeitos nos bens adquiridos e que, entre outras pretensões, querem que os bens sejam reparados por meio regime da venda de bens defeituosos e dos artigos aqui mencionados.

No acórdão de 02/03/2010 estamos perante um adquirente que comprou um automóvel e que pretende a anulação do contrato de compra e venda e a restituição do preço pago pois este apresentava defeitos que levaram à sua avaria. Pedia ainda uma indemnização para ser ressarcido do valor que tinha gasto na reparação do veículo sendo que o problema que se colocou e que levou a questão até ao Supremo Tribunal de Justiça era o de saber qual o âmbito da indemnização a que o comprador tinha direito e para tal era necessário atender à natureza jurídica da obrigação de reparação de coisas defeituosas.

No acórdão de 24/04/2012 estamos perante uma compra e venda de um imóvel que veio a apresentar diversos defeitos que tornaram a habitação quase inabitável. Em razão disso, o comprador intentou uma ação para obter o certificado que comprovava que a instalação elétrica estava devidamente realizada (para realizar a contratação do fornecimento de eletricidade e que não tinha sido entregue), pedia que os defeitos fossem reparados (já tinha inclusive feito a denúncia sem que os alienantes reparassem) ou então a suportarem os custos das reparações que o comprador mande efetuar, pedindo ainda uma indemnização pelos danos sofridos. No decorrer do processo o comprador do imóvel conseguiu, com alguns custos, obter o certificado dado que os alienantes não o entregaram. O problema que se colocava era saber se os vendedores tinham ou não a obrigação de realizar as reparações, ou pelo menos custeá-las, e de indemnizar dado que eles não sabiam que a moradia viria a apresentar aqueles defeitos sendo que o comprador lhes opunha uma garantia de bom funcionamento dada pelos alienantes.

Perante estes casos é necessário fazer uma análise dos artigos 914º e 921º, que, em ambos os casos, foi feita pelos juízes, para assim compreendermos as soluções para as questões colocadas nos acórdãos.

O Regime do artigo 914º - A reparação ou substituição da Coisa
Um dos mecanismos de que o adquirente de coisa defeituosa se pode valer é o direito de exigir ao vendedor a reparação ou substituição da coisa, se esta for fungível[11]. Este direito não existe se o vendedor desconhecia, sem culpa, que a coisa padecia de vícios ou falta de qualidades. Esta figura é o correlativo do artigo 907º sobre a expurgação de ónus da coisa só que neste último estamos perante vícios de direito e no caso do artigo 914º estamos perante vícios da coisa.

O acórdão de 02/03/2010 cita João Calvão da Silva para salientar que a reparação ou substituição da coisa nada mais é do que o cumprimento exato da obrigação assumida pelo vendedor de entregar a coisa correta, sem vícios, a que o comprador sempre teve direito. Já o acórdão de 24/04/2012, a ação subjacente ao artigo 914º faz com que seja “(…) possível ao contraente lesado com o cumprimento defeituoso sanar o equilíbrio contratual e minorar os efeitos danosos que a violação contratual positiva ocasionou na sua esfera jurídica (…)o comprador lesado pretende inculcar a disposição de manter o vínculo contratual, advertindo ou sinalizando que o essencial do que foi convencionado ou acordado terá sido prestado de forma ajustada e correta, mas que a defeituosa prestação deverá ser sanada ou reparada á custa do cumpridor faltoso”.

Nos dois casos apresentados pelos acórdãos demonstrava-se necessário atender ao regime da obrigação de reparação; como já se notou, quando os vendedores, sem culpa, não conhecem os defeitos no momento da venda não lhes é exigível a reparação. Quanto à prova do desconhecimento dos vícios, cabe ao vendedor que os não conhecia nem deveria conhecer no momento da venda, ou seja, o ónus probatório recai sobre si para assim afastar o direito que assiste ao comprador ou então, por outro lado, no caso de conhecer o vício, deverá provar que o comprador já os conhecia – defeito aparente ou conhecido - e que mesmo assim adquiriu a coisa ou então que o vício foi causado por má utilização da coisa ou foi causado por terceiro. No caso do Acórdão de 24/04/2012 é relevante o facto de os alienantes terem adquirido a moradia e só depois é que venderam ao comprador, sem nunca a terem habitado, logo, não poderiam saber dos defeitos do imóvel. Assim, vemos nos dois casos este direito de reparação ser afastado mesmo tendo os adquirentes realizado a denúncia e provado a existência dos vícios, contudo, não é afastado o direito de anular o negócio pelo facto de os alienantes desconhecerem o defeito sem culpa como acontece no Acórdão de 02/03/210 pois o que o adquirente peticiona a anulação do negócio

Apesar de por este meio não se conseguir chegar à reparação, estes dois casos tínhamos garantias de bom funcionamento prestadas pelos vendedores que fazem com que a resposta final não seja a desfavorável às pretensões dos compradores.

O Regime especial do artigo 921º - a Garantia de bom funcionamento
Na venda de bens é usual os vendedores prestarem uma garantia de bom funcionamento, ou seja, para além da garantia normal que será de 6 meses nos bens móveis e de 5 anos para os bens imóveis, o vendedor compromete-se a reparar ou a substituir o bem (ou componentes dele) durante um certo período - principalmente nos móveis, por regra, os vendedores assumem a garantia para além dos 6 meses. Esta garantia é um “mais” à garantia legal de reparação e substituição da coisa que acaba por atrair mais possíveis adquirentes dado que reforça a sua posição. Contudo, o que releva neste artigo, comparado com o artigo 914º, é o facto de o vendedor assumir responsabilidade pela reparação ou substituição mesmo quando o defeito não ocorreu por culpa sua, ou seja, assume para além da culpa, trata-se, portanto, de uma responsabilidade objetiva.

Esta garantia é prestada, por regra, no momento da realização do contrato, as partes acordam ou então há uma aceitação tácita por parte do comprador, de que o prazo da garantia será aquele. Se nada for dito no contrato a garantia tem-se estipulada por 6 meses após a entrega da coisa (artigo 921º, nº2).

Tal como o adquirente no acórdão 24/04/2012 diz, o artigo 921º não estabeleceu uma forma própria ou obrigatória para acordar a garantia e por isso no caso daquele acórdão encontrámos esta garantia de bom funcionamento na Ficha Técnica da Habitação entregue pelo alienante nos Serviços da Câmara Municipal. Neste mesmo acórdão, numa das suas conclusões, diz-nos que a garantia funciona como forma de “(…) inculcar um dever objetivo de responsabilização do vendedor da coisa garantida; ao garantir o bom funcionamento e assegurar a qualidade da coisa vendida, o garante responde, objetivamente, pelos defeitos que venham a emergir de um normal e corrente funcionamento da coisa”. Como decorre deste excerto do acórdão, esta garantia de bom funcionamento não cobre todos os defeitos mas apenas aqueles que surgem com o normal funcionamento da coisa; assim, será o alienante que terá que provar que a coisa foi mal utilizada.

Na prática[12], o adquirente terá apenas que denunciar o defeito ao alienante dentro do prazo da garantia, se nada for dito em contrário, nos 30 dias seguintes à descoberta do defeito[13] e provar que a coisa padece de um vício ou falta de qualidade não precisando indicar qual a possível causa da avaria. Portanto, para afastar o garante, o vendedor terá de provar que o é posterior à venda ou então que o defeito se deveu a má ou negligente utilização ou a um ato doloso para provocar o defeito por parte do adquirente ou então que se deveu a qualquer ato negligente, doloso ou mau uso por parte de um terceiro.

A ação que se funde neste artigo também tem um prazo de caducidade[14], ela caducará se tiver existido denúncia nos 6 meses seguintes a esta; não existindo denúncia, a ação caduca assim que terminar o tempo de garantia em que se podia fazer a denúncia.

Relativamente à questão no acórdão de 02/03/2010 e tendo em conta o que foi exposto, o vendedor do automóvel tinha prestado uma garantia de bom funcionamento e embora tivesse alegado que a avaria se devia ao facto de terem sido trocados componentes do veículo não conseguiu provar esse facto nem que esse facto levou à avaria do veículo, não afastou o garante logo não afastou a obrigação de reparar a coisa. Impendendo essa obrigação sobre o vendedor, como o automóvel já tinha sido reparado, tinha que suportar os custos da reparação já pagos pelo comprador.

No acórdão de 24/04/2012, um dos alienantes tinha prestado também uma garantia de bom funcionamento na ficha técnica de habitação por isso, mesmo não se aplicando o artigo 914º devido à exceção final, a garantia nos termos do artigo 921º funciona pois os alienantes não conseguiram afastá-la provando que os defeitos se deviam a intervenções na moradia por parte do comprador logo terão que custear as reparações da moradia[15].


Por Catarina Faria


Janeiro de 2014



[1] Todos os artigos citados, ao longo do trabalho, são do Código Civil, incluindo os artigos das notas de rodapé.  
[2] Artigos 905º a 912º.  
[3] Coisa no sentido do artigo 202º.  
[4] MARTINEZ, Pedro Romano, Contratos em Especial, 2ª Edição, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1996, p.125.  
[5] 5LIMA, Fernando Andrede Pires De e VARELA, João de Matos Antunes, Código Civil Anotado, Volume II, 4ª Edição revista e atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p.205.  
[6] LIMA, Fernando Andrede Pires De e VARELA, João de Matos Antunes, Código Civil Anotado, cit., p.205.  
[7] No caso de o vendedor usar dolo, o comprador deve intentar a ação de anulação no prazo de um ano a contar do momento em que teve conhecimento do defeito – artigo 287º, nº1, independentemente de ter feito ou não a denúncia  
[8] O defeito oculto é aquele que o comprador não pode diligentemente apreender logo é legítimo que não o note; o defeito aparente é quele que qualquer comprador minimamente diligente deveria ter notado, o defeito conhecido é aquele que é dado a conhecer ao comprador pelo vendedor, por um terceiro ou que ele tenha notado - MARTINEZ, Pedro Romano, Contratos em Especial, cit., p.128.  
[9] Artigos 204º e 205º.  
[10] Neste contexto são de interesse as regras relativas ao risco nos termos dos artigos 796º e 797º.  
[11] Artigo 207º.  
[12] Ponto IV do Sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2010  
[13] Artigo 921º, nº3.  
[14] Artigo 921º, nº4.  
[15] Em ambas as situações foram respeitados os prazos das garantias de bom funcionamento.  



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